Diante da corrida para a produção de carros elétricos, o Brasil deu largada na pavimentação da estrada para os automóveis do futuro. O processo de eletrificação da frota ocorre no mundo todo, mas está mais avançado nas grandes potências. No âmbito doméstico, apesar de uma frota ainda pequena, há uma tendência clara de crescimento.
O país viveu um salto de popularidade dos veículos eletrificados - elétricos e híbridos - nos últimos anos, e o governo federal anunciou medidas ao setor automotivo, como subsídios para montadoras que investirem na energia limpa, que preparam o terreno para expansão.
O futuro é elétrico, a discussão agora é sobre como fazer a transição. O Correio ouviu uma série de especialistas e representantes da indústria para entender em que pé estamos, e quais os principais pontos de atenção para esse caminho. Apesar das divergências, o consenso é o seguinte: a mudança é necessária, e o Brasil ocupa uma posição privilegiada.
O maior fator a se considerar é o ambiental, colocando na balança o impacto dos veículos desde a extração da matéria-prima até o seu descarte. Isso inclui baterias, combustíveis, emissão de carbono, poluentes e os locais mais afetados. É preciso considerar também o peso no bolso, já que a população não vai adotar em massa veículos que sejam demasiadamente caros. Os elétricos atuais passam de R$ 100 mil, impraticável para a maioria das famílias.
China, Estados Unidos e Europa estão na vanguarda. Metade da frota mundial está no país asiático, algo em torno de 20,4 milhões de unidades. Na Noruega, os elétricos já representam 82,4% dos carros vendidos anualmente. A Europa aprovou uma legislação que visa descarbonizar completamente as estradas até 2035. Em todos esses países, a aposta clara é no modelo 100% a bateria, com alguns híbridos movidos à gasolina. A Agência Internacional de Energia (AIE) estima que, se mantida a tendência atual, cinco milhões de barris por dia deixarão de ser consumidos em 2030. Ou seja, em apenas seis anos.
No Brasil, há pouco mais de 157 mil unidades em circulação, segundo dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) compilados pela empresa NeoCharge. Desses, 35 mil são híbridos plug-in (que podem ser carregados na tomada), 106 mil são híbridos convencionais (motores auxiliares) e apenas 10 mil completamente elétricos. Apesar dos números pequenos em comparação às grandes potências, representam um enorme salto: em 2015, eram apenas três mil eletrificados.
Para o professor de engenharia mecânica da PUC-Campinas Vinicius Simionatto o que diferencia o país nesse processo é que ele não precisa seguir a mesma aposta de outras nações. "O Brasil tem uma vantagem que nenhum outro país tem, que é a geração do etanol, da cana-de-açúcar. Nos EUA, é feito de milho, um processo bem mais caro", explica. "Aqui, em específico, seria extremamente viável, em termos de emissões e eficiência energética, ter um veículo híbrido com motor movido exclusivamente a etanol", emenda.
O professor destaca que, apesar de a queima do álcool gerar poluentes — muito menos do que o petróleo —, a plantação da cana absorve a mesma quantidade de carbono. "Fica meio elas por elas", frisa.
A tecnologia do híbrido flex é brasileira, desenvolvida pela Toyota. A companhia é a única, no momento, com esse motor, mas as concorrentes estão correndo atrás. BYD, Stellantis, Volkswagen, GM, entre outras, já anunciaram valores bilionários para o desenvolvimento de suas próprias versões. O modelo está no centro do ciclo histórico de investimentos anunciado pelo setor, estimado em R$ 117 bilhões para os próximos anos.
Há um certo embate entre as tecnologias. Veículos elétricos emitem zero poluentes para funcionar e, de forma geral, possuem o potencial para uma pegada de carbono bem menor que as alternativas em toda a sua cadeia produtiva. Porém, é importante ressaltar que a tecnologia ainda não está completamente madura.
As baterias atuais são baseadas em lítio, um mineral que causa prejuízos ambientais consideráveis para sua extração. Os carros também são muito mais caros do que os modelos à combustão, prejudicando sua adoção em larga escala. Enquanto há consenso sobre os elétricos serem o futuro da mobilidade, especialistas acreditam que outras modalidades precisam ser usadas na transição.
O pesquisador Felipe Barcellos Silva, do Instituto Energia e Meio Ambiente (Iema), chama a atenção para os prejuízos da bateria. "Quando os elétricos estiverem mais populares, a demanda vai ser muito maior, e pouco se fala sobre isso. Pode poluir o solo, e a mineração no Brasil tem problemas. Grandes mineradoras, muitas vezes, não seguem nossas regulamentações. Tivemos barragens que colapsaram. Claro que a gente também tem a possibilidade de reciclagem dessas baterias, mas não chegamos a esse momento ainda", argumenta.
Pesquisadores ainda avaliam o processo como muito novo, mas, mesmo considerando os pontos negativos, o entendimento é de que a adoção dos eletrificados ainda é uma alternativa melhor do que os combustíveis fósseis. A questão é o preço. "As baterias ainda estão em desenvolvimento. Não se tem aquela bateria para empregar em todo tipo de carro. Isso representa investimentos adicionais, embutir custos adicionais na formação do preço. Não à toa que são carros com preços extremamente elevados", destaca o coordenador de cursos automotivos da FGV, professor Antônio Jorge Martins.
Com baterias menores e o uso do etanol, os híbridos flex ganham enorme apoio nesse cenário. O pesquisador Felipe Silva aponta que o uso combinado da eletricidade e dos biocombustíveis é o caminho ideal para o momento. Uma das vantagens é o controle sobre o preço do etanol e biodiesel, produzidos nacionalmente, que podem ser bem mais baratos que a gasolina e o diesel atualmente, e não dependem do mercado internacional.
Ele alerta, porém, para alguns cuidados. Primeiro, que os veículos verdes não resolvem o problema da mobilidade, como o trânsito e o tempo de deslocamento nas cidades. Ou seja, não se pode esquecer do transporte público.
Em segundo lugar, as plantações usadas para produção de biocombustíveis são intensivas no uso da terra. "Isso tudo precisa ser regulamentado. É preciso ter um bom regramento dos locais (de produção), para que não avance em florestas e áreas de proteção, áreas indígenas. Se não, estaremos desmatando a Amazônia para plantar soja (usada no biodiesel)", pontua.
Há quem discorde sobre a priorização dos híbridos. Para Jorge Martins, é um erro não levar em conta fatores mercadológicos como a escala da produção dos carros e o preço final ao consumidor. Um cenário mais realista, argumenta, é usar os híbridos comuns, a gasolina, e não os flex.
"Eu não vejo esses veículos como uma boa alternativa para o Brasil. Seria eventualmente uma ótima alternativa para os produtores de álcool. Nós não temos uma escala suficiente, porque só têm motores a álcool em pouquíssimos países. Teremos uma pequena escala na utilização, e mais uma vez a sociedade suportando o custo adicional deste veículo em relação a outros", explica.
Para ele, usar motores conhecidos e fabricados é uma estratégia mais segura, já que não há como saber quanto tempo levará para o amadurecimento das tecnologias limpas. Híbridos usando gasolina representam uma redução nas emissões, de qualquer forma, mas menos do que o etanol e os elétricos.
"O nosso país não é um dos grandes emissores do mundo. Se hoje estamos preocupados, é porque multinacionais instaladas pertencem a conglomerados estrangeiros. Esses países estão muito mais preocupados com a emissão do que o Brasil. Olha a jogada deles, estão jogando uma maior responsabilidade aqui para o Brasil. Eu não sou o grande emissor,mas estou sendo pressionado para deixar de emitir", argumenta.
Segundo a IEA, o Brasil é responsável por apenas 1,3% da emissão de carbono. Por comparação, a China lidera com 31,72%, e os Estados Unidos, com 13,55%. Os dados são de 2021, os últimos disponibilizados pela agência.
O governo federal lançou recentemente o programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), fruto de negociações intensas com os setores da indústria automotiva. Apesar das discussões sobre benefícios diferenciados para as tecnologias, houve um acordo pela neutralidade. Os R$ 19,3 bilhões em benefícios fiscais para a indústria até 2028 não serão condicionados pelo modelo dos carros em questão. A maior exigência do governo é que as empresas invistam em pesquisa e desenvolvimento.
Após os debates, as montadoras parecem pacificadas e satisfeitas com o rumo definido pelo governo. As empresas entendem que cabe ao consumidor brasileiro definir qual será a tecnologia mais adotada, e que é preciso se adaptar ao mercado nacional, muito diverso do europeu e do americano, por exemplo.
"O Brasil tem que participar de todas as tecnologias. Ainda não tem o caminho final pronto. Não está claro ainda. Isso está sendo definido baseado nos investimentos, e nas questões que estão sendo colocadas", comenta o presidente da Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE), Ricardo Bastos, em entrevista ao Correio.
Ele rebate também críticas em relação ao preço dos elétricos, que atualmente são mais caros do que os carros à combustão. "Só está mais caro por causa da bateria, da autonomia do carro. O elétrico é mais simples. As pessoas tiram uma fotografia desse momento, mas a gente tem que acompanhar o movimento tecnológico. Está reduzindo o preço. A tecnologia que prevalecer, o Brasil vai estar pronto para ela", destaca.
Em sua avaliação, o programa Mover foi um acerto do governo justamente pela diversidade. "Pode usar etanol e pode usar a eletricidade brasileira. Nas cidades, onde se roda menos, pode ser só elétrico. Se precisa fazer viagens mais longas, pode usar o etanol. Mas o elétrico é o que não tem escapamento, zero poluição. A gente vê como uma oportunidade, também, para resolver gargalos de infraestrutura" , afirma Bastos, ao apontar que uma das dificuldades do elétrico, hoje em dia no Brasil, é a falta de pontos de carregamento.
O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite, também defende a diversidade. "Nós vamos ter à disposição todas as tecnologias, essa é a grande diferença. Lá foi uma lei que definiu o caminho. Aqui quem está definindo o caminho é o consumidor", frisa. "Não tem essa se é elétrico ou híbrido. O carro elétrico não é vilão de nada, ele é solução. Ele só tem que se adequar à nossa realidade brasileira", acrescenta.
Ele estima que as montadoras vão investir cerca de R$ 60 bilhões em tecnologias limpas no Brasil pelos próximos cinco anos, de acordo com as regras do Mover. Outro foco do mercado atualmente é a produção local, uma forma de movimentar a economia e tentar reduzir custos. Para Leite, o Brasil deve ter uma produção de elétricos e híbridos plug-in nacionais nos próximos dois anos.
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