23 de Novembro de 2024

3 curiosos enigmas sobre o tempo (e por que há quem viva nos séculos 15 e 30 simultaneamente)


Poucas coisas são mais misteriosas do que o tempo. E, se você gosta de enigmas, aqui estão alguns aguardando para serem resolvidos.

Preparamos três enigmas relacionados ao tempo com o auxílio da professora de história Helen Parish, da Universidade de Reading, no Reino Unido.

Depois de ler e tentar resolvê-los, basta rolar a tela para encontrar as respostas — e conhecer outras curiosidades sobre o tempo que existem pelo mundo até hoje.

1. A carta impossível

Uma mulher se senta para escrever uma carta na França, no dia 8 de novembro de 1582. E a carta é recebida na Inglaterra três dias antes.

Como isso pode ser possível?

2. O mistério dos aniversários desaparecidos

Uma criança nasce em Roma, na primavera do ano 46 a.C. Ela vive até os 60 anos de idade, mas nunca comemorou o seu aniversário. Por quê?

3. O estranho envelhecimento do agricultor

Depois de trabalhar nos campos no último dia de dezembro do ano 800 a.C., um agricultor guarda suas ferramentas e vai dormir.

No primeiro dia do Ano Novo, ele pega de volta suas ferramentas e recomeça o trabalho. Mas ele está dois meses mais velho.

O que aconteceu?

1. A carta impossível

Nos anos 1500, o velho calendário juliano foi substituído pelo calendário gregoriano.

Mas os diversos países da Europa adotaram o novo calendário em épocas diferentes. Com isso, os dias do continente ficaram fora de sincronia, deixando alguns países vários dias ou semanas atrás dos outros.

2. O mistério dos aniversários desaparecidos

Os romanos costumavam usar meses adicionais, conhecidos como "meses intercalados". Eles eram acrescentados em situações específicas, para realinhar o ano romano de 355 dias ao ano solar.

A criança em questão nasceu no mês intercalado, chamado mercedônio.

E o mercedônio foi acrescentado pela última vez na primavera do ano 46 a.C., de forma que o dia do aniversário daquela pessoa nunca mais se repetiu.

3. O estranho envelhecimento do agricultor

Antes do calendário juliano, o ano em Roma tinha apenas 10 meses. Os cerca de 60 dias de inverno, durante os quais não havia trabalho agrícola, não eram incluídos no calendário.

De forma que, nesse período do inverno, não havia o conceito real de "meses".

Estes enigmas podem parecer curiosidades do passado. Mas, mesmo no nosso mundo moderno, existem peculiaridades no calendário tão interessantes quanto estas.

Muitas culturas contam os anos e as idades de forma diferente – e se dão bem com isso.

Estamos no ano de 2024 em todo o mundo. Mas, em Mianmar, o ano é 1385. E, se você for à Tailândia, irá embarcar rumo ao ano 2567.

Os marroquinos estão rezando em 1445 e cultivando a terra em 2973, segundo o calendário berbere.

Já a Etiópia está em 2016. Lá, o ano tem 13 meses. Pagum?, o mês adicional, pode ter cinco dias — ou seis, se o ano for bissexto.

E, na Coreia do Sul, o dia de Ano Novo é o aniversário de todas as pessoas.

Os sul-coreanos consideram tradicionalmente que nascem com um ano de idade. A partir dali, eles têm a todo momento duas ou três idades oficiais: a idade doméstica tradicional, a idade internacional (que conta a partir do zero) e um ano de bônus quando todo o país envelhece junto, no dia 1º de janeiro — ou, simbolicamente, no Ano Novo Lunar.

E os coreanos ainda podem escolher se comemoram seus aniversários pelo calendário gregoriano ou pelo calendário lunar tradicional — embora toda esta tradição esteja se alterando.

As datas servem de base para as nossas vidas. São uma daquelas coisas que parecem simplesmente existir.

Mas é claro que qualquer data específica (1º de janeiro de 2024, por exemplo) é a convenção estabelecida por um sistema de contagem do tempo – neste caso, o calendário gregoriano.

Por ser o calendário padrão global aprovado pela Organização Internacional de Normalização (ISO, na sigla em inglês), adotado em todos os setores internacionais, desde a aviação até a política, é fácil imaginar que o calendário gregoriano deve ser absolutamente preciso e eficiente – o que não é verdade.

O calendário gregoriano cresceu até dominar o mundo, em grande parte, por ter surgido no lugar certo, no momento certo e na cultura imperialista certa.

O papa Gregório 13 (1502-1585) ordenou a reformulação do calendário para corrigir distorções acumuladas ao longo dos séculos.

Produto da doutrina religiosa e da ciência do Renascimento, o calendário gregoriano foi criado para corrigir a diferença entre o ano litúrgico católico (baseado, na época, no calendário juliano) e o ano solar real.

Na época em que o papa Gregório 13 ordenou a reforma do calendário, no final do século 16, o calendário juliano estava fora de sincronia com as estações do ano em cerca de 10 dias.

Isso ocorreu porque o calendário juliano apresentava um pequeno erro de 11 minutos e 14 segundos por ano. Era uma matemática impressionante para o ano 45 a.C., mas essa discrepância inevitavelmente se acumulava ao longo dos séculos.

A reforma do papa reduziu o erro anual do calendário para 26 segundos. Mas sua introdução, em 1582, imediatamente encontrou resistência.

Nem os protestantes, nem os cristãos ortodoxos, estavam dispostos a reelaborar seu conceito de tempo com base em um decreto papal. Por isso, apenas os países católicos da Europa adotaram o novo calendário a tempo para o ano de 1600.

Outras regiões começaram a adotar o novo calendário nos séculos que se seguiram. A Alemanha e a Holanda, protestantes, oficializaram a mudança em 1700, enquanto a Inglaterra e suas colônias fizeram o mesmo em 1800.

Em 1900, países não cristãos distantes, como o Japão e o Egito, já haviam adotado o novo calendário, mas países ortodoxos como a Romênia, a Rússia e a Grécia ainda resistiram por boa parte do século 20.

Foi somente no ano 2000 que a Europa inteira saudou a chegada de um novo século no dia primeiro de janeiro, pelo calendário gregoriano.

Mas a maior parte das principais potências imperiais já adotava o novo calendário em meados do século 19, quando o período colonial colocou mais de 80% do planeta sob domínio europeu.

Esse período coincidiu com um movimento das comunidades científicas e comerciais europeias e norte-americanas pela adoção de um calendário universal para facilitar o comércio. E, quase por falta de alternativas, o calendário gregoriano venceu.

Nas regiões que não foram conquistadas pela Europa, o calendário se espalhou por outros meios.

No seu livro The Global Transformation of Time ("A transformação global do tempo", em tradução livre), a historiadora Vanessa Ogle sugere que o capitalismo, a evangelização e a paixão científica pela uniformidade fizeram mais para padronizar o tempo do que qualquer política imperialista.

O colonialismo não chegou a ser um fator essencial. Beirute estava sob domínio otomano quando as datas gregorianas apareceram nos seus almanaques, no final do século 19. E o Japão nunca foi colonizado, mas adotou o calendário gregoriano em 1872.

Esta aceitação pode ter sido mais fácil porque se sabia que não seria uma relação monogâmica. Afinal, o uso de vários calendários paralelos já existia milênios antes da criação do calendário gregoriano.

Os antigos egípcios e os maias, por exemplo, usavam dois calendários, o religioso e o administrativo.

O rei coreano Sejong, o Grande, encomendou especificamente dois sistemas para sua reforma do calendário nos anos 1430. Um deles era adaptado do calendário chinês e o outro, do calendário árabe.

Na Beirute dos anos 1880, o calendário gregoriano era apenas um dos quatro calendários usados no dia a dia.

E o próprio Japão, que adotou inteiramente o calendário gregoriano, manteve seu sistema de datas imperiais, o calendário Rokuyo de dias auspiciosos e o calendário 24 Sekki de mudanças das estações do ano. Todos eles são utilizados até hoje.

A antropóloga social Clare Oxby estudou o uso de calendários na região do Sahel e no Saara. Ela cunhou a expressão "pluralismo de calendários" para descrever a coexistência de diversos sistemas de contagem do tempo, da mesma forma que o pluralismo legal indica sociedades com diversos sistemas de legislação.

Pode parecer malabarismo, mas, na prática, calendários diferentes atendem diferentes funções.

No norte da África, as comunidades imazighen, os tuaregues e outros povos de fala berbere podem usar três ou quatro sistemas simultaneamente: calendários estelares marcam as estações agrícolas; o calendário lunar islâmico orienta as práticas religiosas; e o calendário gregoriano determina as interações com o governo.

Viver em diversas linhas do tempo pode ser uma forma prática de unificar diferentes necessidades temporais.

Este conceito não é totalmente desconhecido na Europa e na América do Norte. As pessoas têm anos escolares e anos fiscais, por exemplo. De certa forma, é apenas questão de quando você começa a contar.

"Provavelmente, o uso de diversos calendários paralelos está muito mais presente no nosso mundo contemporâneo do que pensamos", afirma Oxby.

Mas, embora o pluralismo tenha sido uma presença constante ao longo da história, os calendários mudam todo o tempo. Os calendários atuais podem sofrer alterações daqui a apenas algumas décadas.

"Você pode ter mais [calendários] e eles podem ser diferentes. A cultura humana está em constante evolução", explica ela.

A comunidade imazighen comemora o Ano Novo conforme o seu próprio calendário em Tizi-Ouzou, na Argélia.

Uma mudança cultural em andamento hoje em dia é o crescimento do mundo digital.

Os cabos de fibra óptica substituíram as antigas rotas comerciais, levando o calendário gregoriano para lugares que o colonialismo não conseguia alcançar. E, pelo menos até agora, a conectividade criou um novo tipo de pluralismo de calendários.

O Nepal é um dos poucos países do planeta em que o calendário nacional não é o gregoriano. Oficialmente, o país vive no ano 2080 (pelo calendário Bikram Sambat) ou 1144 (segundo o Newari Nepal Sambat), ou ambos.

Ao todo, pelo menos quatro calendários são usados entre diferentes grupos étnicos do país, com diversos dias de Ano Novo.

O Nepal também está 15 minutos fora de sincronia com os demais fusos horários. É um país com sua própria linha temporal.

Ainda assim, muitos cidadãos nepaleses não veem motivo para usar diversos calendários simultaneamente. O caso de Sanjeev Dahal é um exemplo.

"Uso apenas o calendário Bikram Sambat", explica ele. "Nunca usei o Nepal Sambat na vida."

Esta não é exatamente uma questão monotemporal. O calendário Bikram Sambat inclui diversas formas religiosas e culturais de contagem do tempo ao longo do seu ano solar, com 12 meses lunares e seis estações.

Mas Dahal é hindu e mora na capital do Nepal, Katmandu. E, para ele, este sistema cobre todos os aspectos da sua vida, dos dias de jejum até o dia de pagamento.

Dahal precisa de apenas um calendário dentro do Nepal, mas ele é estudante de PhD à distância do Boston College, nos Estados Unidos. Ele estuda a diáspora nepalesa.

Por isso, ele mantém uma complicada interação com o calendário de outra cultura: a cultura digital, que é quase exclusivamente gregoriana, como a Europa imperialista do século 19.

"Eu existo em dois espaços e tempos", explica Dahal.

Ele encontrou uma solução tecnológica para esse enigma. Seu laptop está em 2024 e seu telefone celular em 2080. E um aplicativo o ajuda a se orientar entre os dois.

Para Dahal, existe uma divisão geracional no uso do calendário. Seus pais não usam o calendário gregoriano para nada.

Mas, entre seus amigos, existe também uma divisão funcional, com o gregoriano sendo usado comercialmente e o Bikram Sambat para eventos sociais e familiares.

O calendário ocidental pode dominar as redes sociais (e, portanto, decidir quando as pessoas enviam votos de feliz aniversário), mas é inútil para aspectos importantes da cultura nepalesa, como determinar dias auspiciosos e acompanhar os ciclos lunares.

Por todos estes motivos, Dahal não acredita que o calendário gregoriano venha a ser oficializado no futuro próximo.

No Nepal, a sensação de tempo é diferente do resto do planeta.

A história pode correr em círculos.

Como no movimento pelo Calendário Mundial no final do século 19, o século 21 vem observando uma tendência pela unificação do calendário, por razões econômicas.

Em 2016, a Arábia Saudita mudou o cronograma de pagamento dos funcionários do governo do calendário islâmico para o gregoriano, o que foi interpretado, em grande parte, como uma medida de redução de custos.

E, em dezembro de 2022, a Coreia do Sul aprovou uma lei alinhando a contagem de idade das pessoas aos padrões internacionais. A contagem tradicional deixou de ser oficial no país, já que o sistema de múltiplas idades é considerado economicamente ineficiente.

Mas o que se ganha e o que se perde ao consolidar o calendário em um só, especialmente um calendário criado para ser usado em outra época e em um lugar diferente?

"Bem, os governos podem aumentar seu controle impondo calendários centralizados", afirma Clare Oxby. Ela também escreveu sobre a dinâmica de poder do uso dos calendários.

Mas "o país pode perder em história e diversidade cultural. As pessoas podem sair perdendo. Se elas fizerem parte de uma cultura regional minoritária, elas podem se sentir subvalorizadas nacionalmente."

Mais uma vez, 150 anos de globalização não tornaram o pluralismo obsoleto. Os calendários vão e vêm – e, mais frequentemente, eles mudam.

E, se há uma coisa que os seres humanos fazem muito bem, é mudar.

Leia a versão original (em inglês) das duas matérias que deram origem a esta reportagem:

"Leap year: Can you solve these time riddles?", de Martha Henriques.

"The people who live in multiple timelines", de Erin Craig.

Fonte: correiobraziliense

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