A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado votará na quarta-feira (15/3) uma proposta de emenda que coloca na Constituição que tanto a posse quanto o porte de drogas são crime no Brasil.
Isso é atualmente previsto na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão da Corte poderá levar à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal.
O avanço da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre drogas no Senado é vista por políticos, advogados e analistas ouvidos pela BBC News Brasil como um "contra-ataque" no Congresso para tentar barrar a liberação do porte de maconha pelo STF - embora especialistas indiquem que a aprovação da emenda pode não encerrar o debate da Corte (leia mais abaixo).
A votação na CCJ é o primeiro passo para que a medida possa ser aprovada no plenário antes de o STF finalizar o julgamento sobre o porte de maconha.
Iniciado há nove anos e paralisado por pedidos de vista, quando um ministro pede mais tempo para analisar um tema, o caso foi retomado na Corte na semana passada.
Isso colocou o STF novamente em rota de colisão com uma parte poderosa do Congresso Nacional: a bancada conservadora do Parlamento liderada, em grande parte, pela Frente Parlamentar Evangélica.
Há até o momento cinco votos favor e três contra para que algum grau de descriminalização seja implementado, faltando apenas um voto para a formação de maioria.
O julgamento, porém, foi interrompido por um terceiro pedido de vistas, feito desta vez pelo ministro Dias Toffoli, com o voto de três ministros ainda pendente. Toffoli tem um prazo de até três meses para devolver o caso ao plenário.
A interrupção não parece ter arrefecido os ânimos no Congresso, onde parlamentares da bancada evangélica, com o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), se mobilizam para aprovar a PEC.
Na avaliação do cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), esse contra-ataque da bancada conservadora no Congresso já era esperado.
Segundo ele, a disputa faria parte de um processo que vem sendo descrito pela ciência política como "politização da Justiça" ou "judicialização da política".
Nessa dinâmica, ele explica, a crítica é de que o Judiciário estaria utilizando seus poderes para legislar no lugar do Parlamento.
"Há algum tempo, há uma discussão intensa sobre se o STF vem ou não invadindo a competência do Poder Legislativo", diz Couto.
"Em temas menos polêmicos, talvez a reação à atuação no Congresso fosse outra. Como este assunto é considerado um tabu na sociedade brasileira e muito instrumentalizado politicamente, era de se supor que houvesse uma reação como essa."
As tensões entre o STF e o Congresso também foram responsáveis por uma série de pedidos de impeachment de ministros do STF, projetos de lei e PECs com o objetivo de limitar os poderes do Supremo, especialmente em relação ao alcance de investigações contra parlamentares e ao poder de decisões individuais.
Segundo Couto, reações como essa já haviam ocorrido em outros episódios, como no caso do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
Em setembro de 2023, o STF rejeitou a tese de que demarcações de terras indígenas só poderiam ser feitas em áreas ocupadas por povos originários em outubro de 1988.
Como reação, a bancada ruralista acelerou a votação de um projeto de lei que previa o estabelecimento do marco temporal, contrariando o STF.
Parte do projeto foi vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas o veto foi posteriormente derrubado pelo Congresso, em uma demonstração de força dos ruralistas.
Couto avalia que a reação do Congresso em torno do julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha já era prevista pelo ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF e a quem cabe a prerrogativa de definir as pautas que serão votadas em plenário.
Na semana passada, o ministro se reuniu com integrantes da bancada evangélica no Congresso Nacional antes de o julgamento ser retomado.
Para Couto, o encontro teve o objetivo de evitar um movimento semelhante ao que ocorreu no caso do marco temporal.
O cientista político avalia que o fato de Barroso ter recorrido aos parlamentares mostra que o tema é tão sensível que demandou uma espécie de "articulação política" com o Congresso.
"Quando um ministro vai aos parlamentares dialogar sobre um julgamento, isso pode, por um lado, fomentar as críticas de que o Supremo não é técnico, mas político", diz Couto.
"Por outro lado, não admitir isso seria tapar o sol com a peneira. Há um caráter intrinsecamente político nas decisões do Supremo. Essa é a realidade, e Barroso lidou com ela."
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Barroso disse aos parlamentares que o julgamento não se dedicaria a liberar o uso de drogas no Brasil, mas a estabelecer limites a partir dos quais deveria ser feita a distinção entre usuário e traficante de drogas.
"Se um garoto branco, rico e da zona sul do Rio é pego com 25 gramas de maconha, ele é classificado como usuário e é liberado", disse o ministro segundo o jornal.
"No entanto, se a mesma quantidade é encontrada com um garoto preto, pobre e da periferia, ele é classificado como traficante e é preso. Isso que temos que combater."
O deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que é membro da bancada evangélica e contra a descriminalização, diz que o argumento de Barroso não convenceu.
"O ministro disse aos parlamentares que o Supremo não iria deliberar sobre a descriminalização, mas, na prática, é isso que está em jogo, sim", diz Cavalcante à BBC News Brasil.
"Se estabelecermos uma quantidade permitida para o porte, o que o tráfico fará é usar mais gente transportando esse limite para não ter problemas com a justiça. Isso é óbvio."
Para o deputado, o STF não deveria interferir neste assunto.
"O STF não pode liberar as drogas com uma canetada. Este é um assunto que cabe ao Parlamento decidir", afirma o deputado.
"Nós fomos eleitos para representar a população e deliberar sobre esse tipo de tema. Por isso que vamos manter o ânimo para votar a PEC."
Na semana passada, o movimento de reação iniciado por parte da bancada evangélica no Senado ganhou a adesão de um importante aliado: Rodrigo Pacheco.
Foi ele quem apresentou a proposta que agora vem sendo chamada de "PEC das Drogas", em 2023, e foi ele quem deu o "sinal verde" para que a proposta fosse levada a votação na CCJ do Senado.
Esta, porém, não é a primeira vez que Pacheco se alia à bancada conservadora do Senado em torno de uma proposta relativa à segurança pública. No início do ano, o senador deu apoio a um projeto de lei que acabou com a saída de presos em datas comemorativas e feriados, as chamadas "saidinhas".
O projeto ganhou apoio do senador após o caso de um policial de Minas Gerais ter sido morto por um homem que havia sido liberado da prisão durante uma dessas "saidinhas".
O deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), que é a favor da descriminalização das drogas, diz reconhecer a força política da bancada evangélica no Congresso e reclama do apoio de Pacheco à chamada "PEC das drogas.
"Eles têm uma força numérica inegável. Não sei se são capazes de aprovar uma PEC sobre o assunto, mas têm uma capacidade de ação que não podemos ignorar. O que nos causa surpresa é a atuação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que sempre se posicionou de forma muito sóbria em todos os debates relevantes", diz o parlamentar.
"O debate está aí e precisa ser feito. Não podemos mais continuar com a mesma política que leva ao encarceramento de jovens em todo o Brasil. Precisamos debater o assunto sem hipocrisia."
Na semana passada, Pacheco justificou seu apoio à tramitação da PEC.
“O que nos motivou como reação principal foi que uma declaração de inconstitucionalidade (sobre o porte para consumo de drogas) que vai significar, sim, na prática e juridicamente, a descriminalização da conduta era algo que nós não podíamos concordar porque cabe ao Parlamento ou não decidir se algo deve ser crime ou não", disse o senador.
Em meio a esse fogo cruzado, o governo federal vem tentando não se posicionar diretamente sobre o julgamento.
O Palácio do Planalto disse em nota à BBC News Brasil que "a Presidência da República não comenta julgamentos do STF nos quais não é parte do processo".
A reportagem também tentou contactar lideranças do governo no Congresso, mas as ligações não foram atendidas.
Internamente, o tema é considerado sensível, entre outros motivos, por conta da ampla contrariedade do eleitorado evangélico à medida.
Este é um dos segmentos que mais apresenta resistência em relação ao governo, segundo pesquisas de opinião.
Segundo levantamento da empresa de pesquisas Quaest, 62% do eleitorado evangélico desaprova o presidente Lula. O percentual é acima da média geral de desaprovação que foi de 46%.
A pesquisa divulgada na semana passada tem uma margem de erro de 2,2 pontos percentuais para mais ou para menos.
A descriminalização das drogas é um assunto que, historicamente, gera debates acalorados entre defensores e opositores à proposta no Brasil.
A dimensão dessa polêmica pode ser medida pelo tempo que o STF está levando para julgar o caso sobre o tema.
O julgamento retomado na semana passada foi iniciado em 2015. A demora se deu, em parte, por dois pedidos de vistas feitos pelos ministros Teori Zavascki, já falecido, em agosto daquele ano, e André Mendonça, em agosto do ano passado.
Antes da regra criada pela ex-ministra Rosa Weber, os pedidos de vista não tinham prazo e os ministros podiam parar um julgamento para analisar o caso durante anos. Agora, devem devolver um caso em até 90 dias.
O Supremo julga a constitucionalidade de um artigo da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) que cria a figura do usuário de drogas em uma diferenciação em relação ao traficante. Este último ficaria sujeito a penas mais severas.
A lei, no entanto, não estabeleceu critérios objetivos sobre a diferença entre usuário e traficante.
Defensores da descriminalização do porte para uso de drogas afirmam que a falta de critérios prejudica, especialmente, jovens negros que moram em comunidades pobres que seriam presos e processados como traficantes apesar de portarem pequenas quantidades de drogas.
O caso que motivou o julgamento, por exemplo, se refere a um homem que foi flagrado com três gramas de maconha enquanto estava preso.
Opositores à medida afirmam que a descriminalização do porte poderia levar ao aumento do consumo de drogas e à ampliação do uso de jovens pobres no tráfico de drogas.
Em 2015, quando teve início o julgamento, os ministros e ministras avaliaram a possibilidade de descriminalizar o porte de qualquer tipo de droga.
Mas, à medida em que os votos foram sendo proferidos, a tendência foi de restringir ao porte de maconha, porque foi a droga do caso específico em julgamento.
No campo político, o tema divide os campos chamados progressistas, mais associados à esquerda, e conservadores, mais associados à direita.
Durante a campanha eleitoral de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro (PL), apoiado por uma ampla base evangélica, criticava o então candidato Lula e seus aliados por serem supostamente favoráveis à descriminalização das drogas.
O programa de governo de Lula apresentado por sua coligação ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não previa, no entanto, propostas para descriminalização das drogas.
O texto mencionava, no entanto, que "o país precisa de uma nova política sobre drogas," focada na redução de riscos, prevenção e assistência ao usuário de entorpecentes.
No governo, o tema vem dividindo opiniões. Em novembro de 2022, o então indicado para ministro da Justiça e atual ministro do STF, Flávio Dino, disse à BBC News Brasil que o governo não tinha projetos para a descriminalização das drogas.
Em março de 2023, no entanto, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, disse à BBC News Brasil ser favorável à medida como forma de diminuir a superlotação dos presídios brasileiros.
Uma pesquisa divulgada em setembro de 2023 pelo Datafolha aponta que 72% das pessoas entrevistadas seriam contra o uso recreativo de maconha.
Apesar de a bancada evangélica apostar na PEC como uma espécie de garantia contra o julgamento do STF, especialistas em Direito avaliam que a situação é mais complexa do que parece.
Mesmo que o Congresso aprove a PEC antes da decisão do Supremo no caso, o julgamento não seria interrompido e não necessariamente a PEC teria efeitos “automáticos”.
“A emenda constitucional pode ser impugnada pela via das ações diretas de inconstitucionalidade, como o Supremo já fez no passado”, afirma Henrique Sobreira Barbugiani Attuch, do escritório Wilton Gomes Advogados.
A avaliação é que mesmo emendas à Constituição podem ser consideradas inconstitucionais caso se conclua que elas interferem nas chamadas “cláusulas pétreas” da Carta, que se referem temas que não são passíveis de mudança.
“O Direito não aceita tudo. Há princípios que nem emendas podem mudar na Constituição”, diz Belisário dos Santos Junior, especialista em Direito Público e ex-secretário de Justiça de São Paulo.
"Então, se aprovada, essa PEC não garante o fim da discussão."
Caso a PEC seja aprovada e não seja questionada, o que é considerado por analistas ouvidos pela reportagem como algo improvável diante do atual cenário político, aí sim o resultado da decisão do Supremo sobre o artigo 28 da Lei de Drogas teria que levar em consideração o que estabelece a emenda.
Wallace Corbo, professor de Direito da FGV, explica que existe também a possibilidade de o Supremo decidir que a criminalização do uso não viola a Constituição, mas que, mesmo assim, existe a necessidade de se estabelecer uma quantidade para diferenciar usuário e traficante.
Até o momento, quatro dos cinco ministros que votaram pela descriminalização do porte defenderam determinar que um porte acima de 60 gramas caracterizaria tráfico.
Já os ministros Cristiano Zanin e Kássio Nunes, que votaram contra descriminalizar o porte, defenderam que a quantidade máxima para uso próprio deveria ser 25 gramas. Também contrário, André Mendonça falou em 10 gramas.
A questão da quantidade para diferenciar traficantes de usuários é considerada um dos temas centrais do julgamento.
O ministro Alexandre de Moraes afirmou que esse ponto é importante porque estabelece um critério objetivo e evita injustiças e distorções.
Corbo afirma que, se o Congresso criar uma lei alterando a quantidade determinada pelo Supremo, a tendência seria a Corte acatar a escolha.
“Esse seria o cenário com menor risco de judicialização, menor chance de voltar ao Supremo", disse Corbo.
Toffoli, inclusive, chegou a dizer que determinar essa quantidade não seria uma tarefa do STF, e Mendonça defendeu que a Corte encaminhasse a questão toda - tanto sobre a quantidade para diferenciar usuário e traficante quanto sobre a criminalização da posse - para o Congresso votar em até 180 dias.
“Esse tipo de decisão tem sido cada vez mais comum no Supremo e no Judiciário como um todo”, afirma Corbo.
Isso seria, na visão de Corbo, um "meio-termo" em que o Supremo se sobreporia ao Legislativo, mas também não deixa a critério do Congresso decidir quando bem entender.
"Fixa-se um prazo para essa decisão do Congresso e, se esse prazo não for cumprido, podem advir consequências, como, por exemplo, valer a decisão do Supremo quanto ao que entende como mais adequado."
Diante de mais um momento de tensão entre o Congresso e o STF, especialistas avaliam que o pedido de vistas de Toffoli pode ser interpretado como uma alternativa ao embate direto entre os dois Poderes.
Isso porque a interrupção do julgamento daria tempo ao Parlamento para discutir o assunto.
"Como o Congresso Nacional está em pé de guerra com o STF neste caso, dar tempo ao Legislativo para decidir sobre o tema é uma forma de lidar com ele de forma mais cuidadosa", diz Couto.
Tanto Corbo quanto Santos Junior afirmam que existem motivos jurídicos plausíveis para um pedido de vista, mesmo no caso de um julgamento que tramita há bastante tempo.
“O pedido de vista serve tanto para o aprofundamento sobre a matéria quanto para revisão das posições já colocadas (e houve de fato novas posições recentes que poderiam justificar o pedido)”, afirma Corbo.
No entanto, diz ele, o pedido também tem sido usado como forma de interferir na agenda do STF.
“Como hoje em dia há prazo definido para devolver os autos após o pedido, essa última possibilidade fica um pouco mais restrita, mas não deixa de ser possível, e aí pode sim haver um componente político no pedido."
Fonte: correiobraziliense
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