Relógios de luxo, uma operação policial e um pedido de impeachent: o Peru vive mais uma vez um escândalo político que põe em xeque a estabilidade do governo de Dina Boluarte.
A presidente do país é investigada por supostamente possuir mais de uma dezena de relógios caros, com os quais apareceu publicamente desde que começou no governo como vice-presidente e ministra do Desenvolvimento e Igualdade, e posteriormente como sucessora do agora ex-presidente Pedro Castilho.
A promotoria peruana acusa Boluarte de enriquecer de forma ilícita e de omitir as joias nas declarações de patrimônio.
Foi com base em uma reportagem publicada no dia 14 de março pelo meio de comunicação peruano La Encerrona que as investigações começaram.
Jornalistas da plataforma multimídia analisaram milhares de fotografias de arquivo de Boluarte em eventos que ela participou. A presidente peruana portava relógios, alguns possivelmente da marca Rolex, avaliados em milhares de dólares.
Durante a investigação, as autoridades invadiram a residência dela e o Palácio do Governo entre a noite de sexta-feira e a madrugada de sábado (dias 29 e 30 de março, respectivamente). A operação foi duramente criticada pela presidente.
Nesse mesmo sábado, num vídeo pré-gravado em que apareceu ladeada por ministros, Boluarte disse que achou "surpreendente" a forma como a operação foi realizada e que é vítima de "assédio sistemático".
"É uma medida arbitrária, desproporcional e abusiva", classificou ela.
No discurso, a primeira mulher a presidir o Peru mal mencionou o caso contra ela. Segundo o argumento, essa foi uma recomendação dos advogados que fazem sua defesa.
"Desde quando um setor da imprensa se preocupa com o que um presidente veste ou não? Espero e quero acreditar que não se trata de uma questão sexista ou discriminatória", afirmou ela.
Também no sábado, o partido Peru Libre apresentou um pedido de vacância (impeachment) que neste momento só conta com apoio dos partidos de centro-esquerda.
Na noite desta segunda-feira (1/4), a presidente empossou seis novos ministros, incluindo um novo titular da Justiça, dois dias antes de o gabinete dela comparecer ao plenário do Congresso peruano para solicitar um voto de confiança.
Até agora, nenhum dos ministros que deixaram os cargos questionou publicamente Boluarte por causa do caso Rolex.
Nesta reportagem, apresentamos três pontos-chave para entender tudo o que está acontecendo no Peru — e o que pode ocorrer durante esta semana, quando Boluarte deverá testemunhar perante o Ministério Público e os congressistas debaterão a continuidade da presidência dela.
A investigação contra Boluarte começou com uma publicação do meio de comunicação La Encerrona, cuja equipe recebeu relatos de diversas fontes que afirmavam que a presidente usava relógios Rolex, possivelmente avaliados em milhares de dólares, que não haviam sido declarados por ela.
Foi por isso que em fevereiro deste ano — diz Marco Sifuentes, diretor do La Encerrona — o veículo decidiu analisar as fotografias das atividades públicas de Boluarte arquivadas pelo próprio governo.
Os jornalistas montaram uma base de dados e perceberam que a presidente, desde que assumiu o cargo de Ministra do Desenvolvimento e Inclusão Social, em 2021, usou cerca de 15 relógios diferentes.
Nas primeiras aparições, ela tinha um relógio da marca Michael Kors, que, segundo Sifuentes, não valia mais do que US$ 200 (R$ 1.000).
Mas, com o passar dos meses à frente do ministério, e depois de assumir a presidência do país em dezembro de 2022, Boluarte começou a ser vista com modelos que parecem mais caros.
"Confirmamos que um deles era um Rolex, avaliado em pelo menos US$ 14 mil (R$ 70 mil), porque tínhamos muitas imagens de alta qualidade. Não queríamos dizer que os outros eram Rolex, tínhamos dúvidas sobre outros três, mas a mídia peruana afirma que são da mesma marca após consultar especialistas", detalha Sifuentes.
Segundo as regras do país sul-americano, um governante eleito deve apresentar uma declaração juramentada sobre bens que excedam o valor de 10.300 soles (R$ 14 mil), explica o jornalista peruano Martín Riepl, jornalista do Latina Noticias e colaborador da BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
O La Encerrona confirmou que Boluarte não declarou os relógios. As peças tampouco foram adquiridas por algum órgão governamental.
"Pedimos informações à chancelaria, responsável pelo protocolo do governo, para saber se eles haviam adquirido algum relógio, mas eles nos disseram que não. Também pedimos explicações a Dina Boluarte, mas ela não respondeu. Em suas declarações juramentadas, não há indícios desses aparelhos. Se fossem presentes, também deveriam ter sido declarados", detalha Sifuentes.
Desde então, a presidente fez poucas aparições públicas. Mas numa delas, realizada no dia 16 de março, disse que o suposto Rolex a que se refere o La Encerrona era um bem de "ontem", que comprou com esforço próprio.
"O que quero dizer, não às notícias tendenciosas, mas a todo o Peru, é que trabalho desde os 18 anos e o que tenho é fruto do meu esforço e do meu trabalho. O relógio em particular é de antigamente, utilizo-o muito ocasionalmente", afirmou ela, recusando-se depois a dar mais respostas sobre o assunto.
Sifuentes garante que a resposta da presidente não é "satisfatória", porque os relógios "são modelos lançados na última década".
Riepl acrescenta que Boluarte, antes de assumir cargos políticos, era funcionária do órgão encarregado de emitir identificações no Peru, onde ganhava cerca de 4.500 soles por mês (pouco mais de R$ 6 mil).
Seu salário como ministra era de 30.000 soles (R$ 40 mil), valor que foi reduzido para 15.500 (R$ 21 mil) quando ela se tornou presidente.
A mídia local também informou que as autoridades detectaram cerca de 300 mil dólares em depósitos de origem desconhecida feitos nas contas pessoais de Boluarte antes de ela assumir o cargo.
Por conta dessas denúncias, o Ministério Público peruano decidiu abrir uma investigação a partir do dia 18 de março.
Durante a noite de sexta-feira e a manhã de sábado, os peruanos assistiram com surpresa enquanto as autoridades arrombavam a residência de Boluarte no bairro de Surquillo, na capital Lima.
A operação, conduzida por promotores e policiais, foi transmitida pela rede Latina de Televisão. O Palácio do Governo e o veículo da presidente também foram revistados.
Embora nos últimos anos o país tenha visto os seus políticos investigados e processados ??criminalmente, incluindo presidentes, Riepl afirma que a forma como as autoridades invadiram a casa de Boluarte foi incomum.
A Polícia alegou que esperaram pelo acesso e, como ninguém respondeu, entraram à força. A presidente disse que ela não se encontrava em casa, mas o filho estava, mas não teve tempo suficiente de atender a campainha.
A busca ocorreu porque na semana passada Boluarte não compareceu para prestar um depoimento e mostrar os supostos relógios, após ser convocada pelo Ministério Público. Ela alegou que tinha uma agenda muito ocupada.
"O Ministério Público solicitou ordem judicial para revistar a casa dela porque havia risco processual iminente de perda, dano ou destruição dos relógios em meio à investigação", explica Riepl.
Os relógios não foram encontrados na operação, mas foram detectadas algumas joias e documentos que refletem a aquisição de pelo menos um Rolex no dia 8 de julho de 2023.
"Isso contradiz as declarações de Dina Boluarte, quando ela comentou que o seu relógio era fruto do trabalho desde os 18 anos e que ele era antigo", continua Riepl.
A declaração de Boluarte ao Ministério Público havia sido remarcada para o próximo dia 5 de abril mas, diante da operação, a própria presidente pediu que fosse antecipado para acontecer "o mais rápido possível".
O Ministério Público ainda não respondeu à solicitação da presidente.
Como resultado dos últimos acontecimentos, a bancada do partido Peru Libre apresentou um pedido de destituição da presidente perante o Congresso, com a assinatura de pelo menos 26 dos 130 congressistas.
"Acabamos de apresentar o pedido de impeachment contra Dina Boluarte, por incapacidade moral permanente decorrente da questão Rolex, no exercício da função parlamentar de controle político", informou sábado a parlamentar Margo Palacios em sua conta no X, o antigo Twitter.
Entre os que apoiam o pedido, a maioria pertence ao Peru Libre ou integra outros partidos de esquerda, como Mudança Democrática, Juntos pelo Peru e Bloco Magisterial, que apoia o ex-presidente Pedro Castillo.
Para este grupo político, Boluarte ocupa a presidência de forma inconstitucional.
A esquerda também a culpa pelas 80 mortes e pelos mais de mil feridos que foram vítimas da repressão policial durante os protestos após a prisão de Castillo.
A advogada assumiu o cargo atual em dezembro de 2022, depois que o antecessor foi preso por dissolver o Congresso e declarar um governo de emergência.
No Congresso do Peru, detalha Riepl, são necessários 87 dos 130 votos para destituir um presidente. Segundo ele, "não há votos para remover Boluarte, mas vários grupos pediram que ela esclareça a origem dos relógios, apesar de considerarem um novo impeachment algo muito precipitado".
Para Riepl, se os congressistas aprovarem um julgamento contra Boluarte, isso poderá levar a uma antecipação das eleições, "o que implica que também terão que abandonar os próprios cargos, algo que não querem enfrentar até 2026, quando termina o atual mandato."
Isso não significa, continua o jornalista, que os legisladores não responsabilizem a presidente pelos relógios e a convoquem para testemunhar perante o Congresso.
Mas ele acredita que "se ela não se explicar corretamente, o que pode acontecer é que o caso seja arquivado, e o debate adiado, até que seja útil aos congressistas".
"É uma carta que eles podem jogar em algum momento se algo ainda mais forte não aparecer pelo caminho", conclui ele.
Fonte: correiobraziliense
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