O sistema imunológico fascina a ciência com seu papel de guarda-costas do corpo. Sua habilidade de distinguir entre o próprio e o estranho é fundamental para manter o equilíbrio. No entanto, quando não funciona adequadamente, o organismo começa a atacar a si, desencadeando doenças autoimunes. Diante de sua importância, pesquisadores de diversas instituições conseguiram desvendar alguns mistérios do sistema imunológico, e conhecer mais sobre seus desequilíbrios.
Cientistas da Universidade de Massachusetts Amherst, nos Estados Unidos, conduziram um estudo sobre anemia aplástica, uma doença autoimune rara, com o objetivo de compreender como um subconjunto de células pode ser treinado para corrigir a resposta imunológica exagerada, que pode levar às patologias autoimunes fatais. Detalhada na revista Frontiers in Immunology, a pesquisa identifica uma enzima específica, chamada PRMT5, como um regulador chave da atividade supressiva em algumas células.
Em doenças autoimunes, as células imunes, especificamente as Th1, identificam erroneamente células-tronco saudáveis na medula óssea como patogênicas e as atacam. Sem essas estruturas, o corpo não consegue produzir glóbulos brancos para combater infecções, glóbulos vermelhos para transportar oxigênio pelo corpo ou plaquetas para ajudar na coagulação.
Embora medicamentos que controlam as respostas autoimunes funcionem, há muitos efeitos colaterais. Conforme o artigo, seria mais eficaz se o próprio sistema de defesa do corpo fosse reeducado. Para explorar essa possibilidade, Nidhi Jadon, pós-graduanda da UMass Amherst e autora principal do estudo e a autora sênior do estudo, Lisa M. Minter, professora na UMass Amherst, utilizaram um camundongo modelo da doença.
"Queremos criar uma célula supersupressora. Se alguém sofre de uma doença autoimune, podemos usar as supersupressoras para diminuir a resposta imunológica exagerada, em vez de depender de medicamentos", afirmou Jadon, em nota.
A equipe trabalhou no treinamento das células responsáveis pela supressão da resposta imunológica —chamadas iTregs no ambiente que as Th1 — células imunológicas— criam. A equipe observou que as iTregs foram eficazes na redução da resposta imunitária. Quando olharam minuciosamente, notaram que as estruturas aumentaram a produção de uma enzima, chamada PRMT5, que bloqueou a expressão do gene Sirt1, responsável por tornar as células menos eficazes.
"Ninguém antes demonstrou que o PRMT5 desempenha um papel tão importante na mediação da capacidade imunossupressora que os iTregs apresentam, quando são gerados sob condições da resposta imunitária mediada por Th1", sublinhou Minter. No futuro, as cientistas pretendem estudar outros genes que podem ser regulados pelo PRMT5 e como eles também podem contribuir para tornar as iTregs melhores na supressão da resposta imunológica.
Felipe von Glehn, neurologista do Hospital Brasília Águas Claras e professor de neurologia de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), pondera que, apesar dos avanços da ciência, ainda não há grandes perspectivas para a cura de condições autoimunes. "Existem muitos remédios que controlam a doença bloqueando a progressão. Isso já um grande avanço dos últimos tempos."
Para Von Glehn, estudos em modelos animais, in vitro e com minicérebros, também conhecidos como organoides, podem gerar conhecimento para terapia. "É tão difícil curar a doença porque uma vez que ela se inicia não é possível eliminar todas as células anômalas do corpo. Os remédios utilizados atualmente diminuem a quantidade dessas células autorreativas, mas elas costumam retornar se a medicação for interrompida."
Mecanismos
Cientistas da Universidade Técnica de Munique (TUM) e da Universidade Ludwig Maximilian de Munique (LMU), na Alemanha, avançaram no entendimento dos distúrbios autoimunes, revelando um mecanismo que envolve células do sistema imunológico. O ensaio, publicado na Frontiers in Immunology, destaca como as células imunológicas B contribuem para o treinamento das células T no timo —glândula crucial no desenvolvimento e maturação do sistema imunológico.
Eles constataram que os linfócitos B educam as células T para não atacarem os tecidos corporais. "A função das células B na glândula tem sido um mistério que intriga os imunologistas há muitos anos", frisou, em nota, Thomas Korn, líder do ensaio e professor de neuroimunologia experimental na TUM. Os autores sugerem que interrupções nesse processo podem servir como gatilho para diversos distúrbios autoimunes.
Leonardo Oliveira Mendonça, membro do Departamento Científico de Erros Inatos da Imunidade, da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), sublinha que após a formação dos linfócitos B, as células migram para a periferia do organismo procurando antígenos conhecidos. "Alguns linfócitos nascem com capacidade de autorreatividade. Quando eles chegam no local de reconhecimento, não conseguem fazer esse trabalho. Quando isso acontece, falamos que o corpo perdeu a tolerância."
Mendonça frisa que é no timo que fica grande parte dos antígenos que o corpo reconhece. "Daí a importância do timo no desenvolvimento das doenças autoimunes". Para Korn, a descoberta vai melhorar a saúde dos pacientes. "Olhando mais para o futuro, esta interação no timo pode ser explorada para tratar doenças autoimunes existentes de uma forma muito direcionada", afirmou.
As condições autoimunes atingem partes específicas?
Elas podem acometer qualquer órgão e sistema. Podem acometer órgão único, como o hipotiroidismo, vitiligo e diabetes tipo 1; ou serem sistêmicas, quando atingem múltiplos órgãos e sistemas, como o lúpus eritematoso sistêmico e artrite reumatoide, duas das principais doenças reumáticas autoimunes. Elas frequentemente causam sintomas gerais. Cerca de 10% da população tem alguma doença autoimune.
Como é o desenvolvimento?
As manifestações são heterogêneas e o diagnóstico pode ser difícil. Acontecem em qualquer idade, mas tendem a ser mais comuns em jovens e mulheres. Podem ser graves e cursar com perda de funcionamento de órgãos. É importante continuar estudando a respeito das suas etiologias, pois isso poderá orientar o desenvolvimento de tratamentos específicos e estratégias de prevenção.
Quais os principais avanços nos últimos tempos?
Os grandes avanços no tratamento foram o desenvolvimento da terapia biológica e as novas estratégias de diagnóstico precoce. Com a terapia biológica tem sido possível mudar a história natural de muitas doenças reumáticas autoimunes. Ela começou para o tratamento da artrite reumatoide e hoje se expande para outras especialidades médicas. (Isabella Almeida)
A ciência costuma considerar o sistema imunológico de recém-nascidos uma versão menos desenvolvida do sistema adulto. No entanto, um estudo da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, desafia essa visão ao demonstrar que as células T dos bebês, responsáveis pela defesa contra doenças, superam as dos adultos ao combater uma variedade de infecções.
O estudo, liderado por Brian Rudd e Andrew Grimson e publicado na revista Science Immunology, revela diferenças fundamentais entre as células T adultas e neonatais. Enquanto as adultas se destacam ao reconhecer antígenos específicos e formar memória imunológica, as neonatais se engajam no braço inato do sistema imunológico, oferecendo uma resposta rápida e não específica contra uma variedade de micróbios.
"Sabemos que as células T neonatais não protegem tão bem quanto as T adultas contra infecções repetidas pelo mesmo patógeno. Mas as T neonatais, na verdade, têm uma capacidade aprimorada de proteger o hospedeiro contra os estágios iniciais de uma infecção", pontuou Rudd.
Anete Grumach, coordenadora do Departamento Científico de Erros Inatos da Imunidade da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), detalha que as células T maduras já estão formadas ao nascimento, entretanto, ainda não foram estimuladas para uma resposta específica a antígenos. "É normal utilizar os padrões de adultos para avaliar a resposta do recém-nascido. Assim, a pesquisa mostra haver outras formas de compensação na fase denominada imatura da criança."
Antônio Condino Neto, presidente do Departamento de Imunologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), frisa que é preciso validar o estudo para saber a relevância da descoberta. "É necessário reiterar que as recomendações para aleitamento materno, higiene do sono, higiene alimentar e, sobretudo, as vacinas, continuam válidas. Isso para a criança construir seu repertório imunológico e não desenvolver doenças infecciosas graves. As pessoas não devem achar que com a descoberta desse mecanismo as crianças são super 'respondedoras' imunológicas, não vamos tomar esse caminho." (Isabella Almeida)
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