O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, promulgou na quarta-feira (3/04) uma lei aprovada pela Assembleia Nacional do País que, na prática, criou um estado venezuelano em Essequibo.
Essa é uma região rica em petróleo e outros minerais atualmente controlada pela Guiana e alvo de uma disputa de mais de um século de duração entre os dois países.
Esse Estado vem sendo chamado pelas autoridades venezuelanas de Guiana Essequiba.
A lei determina, entre outras coisas, que o poder sobre Essequibo deverá ser exercido pelo presidente da Venezuela até que o governador e parlamentares do novo Estado sejam escolhidos.
A lei também proíbe a impressão do mapa da Venezuela sem que conste como parte do território do país a região que hoje é disputada com a Guiana.
Ela também concede ao governo da Venezuela o poder de proibir a "a celebração de contratos ou acordos com pessoas jurídicas que operem ou colaborem com operações estrangeiras nos territórios terrestres" da região em disputa.
Este artigo afeta, principalmente, empresas que já exploram petróleo na região sob autorização do governo da Guiana.
A promulgação é o episódio mais recente de uma escalada retórica que ganhou força a partir do segundo semestre do ano passado e que chegou a fazer com que países como o Brasil reforçassem o seu contingente militar na fronteira com Venezuela e Guiana.
Mas apesar dos discursos, ainda não há clareza sobre o que a promulgação da nova lei significará na prática para a vida das pessoas que vivem na região. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e pela BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, avaliam que a promulgação da lei agrava a crise diplomática entre os dois países, teria relação com o clima eleitoral vivido pela Venezuela, mas não significa que, pelo menos agora, a região será fisicamente ocupada pelo governo da Venezuela.
Ainda não estão claros quais serão os próximos passos do governo venezuelano após a promulgação da lei.
Em seu discurso durante a cerimônia em que promulgou o texto, Maduro não anunciou, por exemplo, se vai enviar tropas ou outros contingentes para a região que o governo venezuelano reivindica, o que poderia levar a uma escalada militar.
De acordo com a legislação venezuelana, no entanto, a chamada Guiana Essequiba deverá eleger seus primeiros parlamentares a partir de 2025.
No campo diplomático, no entanto, já houve reações da Guiana.
Em uma nota divulgada nas primeiras horas desta quinta-feira (4/04), a presidência do país criticou a medida tomada por Maduro classificando-a como uma "violação flagrante" de compromissos firmados pelo país.
"Esta tentativa da Venezuela de anexar mais de dois terços do território soberano da Guiana e torná-la parte da Venezuela é uma violação flagrante dos princípios mais fundamentais do direito internacional consagrados na Carta das Nações Unidas, na Carta da Organização dos Estados Americanos", diz um trecho da nota.
Na nota, o governo da Guiana afirmou que não vai permitir a anexação de Essequibo pela Venezuela.
"O Governo da República Cooperativa da Guiana deseja alertar o Governo da República Bolivariana da Venezuela, os Governos da Comunidade do Caribe e da Comunidade Latino-Americana e Caribenha de Nações, bem como o Secretário-Geral da Nações Unidas e ao Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, que não permitirá a anexação, apreensão ou ocupação de qualquer parte do seu território soberano", disse outro trecho da nota.
O país também reafirmou que aguarda uma decisão final da Corte Internacional de Justiça (CIJ), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), para resolver a disputa entre os dois países. A Venezuela, no entanto, não reconhece a legitimidade da Corte para solucionar a controvérsia.
A BBC News Brasil enviou questões à CIJ, mas até a conclusão desta reportagem nenhuma resposta havia sido enviada.
A professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Caroline Pedroso disse à BBC News Brasil que a promulgação da lei não deverá levar a uma invasão do território de Essequibo.
"[A promulgação] não significa necessariamente que vai haver uma invasão. Olhando pras condições reais e concretas, não é factível que isso ocorra agora. Para a Venezuela colocar tropas em Essequibo, ela teria que passar pelo território brasileiro e isso me parece fora de cogitação", disse a professora.
"Uma escalada militar, hoje, não traria benefícios para o governo venezuelano", afirmou Pedroso.
A professora disse acreditar que o movimento feito por Maduro está relacionado com as eleições presidenciais que deverão ocorrer em julho deste ano. A tese é de que o líder venezuelano estaria insistindo na polêmica em torno de Essequibo como forma de mobilizar o eleitorado em torno do assunto como forma de ter vantagens sobre seus adversários.
"Uma coisa está, sim, bastante ligada à outra. Nos acordos de Barbados [acordo firmado entre o governo e líderes da oposição], há uma previsão de que todos os candidatos à Presidência devem ser comprometer à defesa da soberania do território venezuelano e do pleito sobre Essequibo", disse a professora.
A principal opositora de Maduro no país, Maria Corina Machado, rechaçou a realização do referendo e defendeu que o caso seja decidido pela Corte Internacional de Justiça. Machado está impedida de disputar as eleições deste ano.
Para o professor Carlos Romero, da Escola de Estudos Internacionais da Universidade Central da Venezuela (UCV), a promulgação da lei não deverá resolver os problemas em torno de Essequibo.
“A lei em nada vai contribuir para resolver o conflito bilateral e garantir a paz regional”, afirmou o professor.
"A lei assume a tese do governo da Venezuela de que a Guiana Essequiba já faz parte do território nacional. Isso gera um problema de direito internacional, porque implica a anexação de fato de um território que, ainda que seja reivindicado pela Venezuela, forma parte da Guiana até que se decida o contrário", afirmou.
Por sua parte, o internacionalista Mariano de Alba considerou que a lei não é mais do que um gesto.
"O que a lei fez é reconhecer o que foi e têm sido as posições da Venezuela em relação à sua disputa territorial com a Guiana. É certo que precedeu a criação do estado de Guiana Essequiba, mas se o governo venezuelano não tomar ações adicionais para executar isso , a realidade é que a lei tem um caráter bastante simbólico", explicou o assessor da organização Crisis Group.
O principal pesquisador sobre América Latina da Chatham House de Londres, Christopher Sabatini, expressou à BBC Mundo sua preocupação com o que classificou como "o aumento da tendência belicista venezuelana contra a Guiana".
"Cada passo que dá Maduro neste tema mete mais e mais dentro de um beco do qual eu acredito que seja difícil de sair", disse o especialista.
Duas fontes do Ministério das Relações Exteriores (MRE) ouvidas em caráter reservado afirmaram que, neste momento, a chancelaria brasileira ainda avalia se irá se manifestar sobre a promulgação da lei. A cautela, afirmaram, é uma tentativa de manter os canais de diálogo com o governo venezuelano apesar do novo episódio da crise envolvendo Essequibo.
Uma delas afirmou que o Itamaraty está consultando sua equipe na Venezuela para entender as repercussões práticas da promulgação da lei antes de tomar alguma medida.
Segundo ela, o governo brasileiro também avalia se a promulgação da lei e as declarações de Maduro durante a cerimônia violaram os termos da declaração conjunta que Guiana e Venezuela fizeram após um encontro entre Maduro e Irfaan Ali no dia 14 de dezembro, em São Vicente e Granadinas.
Na ocasião, os dois países se comprometeram a não "escalar qualquer conflito ou desacordo" por meio de palavras ou promessas.
Na quarta-feira, no entanto, Maduro acusou o governo da Guiana de não controlar a Guiana e deixar a região sob o comando de petroleiras norte-americanas e da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA).
Sem apresentar provas, Maduro afirmou que os Estados Unidos teriam montado bases secretas no país vizinho.
"Temos informações comprovadas que no território da Guiana Essequiba, administrada temporariamente pela Guiana, foram instaladas bases militares secretas do comando sul, núcleos militares do Comando Sul e núcleos da CIA", disse Maduro em referência ao Comando Sul das Forças Armadas dos Estados Unidos, que atua na região da América Latina.
Uma outra fonte do Itamaraty ouvida pela BBC News Brasil afirmou que a escalada de Maduro nesta semana era um movimento avaliado como "possível" pelas autoridades brasileiras em função do afunilamento do calendário eleitoral do país.
A BBC News Brasil enviou questões sobre o caso para o MRE, mas até a conclusão desta reportagem, nenhuma resposta foi enviada.
A previsão é de que as eleições presidenciais no país ocorram no dia 24 de julho deste ano. O processo eleitoral, no entanto, vem sendo criticado por oposicionistas e até mesmo por aliados de Maduro como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Na semana passada, o presidente classificou como grave o fato de a candidata de oposição Corina Yoris não ter conseguido se registrar para disputar a presidência venezuelana.
"Primeiro, a decisão boa de a candidata proibida pela Justiça indicar uma sucessora. Achei um passo importante. Agora, é grave que a candidata [Corina Yoris] não possa ter sido registrada", disse Lula em entrevista coletiva no dia 28 de março.
O temor de uma escalada retórica de Maduro às vésperas das eleições foi um dos motivos que levaram o Brasil enviar o assessor para assuntos internacionais da Presidência, Celso Amorim, à Venezuela e a São Vicente e Granadinas para conversar como Maduro e acompanhar o encontro dele com o presidente da Guiana, em dezembro.
No campo militar do lado brasileiro, ainda não há informações sobre novas medidas desencadeadas pela promulgação da lei na Venezuela.
No final do ano, porém, em meio ao aumento das tensões na região, o Ministério da Defesa reforçou o número de militares em Roraima. Em novembro, por meio de nota, a pasta disse que vinha "acompanhando a situação" e que por isso havia intensificado suas atividades na região. Foram enviados 28 veículos blindados para a região.
O movimento foi interpretado como uma demonstração de contrariedade do Brasil em relação à retórica de Maduro uma vez que uma anexação militar da Venezuela sobre Essequibo, possivelmente, teria que envolver a passagem de tropas do país pelo território brasileiro.
Em dezembro, contudo, o ministro da Defesa, José Múcio, afirmou que essa hipótese estava descartada.
"Eles só chegarão à Guiana passando, se passassem, por território brasileiro. E nós não vamos permitir em hipótese nenhuma", disse Múcio em entrevista publicada pelo portal G1.
A BBC News Brasil perguntou ao Ministério da Defesa se tomaria novas medidas em função dos últimos acontecimentos, mas até a conclusão desta reportagem, nenhuma resposta havia sido dada.
A promulgação da lei venezuelana acontece em meio a uma disputa territorial entre a Venezuela e a Guiana que tem pelo menos 120 anos. Essequibo é uma área de 160 mil km² a leste da Venezuela coberta por uma densa camada de floresta, rica em petróleo e outros minerais como ouro e diamante.
A Venezuela reivindica esse território como seu desde que uma sentença internacional definiu em 1899 que a área pertencia ao Reino Unido, que na época possuía o que mais tarde se tornou a Guiana independente. A Venezuela, posteriormente, questionou a lisura da sentença, o que reiniciou a disputa sobre a área.
Em 1966, durante o processo de independência da Guiana, foi firmado um novo tratado prevendo que a controvérsia fosse resolvida por meio de uma arbitragem internacional.
A disputa tem se arrastado com intensidade variável desde então e agravou-se nos últimos anos, depois de terem sido descobertas importantes fontes de petróleo e gás na área e de o governo guianês ter concedido licenças para exploração para a empresa americana ExxonMobil.
Foram descobertas reservas de pelo menos 11 bilhões de barris de petróleo que vêm sendo exploradas por petroleiras dos Estados Unidos e da China. A atividade fez com que a Guiana se tornasse um dos países com o maior crescimento econômico nos últimos anos, segundo dados do Banco Mundial.
A disputa está nas mãos da CIJ, apesar de a Venezuela não reconhecer a Corte como apta a arbitrar o caso.
Em 4 de dezembro, o governo venezuelano realizou um referendo no qual a maioria dos eleitores foi a favor da incorporação de Essequibo como um novo Estado da República Bolivariana.
Na tentativa de reduzir a tensão, Maduro reuniu-se com o presidente guianês em 14 de dezembro.
No encontro, facilitado pela diplomacia brasileira, ambas partes concordaram em reduzir a tensão e afastaram o uso da força.
Mas a entrada em cena do governo britânico e o envio de um navio militar para a região provocaram a reação da Venezuela.
Quase simultaneamente com a aparição de Maduro na televisão, o Ministério das Relações Exteriores da Venezuela afirmou em comunicado que Caracas “reserva todas as ações, no âmbito da Constituição e do direito internacional, para defender a sua integridade marítima e territorial”.
À BBC News Brasil, o presidente do país, Mohamed Irfaan Ali, disse que não descartava a possibilidade de permitir que países como os Estados Unidos instalassem bases militares na Guiana.
Fonte: correiobraziliense
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