22 de Novembro de 2024

Por dentro da megaprisão símbolo da guerra de Bukele contra facções em El Salvador


Centenas de olhos estavam direcionados a nós. Com a cabeça raspada, vestindo roupas brancas e fortemente tatuados, os presos sabem que estão sendo observados e devolvem o olhar do outro lado das grades.

Estamos no Cecot, o Centro de Confinamento do Terrorismo, uma prisão de segurança máxima construída há apenas um ano pelo governo do presidente Nayib Bukele para membros de “alto escalão” das principais gangues de El Salvador.

É um projeto gigantesco construído no meio do nada que, mais do que qualquer coisa, simboliza a controversa política de segurança de Bukele.

Miguel Sarre, ex-membro do Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura, descreve a megaprisão como um “buraco negro dos direitos humanos” e um “fosso de concreto e aço onde existe um cálculo perverso para se desfazer de pessoas sem aplicar formalmente a pena de morte”.

Mas essa é ao mesmo tempo uma das principais razões para a enorme popularidade de Bukele numa nação que foi abalada por notórias gangues — Mara Salvatrucha, Barrio 18, Los Revolucionarios e Los Sureños.

“Aqui estão os psicopatas, os terroristas, os assassinos que enlutaram o nosso país”, anuncia o diretor do centro, que não quer ser identificado, mas se deixa filmar.

Ele será nosso guia durante a visita cuidadosamente calculada às celas.

“Não olhe nos olhos deles”, ele nos avisa.

É madrugada, mas não importa: as luzes artificiais nunca se apagam. Uma rajada de vento passa através do teto de treliça, proporcionando uma breve pausa no calor. As celas podem atingir 35ºC durante o dia e não possuem outra fonte de ventilação.

A cadeia é chamada de a “Alcatraz da América Central”, em referência à prisão de segurança máxima dos EUA que funcionou entre 1934 e 1963 em uma ilhota.

Mas a prisão em El Salvador não aparenta nada degradada: tudo é novo e pintado recentemente.

Guardas encapuzados vigiam de cima, com grandes armas na mão.

Abaixo, os presos sobem nos beliches de quatro andares onde dormem; sem colchão ou lençol, deitam-se sobre o metal e comem com as mãos arroz e feijão, ovos cozidos ou macarrão.

“Qualquer utensílio pode ser uma arma mortal”, justifica o diretor.

Não há mais nada entre as três paredes de cimento, exceto duas pias para lavar as mãos e dois vasos sanitários para usar à vista de todos.

E não há mais nada a fazer senão ver o tempo passar.

Os reclusos só podem sair das celas durante 30 minutos ao dia, para fazerem exercício — utilizando apenas o peso do próprio corpo — no corredor central do bloco 3, que nós, jornalistas, estamos visitando.

Existem outras sete unidades como esta — prisões independentes dentro do enorme complexo que cobre o equivalente a sete estádios de futebol, cercado por duas cercas eletrificadas e dois muros de concreto armado, e guardado por 19 torres.

Não está claro se os prisioneiros de Cecot foram detidos recentemente ou transferidos de outras prisões, ou exatamente por que foram selecionados para esta unidade.

Ou mesmo quantos presos realmente estão ali na prisão que, segundo o governo, pode acomodar até 40 mil pessoas.

Apesar de meses de pesquisa, a BBC ainda não tem uma resposta para essas perguntas.

Questionamos o diretor, que responde: “Não podemos fornecer essa informação”.

“Qual é a capacidade máxima de cada cela?”, nós insistimos.

“Onde cabem 10 pessoas, cabem 20”, diz o diretor.

Por trás de sua máscara anti-covid, vejo um sorriso.

Desde a sua inauguração, em 31 de janeiro de 2023, a BBC solicitou frequentemente acesso à megaprisão.

O convite chegou finalmente no dia 6 de fevereiro através de uma mensagem no WhatsApp do assessor de imprensa internacional da presidência: “Iremos esta noite ao Cecot”.

O ponto de encontro e o horário nos foram informados apenas meia hora antes da hora marcada para a partida.

Dois dias haviam se passado desde que Bukele se declarou reeleito com 85% dos votos, alegando que seu partido havia conquistado quase todas as cadeiras na Assembleia Legislativa antes mesmo de os cartórios contarem os votos.

“Esta seria a primeira vez que existiria apenas um partido num país com um sistema totalmente democrático. Toda a oposição foi pulverizada. El Salvador voltou a fazer história neste dia”, comemorou Bukele da varanda do Palácio Nacional na tarde do dia das eleições.

No entanto, enquanto escrevo isto — cinco dias após as eleições —, El Salvador ainda não sabe os resultados finais devido a inúmeras falhas no sistema de contagem de votos e a dúvidas sobre como os boletins de voto foram administrados.

Ninguém questiona a vitória presidencial de Bukele; a atenção tem se voltado à disputa pelos 60 assentos na Assembleia Legislativa, cujo controle é crucial para o programa de Bukele.

Ao proclamar a vitória, Bukele exaltou conquistas do seu primeiro mandato na área de segurança e atacou os críticos diante de uma multidão entusiasmada na praça central de San Salvador, a capital.

“Passamos de país mais perigoso do mundo a país mais seguro de todo o Hemisfério Ocidental, o país mais seguro de todo o continente americano, e o que dizem? ‘É uma violação dos direitos humanos'”, disse.

"De quem são os direitos humanos? Não das pessoas honestas. Talvez tenhamos priorizado os direitos das pessoas honestas em detrimento dos direitos dos criminosos, foi tudo o que fizemos", continuou.

A visita que vários repórteres de veículos da imprensa internacional realizariam dois dias depois poderia ser considerada uma continuação deste argumento.

Nosso destino foi a prisão que é símbolo da política de segurança de Bukele e do “estado de exceção” — uma medida justificada como emergencial que concede poderes draconianos à polícia e aos militares — que está em vigor há dois anos.

Cerca de 70 mil pessoas foram detidas sob esta medida; El Salvador tem hoje a maior taxa de encarceramento do mundo.

Organizações salvadorenhas e internacionais de direitos humanos afirmam que muitos milhares de detentos não têm qualquer ligação evidente com crimes de gangues.

Outros foram forçados a colaborar com as gangues, seja como vigias ou para esconder armas ou drogas para elas, por medo de consequências caso se recusassem a fazer isso.

A Cristosal, a principal organização de direitos humanos no país centro-americano, documentou casos de tortura e mais de 150 mortes sob custódia do Estado durante o “estado de exceção”.

Num relatório publicado em dezembro, a Anistia Internacional criticou a “substituição gradual da violência das gangues pela violência estatal”.

Nenhuma instituição externa ou ONG visita a prisão, diz-nos o diretor, que no entanto garante que a cadeia cumpre os padrões internacionais.

Depois de passarmos pela segurança — revistas, perguntas sobre tatuagens e uma máquina de raio X que expõe até os intestinos em uma tela —, somos levados a conhecer alguns prisioneiros.

O diretor queria que ficássemos cara a cara com os "inimigos".

Os guardas tiram cinco indivíduos pré-selecionados de suas celas, mas não antes de colocarem algemas em seus pulsos e tornozelos. Agachados e subjugados, eles ficam de frente para a parede.

Eles não têm permissão para conversar.

"Venha aqui. Vire-se, por favor. Tire a camisa."

O diretor nos apresenta o primeiro preso: Miguel Antonio Díaz Saravia, vulgo “Castor” e “assassino da [gangue] Mara Salvatrucha”, nos dizem.

Em 2022, ele foi condenado a 269 anos de prisão por raptar, torturar e assassinar, junto com outros membros de gangues, quatro soldados em outubro de 2016.

Marvin Mario Parada, condenado pelo feminicídio de Alison Renderos em 2012, uma estudante de 16 anos e lutadora de estilo livre, também tem que nos mostrar seu torso tatuado.

“Lembro-me de quando encontraram seu corpo desmembrado em um canal lá em San Vicente”, me conta mais tarde um fotógrafo salvadorenho que está sentado ao meu lado em nossa volta à capital.

“Tive que cobrir a exumação e vi os legistas colocando os pedaços na mesa”, continua a conversa macabra.

A próxima hora de estrada torna-se uma revisão de histórias de horror e de crimes terríveis das gangues, como aquele em que 17 passageiros de um micro-ônibus foram queimados vivos em 2010.

“Também passei anos sem poder visitar o meu tio, que morava no mesmo bairro”, continua o fotógrafo, referindo-se às fronteiras invisíveis que durante décadas dividiram o mapa entre gangues rivais.

“Se você fosse lá, não voltaria.”

Nos dias que antecederam as eleições de 4 de fevereiro, eu ouvi histórias semelhantes nas feiras de rua, nos bairros pobres, nos hotéis e nas praias.

Também escutei vários comentários em apoio ao estado de exceção, o que indicava aquilo todas as sondagens previam: uma vitória iminente de Bukele na votação.

Depois de viver por décadas com a extorsão à porta e a violência na próxima esquina, a maioria dos salvadorenhos com quem falei pareciam dispostos a pagar o preço de Bukele pela segurança.

Fonte: correiobraziliense

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