22 de Novembro de 2024

'Fui deixado no deserto com corpo da minha mãe': o desespero no Sudão com maior crise de refugiados do mundo


"Me deixaram no deserto com cadáver da minha mãe", diz Om Salma*, que foi abandonada por traficantes de pessoas no caminho do Sudão para o Egito.

A jovem de 25 anos diz que sua mãe morreu quando o caminhão de carroceria aberta em que viajavam bateu, jogando-a para fora do veículo. Sua mãe, de 65 anos, bateu a cabeça e morreu.

Chorando incontrolavelmente, Om Salma foi retirada do caminhão, junto com seus irmãos e os poucos pertences da família. Os contrabandistas se recusaram a transportar o corpo e, para horror de Om Salma, partiram.

Om Salma e a sua família tentavam escapar do conflito no Sudão, que a Organização das Nações Unidas (ONU) descreve como "a maior crise de refugiados do mundo".

Mais de oito milhões de pessoas foram deslocadas à força desde que eclodiram confrontos violentos entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF) e o grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF), em abril, segundo a ONU. Estima-se que 450 mil pessoas deixaram o Sudão nos últimos 10 meses e cruzaram a fronteira para o Egito.

No ano passado, ocorreram intensos combates na capital, Cartum, como resultado de uma violenta luta pelo poder dentro da liderança militar do país. Rapidamente o conflito se espalhou por todo o país, forçando muitas pessoas a fugir de suas casas.

À medida que os combates se aproximavam da cidade natal de Om Salma, Omdurman, ela começou a ouvir tiros.

"Tivemos que partir. Nossas vidas estavam em perigo", diz ela. A jovem conta que muitas pessoas lhe disseram que era "impossível" obter rapidamente um visto para viajar legalmente para o Egito, então ela abordou um homem que cobrou US$ 300 (R$ 940) por pessoa para contrabandear sua família para fora do Sudão.

O tráfico de pessoas acontece ao longo de toda a fronteira de 1.200 km entre o Egito e o Sudão. Os contrabandistas, na sua maioria homens, estão geralmente envolvidos na mineração de ouro no norte do Sudão e no sul do Egito. Eles já trabalham na área, conhecem o difícil terreno do deserto e têm acesso a caminhões para transportar pessoas.

Om Salma e a sua família foram até a cidade de Gabgaba, no norte do Sudão. Este é um ponto de partida bem conhecido para a travessia ilegal da fronteira - tanto que os moradores locais o apelidaram de "aeroporto de Gabgaba".

Lá, ela foi informada de que eles seriam transportados através do deserto e pela fronteira até a cidade de Assuã, no sul do Egito. Eles já haviam viajado por oito horas e feito uma parada para dormir durante a noite antes do acidente.

Abandonada no deserto, com pouca comida e água e com o cadáver da sua mãe, Om Salma e os seus irmãos ficaram perdidos.

Finalmente, depois de horas de espera no deserto,um carro parou para Om Salma, que fazia sinal na estrada. Ela conseguiu convencer o motorista, que transportava alimentos e produtos elétricos do Egito para o Sudão, a levá-los, juntamente com o corpo da mãe, para a cidade sudanesa de Abu Hamad. A família chegou em segurança na cidade, onde mais tarde conseguiram enterrar sua mãe.

A história de Om Salma não é incomum. Acidentes ocorrem frequentemente na área, onde os contrabandistas conduzem caminhões abertos em alta velocidade para fugir das autoridades.

Ibrahim*, que está agora no Cairo, diz que, quando foi contrabandeado para fora do Sudão, um homem com quem viajava quebrou o pescoço e morreu depois do caminhão em que viajavam ter batido em uma pedra. No caso de Ibrahim, o homem viajava sozinho e, apesar da resistência do grupo, os contrabandistas insistiram em enterrar o corpo no deserto.

"Todos ficaram horrorizados. Fiquei olhando para o túmulo sem identificação pela janela enquanto íamos embora, enquanto as mulheres e crianças no caminhão choravam", diz Ibrahim.

Roubos também são comuns.

Halima*, de 60 anos, diz que teve uma experiência assustadora quando foi contrabandeada com a sua família através do deserto sudanês antes de chegar ao Egito.

"Fomos atacados por quatro homens armados e mascarados quando nosso caminhão quebrou. Eles atiraram para o alto, bateram na minha filha e roubaram nossos pertences", diz ela. Depois, um outro carro apareceu e o motorista concordou em levá-los para o outro lado da fronteira.

Mas Halima diz que sua filha de 25 anos ficou tão abalada que morreu no dia seguinte, quando chegaram ao Egito. "Ela teve um ataque de pânico e não conseguia respirar", diz Halima, acrescentando que não conseguiram assistência médica a tempo. A BBC viu uma cópia da certidão de óbito, que cita problemas respiratórios como causa da morte.

A BBC contatou o governo egípcio para perguntar o que tem sido feito para combater o tráfico ilegal de pessoas do Sudão, mas não obteve resposta.

Abdel Qader Abdullah, do consulado sudanês em Assuã, no sul do Egito, disse à BBC que é crime cruzar as fronteiras do deserto sem visto e as autoridades lançaram uma campanha para alertar sobre os perigos associados ao tráfico de pessoas.

"O consulado sudanês em Assuã está trabalhando com o governo egípcio para ajudar a acelerar o processo de visto, para ajudar a aumentar o número de pedidos aprovados e permitir que mais sudaneses entrem legalmente no país".

Antigamente, mulheres e crianças podiam entrar no Egito sem visto, mas o governo introduziu novas restrições após o início dos conflitos no Sudão. A procura no Sudão por um visto egípcio é muito alta, pois as pessoas querem fugir do conflito.

É possível solicitar um visto em dois lugares no Sudão – Wadi Halfa, no norte, e Porto Sudão, no leste. A maioria segue para Wadi Halfa, pois fica mais perto da principal passagem de fronteira terrestre entre o Sudão e o Egito. Quase não há infraestrutura em Wadi Halfa para receber a multidão.

Pessoas ficam na fila por horas para fazerem o pedido e, após a inscrição, podem levar meses para ter uma resposta. Longe de casa e com pouco dinheiro, muitos esperam em Wadi Halfa, dormindo em escolas próximas ou nas ruas.

Ainda determinada a sair do Sudão, Om Salma decidiu tentar a via legal na sua segunda tentativa. Ela viajou para Porto Sudão para solicitar um visto no consulado egípcio de lá.

Mas depois de esperar dois meses, desistiu e optou novamente pela rota ilegal. Muitas pessoas têm o visto recusado e não podem esperar, muitas vezes decidindo gastar o pouco dinheiro que lhes resta com um contrabandista.

"Desta vez nos preparamos para a viagem", diz Om Salma, que conta que levou mais provisões como comida e água. "Passámos cerca de seis dias no deserto antes de conseguirmos atravessar a fronteira para o sul do Egito."

Uma vez no Egito, a situação dos migrantes sudaneses continua difícil. Se não tiverem o estatuto de refugiado ou não puderem comprovar que têm hora marcada para fazer o pedido, eles podem ser deportados.

Para marcar horário para fazer o pedido, eles precisam viajar para o Cairo ou para Alexandria. No edifício do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), no Cairo, milhares de migrantes sudaneses, na sua maioria mulheres e crianças, aguardam em longas filas para registarem os seus nomes e obterem o que é conhecido como cartão amarelo.

Halima diz que "ficava horas no frio, apenas para marcar uma reunião para quatro meses depois."

"Obter um cartão amarelo, que você recebe quando é um refugiado registrado na ONU, permite que você consiga trabalho legalmente e receba fundos mensais da ONU", explica ela.

Outra refugiada registada na ONU, Ibtessam*, no entanto, diz que não é assim tão simples.

Ibtessam foi contrabandeada do Sudão para o Egipto no último verão com três gerações da sua família, 17 pessoas no total, incluindo os seus pais e filhos.

Mas ela diz que apesar de ter cartão amarelo, não recebeu nenhum dinheiro desde que chegou, em junho. "Não sei como sustentar minha família. Meu marido morreu, tenho aluguel para pagar todos os meses e ninguém nos ajuda."

A porta-voz do ACNUR, Christin Bishay, reconhece a frustração e o sofrimento sentidos pelos migrantes sudaneses no Egito, mas diz que a organização está "enfrentando uma escassez de orçamento."

"Ampliamos a nossa capacidade em 900%. Por isso temos de estabelecer prioridades e pensar em quem precisa de ajuda primeiro?", explica ela. "Criamos serviços médicos na fronteira com a ajuda do Crescente Vermelho egípcio."

A vida não é fácil para os migrantes sudaneses no Egito, como Om Salma, que tem de encontrar um lugar para viver com pouca ajuda ou dinheiro.

Ela diz que se preocupa com o futuro. Idealmente, ela gostaria de regressar ao seu país de origem um dia, mas, devido ao conflito, teme que isso nunca aconteça.

*Os nomes foram alterados para segurança dos entrevistados

Fonte: correiobraziliense

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