Kornidzor, Armênia — Sobre a mesa, duas porções de Zhingyalov hats, uma espécie de pão folha recheado de ervas e vegetais. Um prato típico de Nagorno-Karabakh, a terra natal de onde Aram Hovsepyan, 29 anos; a mãe, Susana Hovsepyan, 61; o pai, os dois irmãos e a irmã precisaram fugir. O enclave de população armênia — invadido pelas tropas do Azerbaijão, em 19 de setembro de 2023 — fica a apenas 2km de Kornidzor. Tão perto e tão distante. O vilarejo, de 800 habitantes, está cercado por três lados pelo Azerbaijão, no extremo sul da Armênia. Uma carcaça de um tanque abandonada em um descampado e a silhueta de Berdzor, há sete meses um vilarejo fantasma, em Nagorno-Karabakh, indicam o grau de tensão na região. Não é prudente se aproximar do tanque. Franco-atiradores azeris se escondem não muito longe dali.
Assim que a limpeza étnica teve início, a família Hovsepyan deixou a cidade de Khojaly, a 13km de Stepanakert, capital do enclave, e se mudou para Goris. Em janeiro de 2024, eles viajaram por 24km, no sentido de Nagorno-Kharabakh, e se assentaram em Kornidzor, o primeiro vilarejo a ser atacado caso o Azerbaijão promova uma invasão massiva à Armênia. Hoje, vivem na casa da tia de um amigo, onde cuidam de porcos e de galinhas e plantam hortaliças. Susana diz que ainda pensa no lugar em que vivia, 24 horas por dia. "Continuamos a sentir a dor, estamos tristes. Pensamos sobre o tempo e sobre a esperança. Deixamos nossas casas e os túmulos de nossos familiares. É doloroso não pode voltar", desabafou a mulher. Entre 100 mil e 110 mil armênios fugiram às pressas de Nagorno-Karabakh. Atualmente, apenas 80 refugiados estão em Kornidzor. O restante se espalhou pelo país. Alguns tornaram-se pedintes.
Ao ser perguntada sobre o motivo pelo qual os Hovsepyans não fugiram para mais distante, a resposta de Susana foi imediata: "Essa vila tem o mesmo ar de nossa casa; as pessoas falam o mesmo dialeto; aqui nos sentimos perto de lá". A família sonha em voltar para uma Nagorno-Karabakh independente e sem a presença de soldados do Azerbaijão. "A esperança é a última coisa a morrer", desabafou Aram.
Ele, os pais e irmãos foram um dos últimos a abandonar Artsakh, como também é conhecido Nagorno-Karabakh. Preferiram esperar para ver o que aconteceria. Havia rumores de que os soldados azeris permitiram a fuga de 40 mil armênios e, depois, fechariam a fronteira. A decisão de partir veio depois que um amigo que morava em um vilarejo a 3km os visitou e avisou que os azeris estavam próximos. Aram se nega a sentir ódio pelos invasores. "Não sou uma pessoa agressiva. Morei na Rússia, tenho amigos no Azerbaijão que me tratam bem. São apenas pessoas", disse. Aram confidencia que recomeçar a vida em Kornidzor foi "extremamente difícil". "Não encontro nem palavras para descrever esse esforço", comentou.
Não fosse pela presença de soldados na sede da prefeitura e do arame farpado ao redor do prédio, ninguém diria que sobre Kornidzor paira a ameaça de uma guerra. Idosos conversam na porta de suas casas; crianças brincam de bola nas ruas de terra. O motorista de ônibus e mecânico Artur Baghdasaryan, 41, vive de favor na casa de um armênio que se mudou para a Rússia. Divide o imóvel com os avós, os pais, os dois filhos, a cunhada e o irmão. A família de oito integrantes saiu de Stepanakert em 26 de setembro de 2023. "Deixamos tudo lá e viemos com a roupa do corpo", contou ao Correio Luisa, cunhada de Artur.
"Eu quero minha casa, sinto falta da minha casa", reclama Artur, que disse não ter mais esperanças de regressar a Stepanakert. Perguntado sobre o que sente em relação aos azeris, ele responde com outra pergunta: "Vou sentir o que? Não sinto nada. É impossível morar com eles. Já são inimigos, não há como termos uma convivência." Ele era voluntário do Exércio armênio e permaneceu em um posto no front até 20 de setembro de 2023. A família Baghdasaryan preferiu não seguir viagem pelo fato de encontrar, em Kornidizor, uma casa emprestada por amigos e uma escola para os filhos. Nos primeiros dias, a luta era não deixar as crianças com medo. Artsakh virou uma região sem morasdores. As autoridades da Armênia temem a completa destruição de patrimônios culturais e históricos, como igrejas milenares.
Vice-prefeita de Kornidzor, Lusine Karamyam relatou ao Correio que a presença de franco-atiradores do Azerbaijão impactou economicamente Kornidzor. Isso porque todo o trabalho envolvendo animais é considerado perigoso. Os moradores de Kornidzor não podem levar os animais para as montanhas, sob o risco de serem alvejados ou de se tornarem prisioneiros de guerra. Lusine disse que a população entende o perigo, mas não tem dinheiro para mudarem-se de região. "Eles acham que vivendo, crescendo e cultivando lavouras, poderão enriquecer o próprio povoado. Agarram-se à esperança de viverem bem."
Qual é o risco de uma invasão em larga escala do Azerbaijão na Armênia?
O risco de um grande ataque é baixo, mas a possibilidade de ataques em larga escala é alta. O Azerbaijão tem duas opções. Primeiro, atacar a parte nordeste da Armênia, a província de Tavush. O governo armênio reconheceu oficialmente a soberania do Azerbaijão sobre os chamados enclaves. Assim, Baku tem um pretexto legítimo para atacar e “libertar os seus territórios”. O principal objetivo do ataque do Azerbaijão nessa direção é assumir o controle da comunicação estratégica que liga a Armênia à Geórgia e de um gasoduto que vem da Rússia, por meio da Geórgia para a Arménia. Tal desenvolvimento levará ao êxodo da população armênia que vive nesta província.
A segunda opção é a parte sul da Armênia. O principal objetivo do Azerbaijão é obter acesso terrestre diret à Turquia. Ancara tem perseguido historicamente este objectivo, mas não conseguiu concretizá-lo. Neste cenário, o Azerbaijão dividirá a Arménia em duas partes, que serão inviáveis do ponto de vista econômico e de segurança. O primeiro cenário é possível no caso de uma agressão em laga escala. O segundo cenário de agressão em grande escala é menos relevante em 2024.
Como os países devem evitar uma guerra aberta?
A Armênia fez a possível e impossível condições: reconheceu todo o Nagorno-Karabakh como parte do Azerbaijão, o que Baku jamais espera; também reconheceu a soberania do Azerbiajão so bre os enclaves. Ao mesmo tempo, está pronto para assinar um cessar-fogo. IsSo significa que nem Baku nem Ancara estão interessados na paz. Caso contrário, o Azerbaijão assinaria um tratado de paz, porque, como afirma, a questão de Nagorno-Karabakh foi resolvida. A paz requer dois lados. Portanto, para haver paz, é necessária a vontade política de Baku.
*O repórter viajou a convite da União Geral Armênia de Beneficiência (UGAB Brasil)
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