22 de Novembro de 2024

Por dentro das ambulâncias de Gaza: os paramédicos que testemunham e são vitimas do horror da guerra


Importante: esta reportagem contém descrições chocantes de ferimentos e mortes, que podem ser perturbadoras para alguns leitores.

A notícia chegou perto das 14 horas. O paramédico Mahmoud Al-Masry e sua equipe estavam no hospital al-Awda, no norte da Faixa de Gaza, esperando o próximo chamado.

Foi quando o atendente anunciou que a ambulância 5-15 havia sido atingida. Era a equipe do pai de Al-Masry, que também era paramédico.

Mahmoud e seus colegas correram para ver o que tinha acontecido. Ao chegarem ao local, viram que a ambulância havia se transformado em uma massa de metal retorcido no acostamento da estrada.

O médico correu em direção aos destroços, mas encontrou todos "completamente queimados e despedaçados" no seu interior.

Um documentário do serviço em árabe da BBC acompanhou os paramédicos no primeiro mês da guerra na Faixa de Gaza. E registrou a reação de Mahmoud Al-Masry quando percebeu que seu pai, Yosri, e dois outros profissionais haviam sido mortos.

"Seu rosto está irreconhecível", lamentou ele.

O incidente ocorreu no dia 11 de outubro, o quinto dia de guerra. O corpo sem vida de Yosri Al-Masry foi embalado em um manto branco, junto com seu capacete manchado de sangue.

No funeral, Mahmoud se ajoelhou ao lado do pai, enxugando as lágrimas e balançando a cabeça. Seus colegas se reuniram ao seu lado.

Suas histórias foram filmadas pelo jornalista gazense Feras Al Ajrami, para o documentário Gaza 101: Resgate de Emergência.

Mahmoud Al-Masry tem 29 anos de idade e é pai de três filhos.

Após a morte do pai, ele tirou duas semanas de férias. Mas disse que, apesar da profunda tristeza que sentia, queria voltar a trabalhar.

"Meu impulso interior é servir ao povo palestino", diz ele.

Ele colocou uma imagem do rosto do seu pai como papel de parede do seu celular, "para poder vê-lo dia e noite".

Seus últimos momentos juntos ocorreram apenas duas horas antes da morte de Yosri. Ele havia pedido ao filho que fizesse uma xícara de café, que tomou antes das orações do meio-dia. A ambulância de Yosri foi então chamada e ele saiu.

Mahmoud já havia se ferido apenas dois dias antes. Ele foi levado ao hospital em uma maca com estilhaços no pescoço e nas costas.

Seu pai chorava ao seu lado. "Ele estava muito preocupado", conta Mahmoud.

Mas, quando ele pensava no seu pai nas semanas que se seguiram ao incidente, os momentos ao lado do veículo destruído o assombravam.

"Sempre que me sento sozinho, vivo novamente o momento... Eu estava correndo em direção à ambulância, eu estava correndo em direção ao meu pai, fiquei chocado quando o encontrei em pedaços e estava a ponto de desmaiar", relembra ele.

Mahmoud trabalha como paramédico há sete anos. Na época, ele estava em Jabalia, no norte de Gaza, como parte da equipe da Sociedade do Crescente Vermelho Palestino (PRCS, na sigla em inglês).

O documentário da BBC acompanhou as equipes de ambulâncias daquela unidade ao longo do primeiro mês após os ataques do Hamas contra Israel no dia 7 de outubro, que mataram 1,2 mil pessoas e fizeram cerca de 250 reféns. Israel começou sua intensa reação militar em seguida.

Mais de 10 mil moradores da Faixa de Gaza foram mortos naquele primeiro mês, segundo o Ministério da Saúde administrado pelo Hamas. Desde então, este número subiu para mais de 28 mil mortos, segundo o Ministério.

Filmar os paramédicos de perto, enquanto eles dirigiam pelos becos escuros recolhendo os corpos de bebês feridos, revelou como suas vidas pessoais e profissionais se confundem. O documentário mostrou os traumas que eles enfrentaram, principalmente quando precisavam lidar com os corpos de crianças.

Naqueles primeiros dias da guerra, outro paramédico, Rami Khamis, soluçava sem parar enquanto dirigia sua ambulância.

Ele conta que havia sido chamado para atender uma casa que havia desmoronado sobre seus moradores. Eles eram principalmente mulheres e crianças.

Quando entrou em um cômodo, ele encontrou três meninas mortas e logo pensou nas suas próprias filhas.

"Não consegui me controlar. Desabei em lágrimas na hora", contou ele. Na época, a imagem de Khamis chorando viralizou.

Mais para o final de outubro, outro membro da equipe, Alaa Al-Halaby, recebeu uma ligação de um parente.

Ele conta que a casa do seu tio havia sido atingida por um ataque israelense dois dias antes, mas algumas das pessoas mortas ainda estavam soterradas sob os escombros. O corpo do seu primo havia sido retirado e ele estava esperando para levá-lo para o hospital.

Quando entrou em um beco estreito, um grupo de pessoas tentava mover uma pilha de concreto que havia desabado. Um parente então disse a ele: "há uma menina, inteira ou metade do seu corpo".

Ele fez uma pausa, respirou fundo, com seu rosto parcialmente oculto pela máscara médica, e disse: "as partes da menina estão ali, coloque-as com ele".

Naquele mesmo dia, Alaa foi a uma casa onde havia cinco crianças mortas, seriamente queimadas. Ele coordenou a equipe enquanto três delas eram carregadas em um manto plástico para sua ambulância.

"A primeira coisa que vem à cabeça quando você segura partes do corpo de uma criança é que você se lembra de segurar seu próprio filho", disse ele mais tarde.

"Isso nos deixa...", começou ele a explicar. Mas não conseguiu terminar a frase, já que foi chamado para atender a outra emergência.

Uma semana depois do início da guerra, Israel ordenou que os civis do norte de Gaza se movessem para o sul, para sua própria segurança. Com isso, a maioria das famílias da equipe foi evacuada, mas os paramédicos permaneceram no mesmo local.

Eles mantiveram contato com suas esposas e filhos por meio de conversas fragmentadas por telefone ou pela rede de rádio do Crescente Vermelho.

Rami Khamis trabalha como paramédico há duas décadas. Ele disse que sempre que surge um novo surto de violência em Gaza, suas filhas se agarram a ele e pedem para ele não ir trabalhar.

Alaa Al-Halaby também conta que seus filhos choraram quando ele saiu. Ele rezava sem parar enquanto dirigia, pedindo a Deus para "nos devolver para eles em segurança".

Os funcionários e voluntários do Crescente Vermelho enfrentam claros riscos.

Em outro incidente, alguns paramédicos esperavam no seu veículo fora do hospital al-Awda quando uma explosão os obrigou a correr para procurar abrigo.

Pelo menos duas ambulâncias foram danificadas. Um dos paramédicos disse que uma casa ao lado do hospital foi alvo de um ataque aéreo israelense.

Israel afirma que não atacou o local, mas sim "um alvo militar a poucas centenas de metros de distância".

Segundo o Crescente Vermelho, 14 dos seus paramédicos foram mortos desde o dia 7 de outubro.

"Em toda missão, existe perigo e risco para a vida das nossas equipes", afirma a porta-voz da organização, Nebal Farsakh.

"Nossas equipes estão sendo atacadas durante o trabalho e as condições em que operamos são horríveis e traiçoeiras", ela conta.

A PRCS é uma organização humanitária não governamental, membro da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC, na sigla em inglês).

Pela legislação internacional, os emblemas da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho são reconhecidos para identificar trabalhadores médicos e humanitários, que são protegidos pelas Convenções de Genebra.

Farsakh afirma que o emblema está inscrito no topo e nos lados das ambulâncias da organização – incluindo a ambulância 5-15, na qual foi morto o pai de Mahmoud Al-Masry. A PRCS acredita que ela tenha sido "atacada diretamente" pelas forças israelenses.

"Com toda a tecnologia sendo usada pela ocupação israelense, não há como dizer que eles não viram", afirma a porta-voz.

As Forças de Defesa de Israel (FDI) declararam que "não atacam profissionais médicos, incluindo os funcionários da PRCS, intencionalmente".

No caso da ambulância 5-15, as FDI afirmam que "atingiram um alvo militar a poucas centenas de metros de distância" e que a localização da ambulância "não foi atacada". Além disso, "ataques aéreos normalmente não causam mortes ao ponto que foi descrito", segundo as FDI.

Israel afirma que sua operação tem como alvo os combatentes do Hamas e que suas Forças Armadas "tomam as precauções viáveis para reduzir os danos aos civis".

As FDI acusam o Hamas de usar civis como escudos humanos e se esconder em instalações médicas. Os militares apresentaram vídeos que mostram túneis que as forças israelenses afirmam terem encontrado perto e embaixo de hospitais, além de armas que, segundo elas, foram encontradas em instalações médicas.

As Forças Armadas de Israel também acusaram o Hamas de usar ambulâncias – não especificamente da PRCS – para transportar combatentes e armas.

O Crescente Vermelho declarou que 16 dos seus veículos foram colocados fora do serviço pelos combates desde 7 de outubro. E, ao todo, 59 ambulâncias da Faixa de Gaza foram totalmente destruídas.

Farsakh afirma que a PRCS "nunca" esteve sujeita a interferências dos combatentes palestinos. "Nosso trabalho de campo é fornecer serviços médicos e humanitários", segundo ela.

"Nossos princípios são os mesmos da Cruz Vermelha Internacional e do Crescente Vermelho Internacional, que são principalmente a objetividade e a independência. Não há interferência de nenhuma entidade, nem de nenhuma parte."

No final de dezembro, a PRCS reduziu a escala de suas operações no norte da Faixa de Gaza, segundo a organização, depois que as forças israelenses atacaram sua base em Jabalia.

As IDF negam terem aberto fogo sobre a clínica ou no seu interior, afirmando terem "localizado uma célula de numerosos terroristas do Hamas em uma clínica do Crescente Vermelho, alguns dos quais foram encontrados vestindo uniformes e roupas do Crescente Vermelho".

Para Farsakh, não existe "absolutamente nenhuma verdade" na alegação. Ela afirma que a clínica continha apenas equipes de ambulâncias, voluntários e pessoas feridas das famílias deslocadas.

Alaa Al-Halaby, Rami Khamis e Mahmoud Al-Masry se moveram para o sul da Faixa de Gaza e continuaram trabalhando como paramédicos na região da cidade de Khan Younis. Mas Khamis recentemente retornou para o norte do território.

No final de janeiro, quando os conflitos se intensificaram em torno de Khan Younis, Mahmoud levou sua esposa e os filhos – Mohamed, de 6 anos; Leila, de 5; e Layan, de 3 – para morar em uma tenda em al-Mawasi, uma área desértica no litoral, anteriormente designada zona de segurança por Israel.

Já se passaram quatro meses da morte do seu pai. Ele reitera que seu compromisso de ajudar os doentes e feridos continua.

"Esta foi a mensagem do meu pai e preciso continuar fazendo."

Fonte: correiobraziliense

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