Em sua primeira entrevista a um jornalista ocidental desde o início da guerra com a Ucrânia, em fevereiro de 2022, o presidente russo, Vladimir Putin, disse que não tem nenhum interesse em invadir a Polônia ou qualquer outro país da Otan, a aliança militar formada por EUA, Canadá e 28 países europeus.
Mas na quinta-feira (8/2), Putin concedeu, em Moscou, uma inusitada entrevista ao polêmico jornalista americano Tucker Carlson.
Carlson tinha o programa de maior audiência da rede conservadora de televisão Fox News até abril de 2023, quando foi demitido sem nenhuma explicação. Hoje, ele tem sua própria empresa independente, a Tucker Carlson Network, e também transmite seu conteúdo na plataforma X.
Ele costuma realizar principalmente entrevistas amigáveis com políticos de direita, como o ex-presidente americano Donald Trump.
Durante a entrevista de quinta-feira, Putin afirmou que a Ucrânia era uma nação "criada por Josef Stalin" e justificou sua "operação militar especial" — que é como chama a invasão russa do país vizinho — repetindo o argumento de que a eventual expansão da Otan representaria uma ameaça à Rússia.
Alguns analistas interpretam a entrevista como uma tentativa de Putin de influenciar o eleitorado americano em meio à campanha presidencial de 2024.
Eles destacam também que a entrevista foi realizada em um momento em que o Congresso dos Estados Unidos discute a aprovação de novos fundos para fornecer ajuda militar à Ucrânia - e o governo enfrenta a resistência de parlamentares republicanos próximos a Donald Trump, que concorre à eleição presidencial.
Trump vem se queixando dos milhares de milhões de dólares em ajuda que Washington enviou à Ucrânia e defende uma distensão do conflito.
Em um vídeo promocional divulgado anteriormente por Carlson, o jornalista assegurava que "nenhum jornalista ocidental" estava interessado em entrevistar Putin desde 2022 para ouvir seus argumentos.
Essa declaração causou polêmica, uma vez que um grande número de jornalistas de diferentes meios de comunicação afirmam ter solicitado - e não conseguido - entrevistas ao presidente russo. Entre eles está Steve Rosenberg, editor da BBC News Rússia, serviço da BBC em russo.
O porta-voz do Kremlin, Dimitry Peskov, confirmou que rejeitou outras entrevistas antes da de Carlson.
Confira abaixo algumas das declarações mais marcantes de Putin a Tucker Carlson.
O líder russo descartou invadir a Lituânia, a Polônia ou qualquer outro país da Otan, afirmando que esta possibilidade "está absolutamente fora de questão".
A invasão da Ucrânia alimentou receios entre os países bálticos, a Polônia e outros países europeus de que a Rússia também pudesse invadi-los.
Preocupados com esta possibilidade, a Finlândia e a Suécia, países que tradicionalmente permaneciam neutros na luta entre Moscou e o Ocidente, decidiram se candidatar à adesão à Otan.
Na entrevista, Putin descartou a possibilidade de outra invasão. Ele disse que isso só aconteceria "se a Polônia atacar a Rússia".
Nas semanas anteriores à ofensiva das tropas russas contra a Ucrânia, Moscou também negou repetidamente que estivesse planejando a invasão - que os Estados Unidos e os seus serviços de inteligência já vinham prevendo.
Embora o presidente russo tenha rejeitado qualquer possibilidade de ataque contra um país da Otan, ele destacou que a aliança militar deveria aceitar que a Rússia mantenha os territórios ucranianos ocupados por ela desde o início das hostilidades.
Carlson perguntou ao presidente russo se ele havia considerado conversar diretamente com o presidente dos EUA, Joe Biden, para buscar um acordo para acabar com a guerra.
Putin foi enfático ao garantir que existe contato entre algumas agências russas e norte-americanas, mas que "não há nada sobre o que conversar" enquanto os EUA continuarem a enviar armas para a Ucrânia, uma política que descreveu como "erro estratégico".
"Vou lhes dizer o que realmente estamos tentando fazer com que a liderança americana entenda: se vocês realmente querem parar a luta, precisam parar de fornecer armas. Ele (o conflito) acabaria em poucas semanas", disse ele.
A entrevista veio no momento em que o Senado dos EUA aprovou um projeto de lei que expandiria a ajuda militar à Ucrânia em US$ 61 bilhões, mas enfrenta forte oposição na Câmara dos Representantes controlada pelos republicanos, incluindo dezenas de aliados de Trump que votaram repetidamente contra a ajuda para Kiev.
Em contraste à posição de Putin, aliados da Ucrânia dizem frequentemente que é Moscou quem deve depor suas armas.
"Se a Rússia parar de atacar, a guerra acaba. Mas se a Ucrânia parar de se defender, a Ucrânia acaba", dizem.
O líder russo falou sobre o desenvolvimento de armas que tem promovido na Rússia. Ele justificou a iniciativa com a recusa de sucessivos governos dos EUA em aceitar as suas propostas de desarmamento e desnuclearização.
Embora tenha negado que seu país esteja planejando iniciar outras ações ofensivas, Putin disse que a indústria militar russa teria desenvolvido armamentos - como os sistemas de armas hipersônicas - que são mais avançados que os de outros países.
Ele afirmou que os líderes ocidentais perceberam que "não podem infligir uma derrota estratégica à Rússia", disse ele.
Durante a entrevista, Putin fez uma série de referências à História, algumas remontando a eventos do século 13.
No entanto, ele deu grande ênfase a acontecimentos ocorridos na União Soviética nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial.
Ele disse que a ideia da Ucrânia como uma nação que fazia parte da União Soviética surgiu "inexplicavelmente" da mente do líder soviético Vladimir Lênin.
Ele assegurou que a criação da Ucrânia foi produto de um programa de "indigenização" das regiões que a URSS impôs aos seus territórios, procurando promover as línguas e culturas nacionais.
Ele disse que no final da guerra, sob Stalin, a Ucrânia recebeu territórios em que as pessoas falavam húngaro ou polonês.
Sua conclusão: "A Ucrânia é um Estado artificial que foi formado pela vontade de Stalin".
No entanto, o historiador Matthew Lenoe, da Universidade de Rochester, nos EUA, observou que, embora a história do Estado ucraniano provavelmente não possa ser encontrada antes de 1918, não há dúvida de que agora se trata de um Estado-nação.
"Putin afirma que não existe uma história ucraniana separada da russa, mas isso não é verdade", disse Leone em uma entrevista em março de 2022.
"Entre os falantes de ucraniano e nas regiões que hoje constituem a Ucrânia houve muitas experiências diferentes. Às vezes eles pertenciam a diferentes estados e reinos. Mas houve interação entre os falantes de ucraniano ao longo de grande parte desta história e eles desenvolveram uma identidade comum, especialmente depois de meados do século 19", disse.
Putin foi perguntado sobre a situação de Evan Gershkovich, o jornalista do Wall Street Journal preso na Rússia sob a acusação de espionagem.
Putin disse acreditar que um acordo poderia ser alcançado para libertar Gershkovich, de 32 anos, "se nossos parceiros tomarem medidas recíprocas".
"Os serviços especiais estão em contato. Eles estão conversando... Acho que é possível chegar a um acordo."
Gershkovich, repórter do Wall Street Journal, foi preso na cidade de Yekaterinburg, cerca de 1,6 mil km a leste de Moscou, em 29 de março do ano passado.
Em janeiro, a Rússia prorrogou novamente sua prisão preventiva até o final de março, enquanto aguarda julgamento. Ele pode pegar até 20 anos de prisão se for condenado.
Carlson perguntou a Putin se ele estaria disposto a libertar o jornalista imediatamente, para que retornasse com ele aos EUA.
Putin deu a entender que a Rússia aceitaria uma troca de prisioneiros. Ele mencionou "uma pessoa que, por sentimentos patrióticos, eliminou um bandido em uma das capitais europeias... durante os acontecimentos no Cáucaso".
Isso é provavelmente uma referência a Vadim Krasikov, um assassino do serviço de inteligência russo FSB atualmente preso na Alemanha depois de matar a tiros um dissidente checheno nascido na Geórgia, Zelimkhan Khangoshvili, em um parque de Berlim em 2019.
Parte da longa explicação com dados da História dada por Putin a Tucker Carlson fez referência a várias ocasiões em que os EUA supostamente disseram à Rússia que a Otan não se expandiria para o Leste.
Segundo o presidente russo, vários líderes (embora não cite nenhum especificamente) prometeram ao Kremlin que a Otan não se expandiria. Para Putin, com a dissolução da URSS, não havia mais necessidade da aliança militar.
Contudo, o argumento de Putin não é novo. O antecessor de Putin, Boris Yeltsin, afirmou, em 1993, que a expansão da Otan para o leste era "ilegal".
Yevgeny Primakov, antigo ministro de Relações Estrangeira russo, apresentou um argumento semelhante quando disse ter recebido o compromisso de que "nenhum país que abandonasse o Pacto de Varsóvia aderirá à Otan".
No entanto, segundo Kristina Spohr, professora de História Internacional na London School of Economics, o único compromisso assumido com a Rússia ocorreu após a queda do Muro de Berlim, quando Moscou concordou em remover 380 mil soldados que tinha estacionado na Alemanha Oriental e substituí-los por forças da Otan.
Na época, James Baker, secretário de Estado de George W. Bush, teria dito a ele que as tropas da Otan não se moveriam "nem um centímetro para o leste", mas se referindo à fronteira entre a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental.
Análise de Will Vernon, jornalista da BBC em Washington
Vladimir Putin provavelmente gostou desta entrevista.
Tucker Carlson permitiu que o líder do Kremlin falasse longamente com muito pouco contraponto.
Putin reciclou suas falsidades banais sobre a história da Ucrânia (que se trataria de uma invenção moderna e não de um país "real"), as suas queixas históricas sobre a desintegração da União Soviética e a expansão da Otan.
Ele também falou longamente sobre o início da invasão em grande escala da Ucrânia, repetindo suas falsas alegações de que a Rússia não atacou a Ucrânia; Moscou, segundo Putin, estava apenas a respondendo a ameaças à sua segurança nacional.
O mais revelador não foi o que foi discutido, mas as coisas que não foram discutidas.
Tucker Carlson não fez nenhuma tentativa de pressionar Vladimir Putin sobre os crimes de guerra cometidos por soldados russos, a transferência forçada de crianças ucranianas para a Rússia (para a qual o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão contra Putin), o assassinato de rivais políticos ou a prisão do líder da oposição Alexei Navalny.
Fonte: correiobraziliense
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