24 de Novembro de 2024

Por que descobrimento do Brasil nem sempre foi celebrado em 22 de abril


A ideia — ou o conhecimento — de que o território brasileiro recebeu os colonizadores portugueses pela primeira vez em 22 de abril de 1500 não era sabida ou divulgada até o início do século 19. Até 1817, a maior parte daqueles que se importavam com isso julgava ser a data do “descobrimento” o 3 de maio daquele mesmo ano.

Há explicações para essa hipótese. E também para o fato de a data correta ter permanecido desconhecida por tanto tempo. É um enredo com nuances que envolvem sigilo estatal, liturgia católica e guerras napoleônicas.

Então vamos ponto a ponto. Hoje é sabido que os portugueses aportaram à costa brasileira em 22 de abril de 1500 por causa de um documento que se tornou praticamente a certidão de nascimento do Brasil: a carta escrita por Pero Vaz de Caminha (1450-1500), integrante da comitiva de Pedro Álvares Cabral (1467-1520), para comunicar ao rei lusitano dom Manuel 1º (1469-1521) o “achamento” de novas terras.

Isto fica claro a partir de trechos da carta. Caminha diz que “na terça-feira […], que foram 21 dias de abril, […] topamos alguns sinais de terra”. No outro dia, “quarta-feira seguinte, pela manhã topamos aves a que chamam furabuchos” e “neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra!”. Era o 22 de abril do descobrimento. “Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome — o Monte Pascoal. E åa terra — a Terra de Vera Cruz”, descreve ele.

Segundo o relato de Caminha, no dia seguinte houve o desembarque. “E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela seguimos direitos à terra”, conta.

Ou seja: pelo relato do escrivão oficial da empreitada, os navegantes avistaram sinais de terra no dia 21, tiveram a certeza de estarem próximos a um território no dia 22 e desembarcaram no dia 23.

A carta de Pero Vaz de Caminha foi escrita relatando os acontecimentos da viagem de forma cronológica, a partir do dia 9 de março daquele ano até o dia 2 de maio. “[Foi] escrita entre os dias 26 de abril e 1º de maio de 1500” e teve [como objetivo informar ao rei de Portugal, dom Manuel 1º, o descobrimento e apresentar-lhe o que aí se encontrou”, explica o livro ‘Cronistas do Descobrimento’, organizado pelo jornalista Antonio Carlos Olivieri e pelo historiador Marco Antonio Villa.

Considerando este documento, não era para restar dúvida: oficialmente poderia se considerar o tal “descobrimento” como tendo ocorrido em qualquer uma das três datas consecutivas, 21, 22 ou 23 de abril.

Isto parece óbvio, se a carta tivesse sido publicizada na época. No entanto, a monarquia lusa determinou sigilo. “A escrita da carta de Pero Vaz de Caminha foi concluída em 2 de maio de 1500, sendo o primeiro registro oficial português sobre o encontro do território do atual Brasil”, contextualiza à BBC News Brasil o historiador André Figueiredo Rodrigues, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Endereçada ao rei, a carta foi enviada a Portugal pelo navegador Gaspar de Lemos, “em navio separado da esquadra de Pedro Álvares Cabra”, pontua Rodrigues, “que se dirigia para as índias, a fim de cumprir sua missão inicial e consolidar uma rota marítima ao Oriente, contornando a África”.

“Ao chegar a Portugal, o documento ficou guardado nos arquivos da Secretaria de Estado, pois o rei dom Manuel o classificou como secreto, mandando que o documento não fosse divulgado para evitar que o encontro do Brasil fosse transmitido aos espanhóis, para evitar possíveis invasões e conquistas de terras no território que lhe cabia pelo Tratado de Tordesilhas”, conta o historiador.

Da Secretaria de Estado, a carta acabou sendo encaminhada ao Arquivo Nacional, instalado na Torre do Tombo do castelo de Lisboa. “O silêncio atribuído ao documento o fez ser esquecido nos emaranhados papéis constantes naqueles dois órgãos portugueses”, acrescenta Rodrigues.

Vale ressaltar que, naqueles séculos de Brasil colônia, não havia nenhuma preocupação em referendar uma data oficial, já que o propósito não era criar símbolos nacionais ou mesmo a ideia da criação de uma nação deste lado do Atlântico. O território brasileiro era apenas um adendo, um anexo, uma fonte de matérias-primas e riquezas para a a metrópole portuguesa.

Sobre o escrivão Pero Vaz de Caminha, pouco se sabe. Ele teria nascido no Porto, onde chegou a ocupar o posto de vereador, alguns anos antes de integrar a esquadra de Cabral. Em 1476 herdou do pai o cargo de mestre da balança da Casa da Moeda, um cargo de responsabilidade que seria como escrivão e tesoureiro oficial.

Se o sigilo estatal explica o desconhecimento público da data, é preciso explicar por que outra acabou sendo aquela entendida como o dia do descobrimento: 3 de maio.

Sabia-se que Cabral havia chamado o território de Ilha de Vera Cruz e, depois, de Terra de Santa Cruz. Ora, a interpretação foi religiosa. No calendário litúrgico da época, a comemoração da Santa Cruz era em 3 de maio — a data foi transferida para 14 de setembro depois do Concílio Vaticano 2º, ocorrido entre 1962 e 1965.

“Há um grande consenso entre os historiadores e muitos colocam isso como fato de que o nome de Vera Cruz estava associada a uma data religiosa, 3 de maio”, diz à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador na Unesp e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré. “Durante muito tempo o 3 de maio representou a chegada dos portugueses ao Brasil.”

Rodrigues explica que a origem dessa interpretação remete ao historiador português Gaspar Correia (1492-1561) que, ao narrar o descobrimento do Brasil, “chegou a essa conclusão devido aos nomes dados às novas terras, que foram batizadas como Ilha de Vera Cruz, em 1500, Terra de Vera Cruz, em 1503, Terra de Santa Cruz, também em 1503 e Terra de Santa Cruz do Brasil, em 1505, possivelmente em homenagem ao Dia de Santa Cruz, então celebrado em 3 de maio”.

“Devido a essa associação entre o território recém-encontrado e os nomes que reportavam à celebração da Santa Cruz, passou-se a acreditar ter sido nesse dia a chegada de Cabral ao futuro território denominado Brasil”, conclui o professor.

A carta de Caminha permanecia preservada na Torre do Tombo. Preservada e praticamente incógnita. “Estava arquivada ali junto à Coroa Portuguesa mas, de fato, não se dava muita atenção a ela, permanecia sem grandes estudos e referências”, diz å BBC News Brasil o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Mas, conforme pontua Rodrigues, algum diretor do arquivo português determinou que fosse feita uma cópia, entendendo o seu valor. Sua ideia era preservar o conteúdo, fazendo uma espécie de backup.

Mesmo relegada à uma certa insignificância, a carta tinha sua existência sabida — apenas não era valorizada e utilizada como ponto de pesquisa. “Era conhecida desde sempre”, enfatiza à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Unesp.

Avancemos para o início do século 19. No episódio que ficaria conhecido como a fuga da corte portuguesa da invasão das tropas napoleônicas, dom João 6º (1767-1826) transferiu a corte para o Rio de Janeiro. Mas não veio apenas ele e aqueles que lhe eram próximos. Trouxe também todo o aparato estatal e uma riquíssima biblioteca.

Conforme frisa Rodrigues, veio “Trazendo consigo a biblioteca real, livros e vários documentos”. Entre eles, a tal cópia “da dita carta, entre os documentos trasladados”.

“O documento original permaneceu em Portugal e até hoje está no arquivo da Torre do Tombo, que é o Arquivo Nacional de Portugal”, conta o historiador. “Já a cópia que foi trazida para o Brasil foi parar no acervo do Arquivo da Marinha Real, no Rio de Janeiro.”

“Esses documentos chegaram ao Brasil e começaram a ser estudados, de forma que nove anos depois da chegada da família real descobriu-se de fato a existência da carta, alterando aí a data de origem da descoberta do Brasil”, diz Ramirez.

Isto porque este material caiu no colo de um sacerdote católico que também atuava como geógrafo e historiador, o padre Manuel Aires de Casal (1754-1821). “Ele teve acesso [à missiva] e tornou público seu conteúdo em 1817”, resume Rodrigues.

O padre fez isso no livro ‘Corografia Brazilica’. Corografia significa “descrição particular de uma nação ou de uma área geográfica” e esta foi a primeira obra do tipo impressa no território brasileiro.

“Até a divulgação da carta pelo padre Aires de Casal, a data do 22 de abril como sendo a da ‘descoberta’ oficial do Brasil pelos portugueses era desconhecida”, diz o historiador.

Para Martinez, o episódio simbolizou a “convocação de um documento que comprovasse uma determinada posição de Portugal na história europeia e na história da colonização”. E isso era extremamente importante naquele início de século 19, em que o antigo poderio português havia sido bastante reduzido frente à potencia inglesa e à aliança entre França e Espanha.

Missiato observa que é interessante notar “o fato de esse documento estar vinculado à monarquia portuguesa e nunca ter sido utilizado [antes], até em termos de reconhecimento da história”. “[A carta] não tinha uma validade histórica tão importante para Portugal e acabou ganhando importância no Brasil quando foi relida a partir de uma nova releitura da história”, analisa ele.

Sobre o padre Aires de Casal, poucas informações biográficas são conhecidas. Ele provavelmente nasceu em Portugal — embora alguns historiadores afirmem que ele tenha nascido na Bahia — e acabou vindo à colônia para exercer as funções sacerdotais. Atuou na então província do Ceará e, quando a família real se transferiu para o Rio, aproximou-se da corte com o objetivo de esmiuçar os arquivos como pesquisador.

“Eu diria que a importância histórica dele se deve mais à eficiência do trabalho, o fato de ter elaborador a ‘Corografia’, do que a qualquer outra atividade que ele tivesse realizado anteriormente”, avalia Martinez.

Essa proximidade com a corte o habilitou a retornar à Portugal juntamente com a comitiva de dom João 6º, em 1821.

A nova data, o 22 de abril de 1500, acabaria sendo reforçada após a Independência, a partir de 1822, porque então passou a ser visto como necessária a criação de uma identidade nacional.

“O documento foi recuperado dentro de um espírito de valorização política da monarquia portuguesa no contexto pós-napoleônico, com o mundo reorganizado, a partir de 1815, lançando Portugal e outras pequenas nações a uma posição muito vulnerável e secundária diante de uma ordem internacional da Europa polarizada de um lado pela Inglaterra e, de outro, pela aliança entre França e Espanha”, argumenta Martinez.

“A publicação da carta de Caminha tem essa motivação: enfrentar o medo e a incerteza das pequenas nações diante do novo cenário de relações de poder que estava se desenhando na Europa pós-napoleônica”, conclui.

Era uma maneira de fincar os pés no cenário internacional, ressaltando a relevância de Portugal na vida política.

Missiato ressalta que a obra de Aires de Casal, por exemplo, acabou sendo base de diversos estudos do século 19, já que “marcou o início de uma historiografia brasileiro no período”. “Isto foi relevante em um país que ainda não tinha tradição nessa produção”, comenta.

“Por fim, esse documento passou a ser representado dentro de um conjunto de documentos oficiais importantes por conta da tentativa de formar uma origem nacional para o Brasil, de criar uma continuidade, um passado histórico, um sentimento de descoberta”, explica Missiato. “Tudo isso é passado pela monarquia do século 19.”

“A valorização da descoberta da chegada dos portugueses à América e o estabelecimento da colonização, o registro afetivo e devocional e de lealdade à monarquia que estão contidos no texto da carta de Caminha reforçam essa intenção tão necessária no início do século 19: a de criar uma identidade nacional, um patriotismo em Portugal alimentado pela obra de colonização”, diz Martinez.

Essa valorização no cenário internacional era alimentada por idealizações e simbolismos e, como diz o historiador, “a criação de um um mundo, um imaginário, uma identidade baseada em valores simbólicos, morais e políticos”.

Além disso, a mudança da data pode ser vista como um lembrete de que, para a história, nenhum conhecimento deve ser encarado como definitivo.

“Na historiografia se diz que o passado não é estático, está sempre em movimento, é sempre reinterpretado. De modo que o o passado é sempre uma interpretação feita a partir do presente, e eventualmente podem ser que surjam outros documentos para explicá-lo”, explica Ramirez.

Fonte: correiobraziliense

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