23 de Novembro de 2024

As mulheres que se rebelam contra venda de meninas para casamentos no México


Inicialmente, Claudia* não havia pedido dinheiro em troca da filha adolescente quando a menina decidiu se casar. Mas ao vê-la tão magra e abatida logo após o casamento, ela pensou que “vendê-la” faria com que o marido e a família dele, com quem a filha mora, a “valorizassem mais”.

Embora esta negociação geralmente seja feita antes do casamento — e não depois — Claudia conversou com os pais do genro e recebeu dele 100 mil pesos mexicanos (cerca de R$ 30 mil) pela filha.

"Se a tivéssemos 'dado' (de graça), eles a teriam expulsado de casa e dito que não vale nada por não terem pago por ela", diz esta mãe que, com 35 anos, já tem cinco filhos e cinco filhas.

Com o filho homem mais velho, ela vivenciou esta prática inversamente. Quando ele se casou, eles tiveram que pagar aos pais da noiva 180 mil pesos (quase R$ 56 mil).

“Do contrário, a família dela teria discriminado ele, e perguntado por que não pagava, se ele era pobre... Esse é o costume aqui”, revela.

Pode-se pensar que a venda de meninas e adolescentes para casamentos são casos isolados — e só acontecem em países distantes. Mas o “aqui” a que Claudia se refere é La Montaña de Guerrero, uma região no sul do México, onde povos indígenas realizam há muitos anos esta prática, com base em seus hábitos e costumes.

La Montaña sobrevive como pode em meio à pobreza extrema e à falta de oportunidades sufocante. Claudia, na verdade, teve que pedir dinheiro emprestado e viajar com parte da família para o norte do México para trabalhar no campo durante vários meses para pagar a quantia que os sogros do filho pediram.

Estas vendas para casamento afetam principalmente jovens adolescentes, mas foram registrados casos, inclusive, de meninas de 9 e 10 anos.

Em algumas comunidades, no entanto, a situação está começando a mudar, e as mulheres estão começando a poder decidir sobre o seu próprio futuro.

Chegar a Itia Zuti, comunidade do município de Metlatónoc, onde Claudia mora, não é uma tarefa fácil.

São cerca de sete horas de carro de Chilpancingo, capital de Guerrero, por uma estrada repleta de curvas que cortam as montanhas da região — e na qual você percorre dezenas de quilômetros sem ver uma viva alma.

Para um estrangeiro, entrar na comunidade também não é simples, sem antes consultar as autoridades locais. E muito menos para falar sobre um tema — a venda de meninas e adolescentes —, que é complexo e incômodo para muitos moradores, que se comunicam principalmente na língua mixteca.

Benito Mendoza sabe bem disso. Ele é facilitador das oficinas e palestras sobre os direitos das mulheres que a ONG Yo Quiero, Yo Puedo (eu quero, eu posso, em espanhol) realiza na região desde 2015, com o objetivo, entre outros, de erradicar esta prática e o casamento infantil forçado.

“Estávamos dando uma palestra em uma escola, e quando um adulto ouviu uma menina dizer que tinha o direito de escolher livremente com quem se casar, eles ficaram alvoroçados e 'nos convidaram a sair' da comunidade”, ele recorda, destacando que muitos moradores chegam a estas oficinas sem ter consciência de que esta prática viola os direitos das mulheres.

Tradicionalmente, muitas meninas eram vendidas a homens mais velhos — às vezes, até estranhos —, para os quais acabavam realizando tarefas domésticas em troca de uma quantia para sua família, que podia variar entre R$ 6 mil e R$ 91 mil.

Quanto mais jovem for a menina, maior costuma ser o pagamento. E, quando são vendidas, elas geralmente vão parar em uma casa onde não vão ter qualquer independência econômica, por não poder estudar nem trabalhar.

Hoje, alguns jovens se conhecem previamente — em muitos casos, por meio da internet fraca e cara que chega à comunidade —, e concordam em se casar, mas os pais continuam a negociar, em geral, um acordo financeiro.

“Com a chegada do crime organizado, até pessoas de fora da comunidade passaram a comprar meninas. Elas saem então do seu entorno, e você as perde de vista, o que pode fazer com que acabem sendo vítimas de outros fenômenos, como o tráfico de mulheres, a exploração infantil, a violência física e sexual…” alerta a psicóloga Karina Estrada, assistente social da Yo Quiero, Yo Puedo.

A venda é vista como salvação econômica para muitas famílias que vivem em situação de pobreza e sobrevivem do cultivo de milho, feijão ou banana para consumo próprio. Não são poucos os que optam por migrar para o norte do México e para os Estados Unidos devido à total ausência de oportunidades de trabalho na cidade.

O município de Metlatónoc foi, na verdade, durante anos o mais pobre do México. Hoje, 97,7% da sua população vive na pobreza (e 67,8% na pobreza extrema) no estado de Guerrero, que também é um dos mais pobres do país e que, durante décadas, foi uma das principais áreas de cultivo de papoula, utilizada para produzir heroína.

Nos últimos anos, no entanto, o preço desta flor despencou após a chegada do fentanil, um opioide sintético, ao mercado de drogas americano. As comunidades que sobreviviam do cultivo da papoula viram desaparecer sua principal — e praticamente única — fonte de renda.

Mas, além da falta de recursos econômicos, outro fator que perpetua esta prática na região é a questão dos estereótipos de gênero em relação às mulheres.

“Não se concebe que as mulheres possam fazer algo além de reproduzir ou cuidar da casa. Quando se decide quem vai à escola, os pais mandam acima de tudo os filhos homens”, explica Georgina García, psicóloga da ONG Yo Quiero, Yo Puedo.

Devido a estas crenças arraigadas, as próprias jovens chegam a normalizar sua venda, atribuindo seu valor à quantia que é paga por elas. Foram registrados, inclusive, casos de mulheres que deram seus filhos homens, pois não conseguem obter benefícios econômicos a partir da venda deles.

García lembra que uma mulher disse a ela que “se eliminassem a venda, tirariam o seu valor e tudo seria tirado dela, porque é a única razão pela qual existem na comunidade”.

Mas algumas mulheres da comunidade não pensam da mesma forma — e lideram um movimento de mudança, lenta mas constante, graças ao apoio imprescindível de suas famílias.

Norma* faz parte da primeira geração de mulheres da sua família que não foi vendida.

“Quando me juntei com meu marido, meu pai disse que não me venderia, porque quando você faz isso, eles podem te maltratar ou prejudicar. Ele fez muito bem”, ela explica com um sorriso.

Ela garante que o não pagamento facilitaria, se fosse necessário, abandonar o lar conjugal para voltar à casa da família sem maiores problemas.

“Mas uma vez que eles pagam por você, você não consegue escapar do seu marido, e eles te forçam a ficar”, diz ela.

As supostas vantagens e desvantagens desta prática são certamente contraditórias porque, ao mesmo tempo, Norma afirma que "o pressuposto é que os homens que pagam devem respeitar as esposas; mas quando não se paga, dizem que isso dá a eles o direito de sair com outras pessoas ou não dar atenção à esposa".

Dado o quão profundamente arraigada esta prática está, erradicá-la na comunidade não vai ser fácil. Na verdade, só de falar sobre isso já é complicado — e Norma pede para não ser fotografada.

“Quem cobra pelas meninas pode retaliar”, responde a mãe dela, presente na entrevista.

Soyla, uma jovem sorridente de 21 anos que acaba de anunciar que vai se casar com um rapaz que conheceu na comunidade, conta que está igualmente satisfeita por seus pais não cobrarem por ela.

“Estou feliz e orgulhosa porque pensaram em mim, que posso conseguir tudo o que quiser com o meu parceiro. Porque alguns casamentos pagos têm problemas, você não sabe como pode acabar, o homem começa a repreender (a mulher)... e então eles se divorciam", afirma.

Ela sabe que se casar na sua idade é uma raridade no povoado, mas reitera que foi sua decisão esperar. Assim como quando ela terminou o ensino médio aos 15 anos, e decidiu não continuar estudando, embora seus pais sempre terem dito que iriam apoiá-la.

No futuro, ela se vê se dedicando ao lar e à tecelagem artesanal, enquanto o marido trabalha no campo. Ela conta que quer ter filhos, e vai dar a eles a mesma oportunidade que seus pais deram a ela de escolher quando e com quem se casar.

A mãe dela, Cecilia, que acaba de preparar uma canja de galinha e umas tortilhas enormes, explica sua decisão.

“Muitos vendem as filhas, mas as consequências são para elas. Alguns dizem: 'Levanta cedo, faz comida, lava minha roupa, foi para isso que te comprei'... Isso reforçou minha decisão de não vender Soyla.”

Jaime, o pai da jovem, lembra que ela pediu a ele que a deixasse crescer — e não tivesse a responsabilidade de cuidar do lar conjugal tão nova.

“E fiz isso, também porque tinha a capacidade de continuar sustentando ela. Muitos não conseguem, e é aí que mandam (as filhas) em busca de marido”, diz ele.

“Esse negócio de vender me parece errado, porque quando meus outros dois filhos homens se casarem, eles podem virar para mim e pedir dinheiro para as noivas. Mas pelo menos não vão jogar na minha cara que vendi minha filha por tanto, por que não quero pagar agora ou que estou pechinchando”, enfatiza.

Algumas das consequências destas vendas e casamentos de menores de idade — o México é o oitavo país com a maior taxa de casamento infantil no mundo, segundo a ONU — são o abandono escolar por parte de muitas jovens, e as elevadas taxas de gravidez entre adolescentes.

“A educação sexual aqui é um tabu total. Há quem entenda a questão da gravidez na adolescência e, quando os filhos se casam, os trazem aqui para que planejem. Mas são uma minoria. Vemos muitos casos de gestação de meninas entre 14 e 16 anos”, diz Celia Ortiz, enfermeira do pequeno centro de saúde comunitário, que não conta com um médico.

“São elas que geralmente planejam. Até que o sogro intervém, porque como elas são compradas, quem manda é a família dele”, ela acrescenta, antes de continuar caminhando pelas ruas da comunidade sob um Sol escaldante para vacinar os cães contra raiva em algumas moradias.

“Tem que ser assim, as pessoas não vão ao centro médico.”

Embora em comunidades como esta se saiba que a venda de meninas é muito comum, é impossível quantificar o número de casos que acontecem no México.

Um dado a levar em consideração seria o do Censo Demográfico de 2020, que concluiu que 4% dos adolescentes entre 12 e 17 anos no México estavam ou estiveram em algum tipo de união conjugal, principalmente nos estados de Chiapas, Oaxaca, Guerrero e Yucatán.

No entanto, dado que o Código Civil do país proíbe desde 2019 o casamento entre menores de 18 anos, e prevê desde o ano passado penas entre oito e 15 anos de prisão como punição, as organizações consideram que as uniões informais de adolescentes aumentaram desde então, o que contribui para a subnotificação — e para que a realidade não seja refletida nas estatísticas.

Sentado na porta da delegacia municipal para enfrentar o calor sufocante, o comissário (líder comunitário) de Itia Zuti, Félix Hernández, olha para a quadra de esportes completamente vazia, bem em frente à igreja do povoado.

É um homem de 65 anos, embora pareça mais velho. Ele tem problemas de audição, não sabe ler nem escrever, e diz que não falar espanhol dificulta a negociação de melhorias para a cidade, como a instalação de um sistema de drenagem, reformar as estradas ou construir um mercado e um centro de saúde bem equipado.

Quando visitamos o povoado, a comunidade estava sem eletricidade há três dias. Ele reconhece que aceitou o cargo — pelo qual não ganha um peso sequer — porque os poucos moradores que têm escolaridade acabam saindo da comunidade.

Ele admite que a venda de meninas é uma questão “complicada”, que divide opiniões.

“Para mim é errado, mas quando você questiona as famílias das jovens, elas dizem que as sustentaram, e que só elas têm capacidade de decidir por suas filhas”.

Reconhece também que se uma jovem recorresse a ele com um problema no contexto de um casamento forçado, o seu papel, junto ao resto das autoridades locais, seria o de aconselhar e, apenas no caso de não haver solução para o conflito do casal, defender que a menina volte para a casa da família — e que os pais devolvam o dinheiro da venda.

Na verdade, embora tenha sido assinado um acordo na sua comunidade para proibir a venda de meninas, um mês antes de ele assumir o cargo, o comissário admite que não sabia da existência deste documento.

“As leis existem, mas é importante fundamentá-las e harmonizá-las com a realidade das nossas comunidades. Sem levar em conta o contexto na hora de aplicar as regras, encheríamos as prisões de pessoas indígenas”, pondera Martha Ramírez, chefe do Centro Coordenador do Instituto Nacional dos Povos Indígenas (INPI) da cidade de Tlapa de Comonfort, em Guerrero.

Além disso, ela destaca, é importante não responsabilizar apenas as comunidades por esta prática.

“O Estado tem que garantir os direitos fundamentais das mulheres para terem uma vida livre e sem violência. Não se pode falar em erradicar o casamento forçado em um lugar onde as meninas não têm nem certidão de nascimento, nem educação…”

Enquanto as coisas vão mudando pouco a pouco, Claudia, a mulher que acabou vendendo a filha na esperança de que isso melhoria o relacionamento dela com o marido, reconhece que nada mudou — e que não descarta trazê-la de volta para casa, se os abusos contra a jovem, agora grávida de dois meses, continuarem.

“O que eu tenho é uma tristeza muito grande porque ela mora longe da nossa comunidade. E estou preocupada que a irmã dela, que está completando 15 anos, também possa ir embora, mas ela me disse que quer ir para os Estados Unidos trabalhar e construir uma casa para mim. Que não quer se casar por enquanto."

*Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas.

Fonte: correiobraziliense

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