Um católico brasileiro certamente se lembrará de Aparecida, no Vale do Paraíba, em São Paulo. Tudo na pequena Medjugorje, pequena cidade de 6 mil habitantes no interior da Bósnia e Herzegovina, gira em torno da devoção à santa, a Rainha da Paz, conhecida como Nossa Senhora de Medjugorje, cujas supostas aparições comovem e inspiram fiéis até hoje.
Entretanto, ao contrário de outros casos semelhantes que contam com o aval do Vaticano, a santa bósnia ainda é alvo de controvérsias, mais de 40 anos após os primeiros relatos. No epicentro dessa discussão está um religioso bósnio chamado Tomislav Vlaši? que, acusado de vários abusos, foi excomungado pela Igreja em 2020 e hoje lidera uma nova denominação religiosa, a Igreja de Jesus Cristo de Todo o Universo, baseada na Itália.
O problema principal, do ponto de vista religioso, reside no fato de que as supostas aparições da santa seguiriam acontecendo para seus videntes — diferentemente de casos consagrados pela Igreja, em que Nossa Senhora teria se revelado de forma pontual. Em 2017, o papa Francisco disse que a mãe de Jesus não era “chefe dos correios”, para “todos os dias mandar uma mensagem na hora certa”.
“As controvérsias têm a ver com o fato de que há pessoas que alegam ver Nossa Senhora até hoje e, e segundo elas, há momentos específicos, marcados, para conversar com Maria”, comenta à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre, em Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma.
“Em 1981, ocorreram aparições pontuais, mais ou menos como ocorreu em Fátima [em Portugal, em 1917]. Até aí tudo bem. O problema é isso prosseguir.”
“O papa Francisco até fez uma brincadeira sobre isso, dizendo que Nossa Senhora não marca horário para encontrar com as pessoas”, completa.
Seus videntes afirmam que a santa segue aparecendo frequentemente em uma colina próxima à cidade — no total, as ocorrências relatadas já somam mais de 70 mil. Quando a reportagem visitou a igreja principal de Medjugorje, oficialmente dedicada a São Tiago, onde nada se menciona oficialmente sobre as recorrentes aparições, uma funcionária da secretária reafirmou que o fenômeno persiste. Inquirida a respeito, ela disse que o local exato costuma ser revelado poucas horas antes a taxistas que atendem à comunidade — e levam os fiéis ao ponto específico.
Quando informada de que se tratava de um jornalista, ela hesitou em prosseguir o diálogo. Procurada pela BBC News Brasil com um pedido de entrevista, a administração da paróquia local jamais retornou às mensagens, enviadas a eles desde agosto.
De posse de um relatório preparado, à mando da Santa Sé, pelo cardeal italiano Camillo Ruini, Francisco disse que pairavam dúvidas sobre as “alegadas aparições atuais”.
“Eu, pessoalmente, sou mais duro. Prefiro Nossa Senhora Mãe, nossa Mãe, e não Nossa Senhora chefe dos correios, que todos os dias manda uma mensagem à hora certa. Esta não é a Mãe de Jesus”, afirmou o sumo pontífice.
A discussão remonta a dois pontificados anteriores e ao contexto da Guerra Fria, momento histórico em que o Vaticano, capitaneado por João Paulo 2º (1920-2005) foi uma voz contra o socialismo. A ironia desta história é que o fenômeno, originalmente desacreditado porque a corrente católica preponderante buscava negar a afirmação política à esquerda, agora é defendido, ao menos no Brasil, pelos católicos mais fundamentalistas e tradicionais — o canal de TV católico ultraconservador Canção Nova é um dos principais divulgadores da causa de Medjugorje.
Política e religião são duas coisas que se misturam com frequência.
“A teologia sempre tem uma política. Ao definir os Céus, você define a Terra. Ao compreender os Céus, você determina como os homens devem agir. Não estranha nenhum pouco o uso político que foi feito pelos franciscanos [que administram a paróquia de Medjugorje] em um ambiente conturbado, de pobreza e depois de guerra, e como isso foi reapropriado e ressignificado por um grupo carismático fundamentalistas no Brasil”, comenta à BBC News Brasil o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“O uso político das narrativas religiosas é perfeitamente compreensível dentro dessa lógica, tanto à direita quanto à esquerda, tanto por um grupo mais ligado a uma tradição medieval, a uma ordem mendicante, como um grupo mais recente e fundamentalista ligado a questões mais emocionais e midiáticas”, acrescenta ele.
“Porque no final das contas, o fenômeno em si é carregado de mistérios e dado a múltiplas interpretações.”
Vamos à história. De acordo com os relatos, em 24 de junho de 1981, seis crianças de origem croata tiveram uma visão de Nossa Senhora na pequena cidade de Medjuogorje, hoje Bósnia e Herzegovina, na época parte da República Socialista Federativa da Iugoslávia. Fontes do Vaticano ouvidas pela reportagem afirmam que foram as primeiras mensagens da santa que causaram mais desconforto naquele momento.
Diversas das “revelações” daquele primeiro ano defendiam o poder dos religiosos locais — em outras palavras, dos franciscanos que comandavam a igreja naquela região, que era localizada na Iugoslávia socialista. “Que os sacerdotes sejam firmes na fé e protejam a fé do povo”, teria dito a santa na terceira das aparições.
Em outubro daquele ano, a santa parecia pender para o lado oriental daquela Guerra Fria.
“O povo russo é o povo no qual Deus será principalmente adorado. O Ocidente incrementou o progresso, mas sem Deus, como se não fosse Ele o Criador”, afirmaria.
Mas suas mensagens eram sempre em busca de uma conciliação mundial. Em 1983, teria dito que “o mundo de hoje vive em meio a fortes tensões e caminha sobre a borda de uma catástrofe”.
“Pode ser salvo só se encontrar a paz”, sentenciaria.
Trocando em miúdos, quando o pontificado de João Paulo 2º se voltou contra o socialismo e o comunismo, uma santa estaria aparecendo justamente para defender os padres ligados ao status quo de uma república socialista. Nada mais conveniente ao público.
“A Igreja é historicamente contra o comunismo, isso não há o que questionar”, ressalta o vaticanista Domingues .
“O comunismo é visto como algo essencialmente mau porque é materialista, elimina o transcendente.”
Era um momento político extremamente delicado na região, pois após a morte do ditador Josip Broz Tito (1892-1980), que mantinha com pulso firme a unidade dos países iugoslavos, grupos nacionalistas de direita buscavam impor sua agenda no país. A santa, nesse sentido, fortalecia os franciscanos locais — que, ao mesmo tempo que não apoiavam explicitamente o governo socialista, também não se alinhavam à mentalidade de João Paulo 2º.
Há ainda um bastidor: até 1975, quase todas as paróquias da Bósnia e Herzegovina eram comandadas por religiosos franciscanos. A partir daí, o Vaticano decidiu reorganizar o clero da região, deixando parte das comunidades sob a tutela de bispos locais.
Pelo menos dois frades franciscanos se recusaram a obedecer à determinação do papa — Ivica Vego e Ivan Prusina. E teriam sido defendidos, conforme as crianças videntes disseram, por Nossa Senhora em uma das aparições. Posteriormente, Vego largou a batina para viver na Itália com uma ex-freira, com quem teve cinco filhos.
Conforme pontua o jornalista, catequista e diácono Alexandre Varela, autor do livro As verdades que nunca te contaram sobre a Igreja Católica, os seis videntes de Medjugorje eram crianças orientadas espiritualmente por esses dois religiosos. “Toda a história tem eventos muito suspeitos e muito bizarros”, comenta ele, à BBC News Brasil.
Especialista em aparições marianas e estudioso do fenômeno, o teólogo francês Rané Laurentin (1917-2017) afirmou que achava “lamentável” que essa questão político-religiosa local tivesse sido levada à Nossa Senhora, dizendo que a situação se tornou “deplorável” porque “colocou a Virgem e as autoridades estabelecidas em conflito”.
Laurentin também escreveu que a história da primeira aparição estava envolta por mentiras. Segundo ele “as duas primeiras videntes, Ivanka e Mirjana, ocultaram por algum tempo o fato de que não apenas iriam ouvir algumas fitas naquele dia, mas na verdade planejavam sair para fumar”. As meninas haviam relatado que a santa lhes teria aparecido em uma colina quando elas estavam ouvindo música.
Com o passar do tempo, as mensagens supostamente ditas pela santa começaram a querer influenciar na querela entre os religiosos locais. Em 1982, por exemplo, Nossa Senhora teria reafirmado a inocência dos dois padres e ainda, conforme pontua Varela, determinado que não era para obedecerem as autoridades. Em 1985, a santa afirmaria, de acordo com esses relatos, que o bispo de Mostar, jurisdição responsável por Medjugorje, Pavao Žani? (1918-2010) agia “sob a influência de Satanás”.
Em 1986 esse bispo emitiu um parecer afirmando que as aparições não eram legítimas. Cinco anos mais tarde foi a vez da conferência nacional dos bispos da Iugoslávia, em novo relatório, também negarem a autenticidade dos relatos.
Mas essa narrativa não termina aí. Encarregado de ser o diretor espiritual dos seis videntes de Medjugorje, o então frade franciscano e padre católico Tomislav Vlaši?, membro do movimento Renovação Carismática Católica, engravidou uma freira franciscana e, para abafar o escândalo, convenceu-a a se mudar para Alemanha.
Em 1984, por intermédio do bispo de Mostar, o caso chegou ao então cardeal Joseph Ratzinger (1927-2022), futuramente papa Bento 16. Na época, ele era o responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé. Com o objetivo de colocar panos quentes sobre o caso, Ratzinger decidiu transferir o padre bósnio para Parma, na Itália.
Ali, o sacerdote seguiu divulgando as aparições de Medjugorje e, incentivado por ele, fiéis católicos também passaram a relatar visões milagrosas da santa e até mesmo de extraterrestres. Ele fundou na cidade uma comunidade chamada Rainha da Paz — Totalmente Seu. Em 2009, após julgamento por má conduta, heresia, manipulação de consciências e imoralidade sexual, Vlaši? foi destituído do clero. O religioso acabou excomungado em 2020.
Fundou uma nova denominação, a Igreja de Jesus Cristo de Todo o Universo, sediada na região de Brescia, na Itália.
Varela acredita que diante de tantos acontecimentos estranhos, o fato de “ter um monte de coisa” provavelmente imoral já deixa dúvidas de que se esteja falando “de uma aparição milagrosa”.
“A gente fica se perguntando: como é que Nossa Senhora não advertiu os videntes para não confiar, por exemplo, nesses religiosos, nessa direção espiritual? Como é que Nossa Senhora não advertiu sobre toda essa loucura que acontecia ali?”, ressalta o catequista. “Em vez disso, os videntes acabaram ao lado do padre excomungado, defendendo-o. Será que Nossa Senhora não teria avisado? É estranho, muito estranho.”
Ex-professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o teólogo e mariólogo Pedro Iwashita diz à BBC News Brasil que não se pode analisar um caso “onde nem a própria Igreja emitiu um parecer ainda”. “O que se deve verificar são os possíveis frutos que têm surgido e o interesse que tem despertado, mesmo entre estudiosos. Mas é importante estar atento a um parecer oficial da Igreja.”
Controvérsias à parte, o fenômeno Medjugorje ganhou fama entre católicos. Em 2010, o papa Bento 16 criou uma comissão para investigar as aparições. “Essa comissão deu parecer positivo, de forma inicial, para as primeiras, aquelas de 1981. Não foi um reconhecimento formal do papa, mas uma indicação de que algo de sobrenatural parece ter acontecido ali”, comenta Domingues.
Oficialmente, conforme relatório produzido pelo Vaticano em 2014, as sete primeiras aparições foram classificadas como de “caráter sobrenatural” — ou seja, são as que teriam ocorrido entre 24 de junho e 3 de julho de 1981. Todas as demais, segundo os peritos, não deveriam ser consideradas autênticas.
As frases supostamente ditas pela santa também foram analisadas. “[As primeiras] eram mensagens pela paz, pedindo reconciliação”, analisa o vaticanista.
Aos poucos, contudo, frases destoantes de uma possível voz de Nossa Senhora começaram a aparecer. Laurentin conta, por exemplo, que em 1995 uma das videntes afirmou que era da vontade de Nossa Senhora a construção de um centro pastoral, um hotel com 100 quartos e capela para os peregrinos. “Nossa Senhora quer este hotel”, teria dito ela.
Segundo o especialista, negou-se que “Nossa Senhora pudesse estar intervindo numa questão financeira e comercial”, embora a vidente insistisse que a santa “quer este hotel”.
A análise da comissão foi de que, cada vez mais, as mensagens pareciam contaminadas pelas rixas entre os religiosos locais.
Em 2015, a Congregação para a Doutrina da Fé determinou que os videntes e os clérigos de Medjugorje estão proibidos de divulgar as mensagens supostamente ditas por Nossa Senhora aos videntes.
“A grande diferença é a continuidade das aparições e a forma como isso acontece ainda hoje, o que foi questionado pelo papa Francisco”, reitera Domingues. O Vaticano acompanha de perto a situação. Em 2017, enviou para lá um novo comissário, o bispo polonês Henryk Hoser (1942-2021). Ele morreu de covid-19 e, desde 2021, seu trabalho é continuado pelo arcebispo italiano Aldo Cavalli. É um trabalho por tempo indeterminado e sem prazo para conclusão.
Mas é um tapa com luva de pelica, afinal o papa sabe que não se pode menosprezar a fé popular — ainda mais em tempo de perda de fiéis. Assim, Francisco adota uma postura dúbia: ao mesmo tempo em que não reconhece o fenômeno das aparições, incentiva as peregrinações e as orações a Nossa Senhora. Tanto é que, depois de anos de questionamentos, sob seu pontificado finalmente as peregrinações a Medjugorje foram autorizadas oficialmente pela Igreja, a partir de 2019.
Com um senão: os católicos não podem, segundo o Vaticano, participar dos eventos onde os videntes dizem receber as tais mensagens. Além disso, os videntes não podem realizar eventos religiosos em nenhuma diocese do mundo. E a paróquia de Medjugorje, uma construção de 1969 em honra a São Tiago, não pode ser chamada de santuário mariano.
“Ele permitiu as peregrinações, que estavam proibidas, sem dar um parecer positivo, no entanto, sobre as aparições em si”, analisa o vaticanista. “Ou seja: as pessoas podem ir a Medjugorje, rezar por Nossa Senhora e tal, se encontrar lá, rezar e tudo o mais, mas ainda não há o reconhecimento oficial nem das aparições de 1981, que receberam parecer positivo da primeira comissão, nem das aparições posteriores.”
Em 2017, papa Francisco comentou que era “mais malvado” do que o parecer da comissão. “Prefiro a Virgem Mãe do que a Virgem que é encarregada de uma agência dos correios e envia uma mensagem a cada dia. E essas pretensas aparições não têm tanto valor, isto eu sigo como opinião pessoal”, afirmou ele.
“Mensagens de Nossa Senhora em escala industrial é uma exclusividade de Medjugorje. Não existe nenhuma outra aparição em que ela fale, fale, fale sem parar até hoje. É uma coisa muito estranha. Papa Francisco até ironiza”, comenta Varela.
“Os franciscanos que conduzem a paróquia [local] conduzem ali uma vida pastoral, um santuário. Mesmo sem reconhecimento oficial da Igreja às aparições, seja as antigas como as atuais, é uma devoção mariana. As pessoas vão lá porque acreditam que é um local de milagres . E até aí não há nada de errado [do ponto de vista católico]. Mas há uma crença generalizada que se trata de um lugar especial”, pontua Domingues.
Cavalli já deu indícios, em manifestações públicas, de que encara Medjugorje como algo positivo para a Igreja. “[Ele classifica] como um lugar de graça, de devoção, de oração, onde as pessoas vão buscando esperança, acompanhamento e graças”, diz o vaticanista. “Mas ele ainda não comentou sobre as supostas aparições que este grupo de pessoas diz ver ainda hoje. Essa é a parte que a Igreja tende a não aceitar.”
Por outro lado, é evidente que são os relatos miraculosos das visitas recorrentes da santa que movimentam a cidadezinha. “As pessoas continuam acreditando, aí vem todo um sistema que estrutura a cidade, que desenvolveu a cidade. São doações e tudo o que santuários assim conhecidos têm”, avalia Domingues.
O teólogo Moraes não tem dúvidas de que, com ou sem aval do Vaticano, o mito de Medjugorje só tende a aumentar. “A Igreja Católica explora como ninguém a ideia de encantamento de mundo, fazendo conviver posturas racionais com posturas mais emocionais. Fenômenos como esse ocorrem como possibilidade de renovação da fé”, afirma. “Não há controle, nem mesmo um controle papal, que conseguiria determinar e enquadrar a força da religião. Quando ela brota no meio do povo, ela brota e as pessoas querem acreditar.”
“Como você não consegue brecar esse tipo de fenômeno, me parece que a postura de Francisco é a mais sábia: ele diz para as pessoas tomarem cuidado, fortalecerem seus vínculos com Deus, mas term cautela, ao mesmo tempo não rechaça [Medjugorje] porque esse tipo de mistério, de aparição, isso faz parte da vida da Igreja Católica”, diz Moraes. “Ali já se formou um centro de peregrinação. É a força popular que acaba pautando o magistério.”
“Neste exato instante, as aparições de Medjugorje estão numa espécie de limbo eclesiástico: não foram condenadas nem aprovadas”, resume Varela.
Atualmente bispo emérito de Mostar, Ratko Peri? publicou um artigo, em 2017, quando ainda estava na ativa, desacreditando todas as supostas aparições de Medjugorje. “A. Posição desta Cúria por todo este período foi clara e decidida: não se trata de verdadeira aparições da Virgem Maria”, escreveu ele. O religioso falou que o fenômeno era repleto de “manipulações intencionais” e defendeu que todos os envolvidos fossem chamados de “supostos videntes”. “Pode-se, pacificamente, afirmar: a Virgem não apareceu em Medjugorje”, sentenciou o bispo.
Fonte: correiobraziliense
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