O novo Marco Regulatório do Transporte Regular Rodoviário Coletivo Interestadual de Passageiros (Trip) entrou em vigor no início de fevereiro, mas vem sofrendo críticas por restringir a entrada de novas companhias no mercado. A regulamentação foi aprovada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) no apagar das luzes do ano passado, e reúne todo o regramento para os ônibus interestaduais, desde o registro de veículos até os critérios usados na fiscalização das empresas.
Novatas que querem operar nas rotas, especialmente startups que aliam tecnologia ao transporte, veem no novo marco a manutenção do domínio das grandes transportadoras. O setor é apontado há décadas como inóspito para a entrada de concorrentes. As empresas consolidadas, por sua vez, assim como a ANTT, apontam para a necessidade de equilibrar a abertura do mercado com o cumprimento de normas que garantam a segurança dos passageiros e da prestação do serviço. Especialistas em transporte também divergem entre facilitar a concorrência e priorizar a fiscalização.
Segundo cálculo da ANTT, as novas regras levarão a uma abertura gradual do mercado de 10% para as linhas principais após o primeiro ano de vigência, podendo chegar a até 25% no quarto ano. As rotas serão disponibilizadas após um ciclo de avaliação, a partir de março do ano que vem. Já trechos inéditos ou operados por um único grupo serão liberados após seis meses de vigor das normas. Dessa forma, o mercado permanece fechado por 180 dias. As disputas pelas linhas também só poderão ocorrer em janelas anuais, e podem ser definidas por sorteios caso haja mais interessados do que vagas.
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) é a principal voz criticando a medida. A entidade representa empresas que atuam como intermediárias entre o transporte e o cliente por meio de aplicativos, como a Amazon, Ifood e Uber. No ramo de passageiros rodoviários, Flixbus e Buser tomam a frente. Desde que chegaram ao país, as companhias concorrem diretamente com as grandes transportadoras, oferecendo passagens a preços reduzidos e facilidades para os passageiros.
Ao Correio, o diretor-executivo da Amobitec, André Porto, criticou a metodologia que será utilizada pela ANTT para definir quantas empresas podem operar em determinada rota. "São critérios totalmente subjetivos, totalmente atrasados, para definir se ali pode ter uma, duas, três ou quatro empresas concorrendo, o que é absurdo. Não é um regime de autorização, é um regime de permissão. No regime de autorização, a concorrência tem que ser a mais ampla e irrestrita possível", defendeu.
Desde 2019, a legislação determinava que a entrada de novas empresas seria feita pelo chamado regime de autorização, que dispensa processos licitatórios e limitações de concorrência ou preços, cabendo à entrante apenas demonstrar capacidade de operar a rota. Porém, a lei foi alvo de diversas ações judiciais. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela constitucionalidade do regime, nove meses antes da aprovação do novo marco, que coloca limitações na medida anterior.
Segundo Porto, caso não haja ajustes na regulamentação, as transportadoras que querem entrar no mercado podem judicializar, embora ainda haja tentativa de diálogo com a agência reguladora. Ele também vê como um absurdo o uso de sorteios para decidir as entrantes quando houver limites de vagas. "O modelo proposto não dialoga com o regime de autorização previsto em lei, e as possibilidades ainda ínfimas de abertura de concorrência começam a se concretizar daqui a um ano, um ano e meio. Efetivamente, o marco perpetua o cenário que existe hoje, onde pouquíssimas empresas operam e o maior prejudicado é o consumidor", explicou.
Atividade essencial
Do outro lado está a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), maior entidade representativa do setor. Segundo Letícia Pineschi, conselheira da associação, o órgão não abarca apenas as grandes empresas. Ela defende que o novo marco está longe da perfeição. Porém, o consenso entre as associadas é que a norma traz segurança jurídica e também para os passageiros.
"Você precisa de pontos de apoio, plano de manutenção, estrutura de capacitação. Precisa ser profissional. O que não cabe é um amadorismo. Isso incomoda o nano-operador, que de fato não consegue se enquadrar. Mas eu não acho que isso seja negativo para a sociedade, ao contrário", afirmou Letícia. Para ela, a decisão de limitar o número de companhias operando por trecho busca evitar que a concorrência exagerada prejudique a prestação do serviço.
"As pessoas usam ônibus para ir estudar, trabalhar em outras cidades, para tratamentos médicos. Imagina que você vai fazer uma cirurgia e tem sua passagem cancelada? A empresa tem que garantir que as passagens vendidas serão entregues. E um acidente com ônibus coloca em risco a vida de muita gente, até de quem não está no veículo. É uma responsabilidade muito grande", destacou Letícia.
Apesar de não concordar com as críticas sobre a abertura do mercado, a Abrati espera que haja atualizações no marco regulatório ao longo do tempo. Letícia ressalta que isso pode levar a mais investimentos no setor. Assim que as regras foram aprovadas, companhias associadas anunciaram aportes de R$ 3 bilhões no transporte rodoviário.
Procurada pela reportagem, a ANTT não comentou as críticas, mas referiu-se a uma nota divulgada assim que o marco regulatório foi aprovado. "(Ele) busca por redução da concentração e a criação de um ambiente de contestabilidade no Trip. Porém, a Agência entende também que a abertura do mercado merece ser conduzida com a devida cautela, na medida da capacidade de fiscalização, e sob um necessário monitoramento dos seus efeitos", registra o texto.
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