Morador de Kiev, o tradutor Bohdan Bochkovskyi, 23 anos, sofre de estresse pós-traumático. "Minha vida mudou de forma drástica para pior. Eu me tornei paranoico quando escuto ruídos ou quando algo voa sobre minha cabeça", desabafou ao Correio. "Perdi o meu pai para o câncer, em novembro. Creio que a doença progrediu por causa da situação que vivemos." A história de Bohdan se confunde com a de muitos ucranianos. Em 24 de fevereiro de 2022, a vida de 43,3 milhões de ucranianos começou a sofrer o impacto de uma guerra.
Ao invadir a Ucrânia, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, pretendia depor o homólogo Volodymyr Zelensky em poucos dias. Quase dois anos depois, o confronto criado pelo Kremlin segue sem perspectiva de um cessar-fogo. Para Bohdan, um dos momentos mais tensos ocorreu em 10 de outubro de 2022. "Foi a primeira vez que Kiev foi bombardeada. Dois mísseis passaram sobre meu telhado e escutei as explosões. Desci as escadas e um dos artefatos chacoalhou todo o meu prédio. É como um sonho horrível. Uma semana depois, Putin usou drones camicases pela primeira vez. O impacto deles é aterrorizante."
De acordo com Petro Burkovsky — analista da Fundação de Iniciativas Democráticas Ilko Kucheriv (em Kiev) —, depois de dois anos de guerra, Ucrânia e Rússia foram forçadas a mudar para uma guerra defensiva total. "Os russos não conseguiram inverter o curso da guerra ao seu favor e alcançar os objetivos estratégicos: a destruição ou o enfraquecimento crítico da Ucrânia e a intimidação do Ocidente. Embora a Rússia tenha ocupado a ponte terrestre entre a Crimeia e o continente, ela permaneceu ameaçada pelos ataques e planos ofensivos ucranianos", afirmou ao Correio.
Liberação
Apesar de imensas dificuldades, Burkovsky admite que a Ucrânia segue na busca da liberação de todos os territórios ocupados, incluindo a Crimeia, anexada por Moscou em 2014. "Apesar da contraofensiva fracassada, a Ucrânia rearmou o seu exército com artilharia, blindados e até aviões ocidentais. Existe a expectativa de que os caças F-6 cheguem ao front no fim da primavera (no Hemisfério Norte)."
Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla, disse à reportagem que o objetivo da Rússia era derrubar Zelensky e instaurar um regime fantoche no lugar. "Moscou queria criar uma espécie de protetorado russo, que poderia ser facilmente manipulado. Putin não foi bem-sucedido. Nesses dois anos, a Ucrânia defendeu a liberdade. Do ponto de vista psicológico, a Rússia sofreu uma derrota moral desde o primeiro dia que atacou o nosso país", observou. Ele critica o fato de Kiev não ter recebido armas suficientes para combater os russos.
Em entrevista ao Correio, Oleksandra Matviichuk — diretora do Centro pelas Liberdades Civis (em Kiev), ONG laureada com o Nobel da Paz, em 2020 — disse que Putin repetiu "apelos genocidas" de que os ucranianos não existem e são um único povo russo. "Nesses últimos anos, temos documentado como o Exército da Rússia implementa essa retórica nos territórios ocupados, de acordo com o princípio de que os ucranianos devem ser reeducados como russos e que aqueles que se recusam a reconhcer a inexistência da nação ucraniana devem ser exterminados. É por isso que as tropas de Putin torturam e matam escritores, padres e figuras de governos autônomos da Ucrânia; banem o nosso idioma e a história; e destroem o patrimônio cultural. Também deportam crianças para a Rússia, a fim de crescerem como russos."
"Para 2024, Vladimir Putin tem metas mínimas e máximas. Os objetivos mínimos sãomanter territórios ocupados, proteger a Rússia de ataques ucranianos de longo alcance e prevenir nova ofensiva de Kiev, caso os EUA aprovem nova parcela de ajuda militar de US$ 60 bilhões. A meta máxima é destruir a aliança ocidental por trás da Ucrânia usando as eleições nos EUA, em novembro, e na União Europeia, em junho.Se o Capitólioaprovar o pacote de ajuda militar, Putin será forçado a proclamar a mobilização total após a sua 'reeleição' em março, a fim de fazer todas as suas apostas em uma grande ofensiva contra a Ucrânia, entre outubro e dezembro de 2024."
Petro Burkovsky, analista da Fundação de Iniciativas Democráticas Ilko Kucheriv (em Kiev)
Oleksandra Matviichuk, diretora do Centro pelas Liberdades Civis, em Kiev, e Prêmio Nobel da Paz
Sua organização coletou muitos relatos sobre tortura cometida pelos soldados russos?
A Rússia viola todas as disposições da III Convenção de Genebra. A prática de tortura e maus-tratos a prisioneiros de guerra, independentemente do sexo, idade ou estado de saúde, é generalizada. Os relatórios dos defensores dos direitos humanos ucranianos, bem como de organizações internacionais, fornecem dados sobre espancamentos; choques elétricos; asfixia; violência sexual; tortura; remoção de partes do corpo (unhas e dentes); privação de água, comida, sono ou acesso ao banheiro; simulação de execução; ameaças de violência ou morte e de danos à família.
Qual é a explicação para a deportação de crianças ucranianas?
Ao discutir a deportação ilegal de crianças ucranianas, vemos diversas categorias. A primeira categoria inclui crianças que foram deportadas juntamente com os pais. O destino delas dependerá de seus pais conseguirem deixar a Rússia rapidamente. A segunda envolve crianças de instituições estatais, como orfanatos. Infelizmente, não temos meios de rastrear o paradeiro delas. A terceira compreende crianças levadas pelos seus pais para acampamentos de verão na Rússia durante batalhas em seus territórios de origem. Quando esses territórios foram libertados, os russos se recusaram a devolver as crianças. Na categoria seguinte, temos crianças cujos pais foram mortos ou presos e que, agora, estão detidas em "campos de infiltração". Elas são preparadas para adoção forçada por famílias russas, apesar de terem familiares na Ucrânia. As autoridades ucranianas identificaram 20 mil crianças ucranianas deportadas ilegalmente para a Rússia — apenas 388 conseguiram regressar
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