Em 1981, o primeiro caso de Aids foi identificado nos Estados Unidos. No final da década, o HIV já infectava milhares de pessoas, que com pouca informação sobre o vírus e a estigmatização que o acompanhava, corriam o risco de desenvolver Aids.
Era o início de uma crise de saúde pública a qual os efeitos trágicos ressoariam por várias décadas.
"Assim como toda doença desconhecida pelas autoridades sanitárias, os primeiros casos foram acompanhados de muita apreensão por parte da comunidade científica. Foram vários anos até entendermos que a doença era causada por um vírus, e quais eram as formas de transmissão e prevenção", diz Dyemison Pinheiro, infectologista do Hospital Emílio Ribas e pesquisador na área de HIV/Aids.
O atraso na obtenção de respostas para várias perguntas, juntamente com o preconceito direcionado principalmente aos jovens gays, que compunham a maioria dos afetados pela doença, criou um ambiente propício para os eventos trágicos que marcaram o início da epidemia de Aids.
"Muito se via na mídia termos usados incorretamente, como 'peste gay' ou 'câncer gay', que reforçavam o estigma contra essa população e transmitiam para aqueles que não eram gays a ideia de que a Aids não os afetaria, que não era um problema deles. Mas ela, como bem sabemos, afetou", continua Pinheiro.
"Não havia tanto interesse em cuidar dessa doença como houve, por exemplo, com a covid-19 porque a Aids era vista inicialmente como algo restrito a um grupo que não era bem visto e bem-vindo na sociedade", complementa Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp, advogado e ativista no campo dos direitos humanos.
A participação de artistas na conscientização da doença se tornaria fundamental para ajudar a desestigmatizá-la, e Madonna foi uma das figuras mais ativas nesse movimento.
Alguns anos antes da epidemia surgir, em 1978, Madonna Louise Ciccone, aos 20 anos, chegava em Nova Iorque e buscava uma carreira na dança.
Em 1983, o ano em que Madonna lançou seu álbum de estreia autointitulado, dois grupos de pesquisa independentes concluíram que um novo retrovírus - o que agora chamamos de HIV - poderia estar infectando pessoas com a síndrome mais letal, a Aids.
Envolvida na cena cultural pop da época, a artista mergulhou na cultura de clubes queer e viu de perto a epidemia se espalhar.
"A música pop nos anos 80 era para todas as pessoas, mas pessoas LGBTQIA+ e as mulheres se conectaram rapidamente com a Madonna em um espaço de liberdade. Ela proporcionou esse espaço de 'os meus desejos, as minhas questões existem e elas fazem sentido', algo especialmente importante para a época, quando questões desses grupos eram diminuídas," avalia o jornalista cultural Renan Guerra, host do podcast ‘Vamos Falar Sobre Música?’
"Era uma época de experimentação, de liberação. E é interessante ver que ela estava junto com essas pessoas antes, abraçando a liberdade, e depois, quando as coisas ficam difíceis com a chegada do HIV, ela não abre mão de estar com essas mesmas pessoas."
Três anos depois, em agosto de 1986, o melhor amigo de Madonna, Martin Burgoyne, 23, começou a ter sintomas da doença. O jovem, que havia se mudado para Nova York para estudar arte e dividia o apartamento com a cantora, achou que estivesse com sarampo. Mas em pouco tempo foi diagnosticado com Aids e faleceu em novembro daquele ano.
Foi Martin quem gerenciou sua primeira turnê em clubes, e desenhou a imagem da capa do álbum "Burning Up", de 1983.
Na avaliação do jornalista cultural Renan Guerra, a perda deste e de outros amigos, seu primeiro professor de dança, Christopher Flynn, impactou profundamente no empenho da cantora em educar o público sobre o vírus.
“Quando você tem amigos que são diferentes de você, você aprende sobre o mundo. E quando você perde um desses amigos, é uma força muito dolorosa. As pessoas que passaram por isso entenderam o horror que estava acontecendo e criaram arte que conseguem impactar muito a nós”, diz Guerra.
Cinco anos depois, ela escreveu ‘In This Life’ como uma homenagem à Burgoyne e Flynn.
"As pessoas passam e eu me pergunto quem será o próximo
Quem determina, quem sabe melhor
Há alguma lição que eu deveria aprender nesse caso
A ignorância não é uma bênção", diz um trecho da música.
Em 1989, com uma mensagem simples e direta, Madonna quebrou tabus ao incluir uma cartilha sobre Aids dentro de seu álbum ‘Like a Prayer’.
O folheto dizia, em tradução para o português:
"A AIDS é uma doença com as mesmas oportunidades. Afeta homens, mulheres e crianças, sem distinção de raça, idade ou orientação sexual. A AIDS é causada por um vírus chamado HIV. Até o momento, não há dados conclusivos para explicar como a AIDS começou ou de onde veio. Pessoas com AIDS – independentemente de sua orientação sexual – merecem compaixão e apoio, não violência e intolerância.
O simples ato de colocar uma camisinha pode salvar sua vida, se ela for usada corretamente e toda vez que fizer sexo.
AIDS não é uma festa."
O álbum também abordou outros assuntos de forma progressista para a época. As letras, acompanhadas de batidas melódicas ou dancantes, abordavam temas como perda na infância, abuso infantil, abuso conjugal, direitos das mulheres e espiritualidade.
"Com a mensagem sobre a Aids, Madonna fez o papel que a mídia não fez. O papel que os governos não fizeram. Falar sobre formas de transmissão do HIV, com ênfase na possibilidade da infecção ocorrer em qualquer pessoa, inclusive em bebês, foi uma das maiores contribuições que uma artista poderia dar à causa. Além disso, frisar que as pessoas que vivem com HIV merecem compaixão e apoio e não violência, marca de forma clara seu posicionamento frente ao estigma", avalia Dyemison Pinheiro.
"Isso vindo de uma artista que à época já tinha grande impacto, mas de certa forma, ainda estava se estabelecendo no cenário mundial, poderia pôr tudo a perder do ponto de vista financeiro ou midiático, já que se tratava de um assunto delicado para a época."
Terminar o texto do encarte falando sobre o uso de preservativo como método de prevenção, diz Pinheiro, é o ponto alto.
"Chamar o ato de usar preservativo de 'simples' é interessante porque transmite a ideia de que é algo acessível e viável para todas as pessoas que leem o texto. Concluir que a proteção deve ser usada em todas as relações, é, para mim, uma questão de saúde pública."
As informações no começo da década de 80 eram muito escassas e desencontradas, diz o infectologista.
"A mídia, por sua vez, fazia muito mais um papel de alarde sobre a doença, sempre com manchetes sensacionalistas, mais preocupada com os números de venda do que com a divulgação de informação científica sobre a Aids. A comunidade LGBTQIA+ foi a que deu o pontapé em orientar os seus."
“Isso vindo de uma artista que já era bem conhecida na época, mas ainda estava se tornando famosa mundialmente, poderia arriscar sua reputação e popularidade, já que era um assunto delicado naquele tempo. Mesmo assim, ela decidiu contribuir significativamente para o combate à Aids.”
Por ser uma voz ativa no combate ao vírus, Madonna foi alvo de rumores de que ela própria seria portadora do vírus HIV.
A cantora dissipou esses rumores em 1991, quando recebeu o Prêmio de Coragem da Fundação para a Pesquisa da AIDS da América (amFAR) em um evento beneficente em Los Angeles.
"Eu não sou HIV positiva, mas e se eu fosse? Eu teria mais medo de como a sociedade me trataria por ter a doença do que da própria doença em si."
"Muitos dos seus bailarinos estavam convivendo com a HIV, essas descobertas foram feitas durante turnês dela nos 80, 90, e ela sempre deu maior apoio", lembra o professor Renan Quinalha.
"Ela visitava pessoas que estavam adoecidas em decorrência da Aids, falava sobre uso de preservativos, colocava o sexo de maneira desmoralizada nas suas apresentações... Acho que tudo isso ajudou para tirar do armário a sexualidade e também o HIV e a AIDS, e colaborou para a gente debater mais abertamente."
"Enquanto o mundo ia para uma posição mais conservadora, com medo do sexo por conta do HIV, Madonna lança ‘Erotica’ [1992] e fala de sexo, fala sobre sua importância para a vida. Eu acho que ela tem essa coisa de liderar e tensionar as questões que são problemáticas para uma sociedade conservadora.
"As pessoas entendem como polêmica, mas para mim, é fundamental. Nesse momento, Madonna diz ‘Não se pode ter medo, essa é uma questão fundamental das nossas vidas", diz Guerra.
Outra consequência da epidemia causada pelo vírus, diz, foi a perda de uma identidade específica na moda masculina.
"As roupas mais justas e coloridas, comuns nos anos 80 para homens gays, mas também para héteros, foram abandonadas por medo de serem vistos como homossexuais."
Na indústria da moda, designers homens perderam a chance de vagas por causa do "fator Aids", como mostra uma passagem de fevereiro de 1990 do jornal The New York Times.
O texto descreve como o designer Carmelo Pomodoro indicou uma lista de cinco estilistas a uma marca japonesa.
"Quando eles me responderam, disseram que não estavam interessados nos homens, por causa do fator AIDS."
"Isso terá um impacto enorme. Os números reais de AIDS podem não ser muito grandes, mas a indústria não tem tantas empresas de design. Os anos 90 podem ser a década das designers mulheres."
O atual tour de Madonna, ‘The Celebration Tour’, que teve início em outubro de 2023, conta com uma homenagem às vítimas da Aids.
Ao som de ‘Live To Tell’, um mural no palco exibe os rostos de uma pequena parcela das 40 milhões de pessoas que, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, morreram da doença.
O projeto parece ter sido inspirado na página do Instagram @TheAidsMemorial, seguida por Madonna. A conta funciona como um memorial que se dedica a contar as histórias e lembrar das pessoas afetadas pela doença.
No show gratuito que acontecerá na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, no próximo sábado (4/5), Madonna deve exibir a performance.
À coluna da Mônica Bergamo, no jornal Folha de S.Paulo, Sasha Kasiuha, diretor de conteúdo da Celebration Tour, contou que o show no Rio de Janeiro deve incluir rostos de brasileiros que faleceram por Aids e, possivelmente, uma homenagem ao cantor Cazuza, que também morreu em decorrência da doença.
"A quantidade de cientistas, criadores e pensadores que foram assassinados e destruídos por essa epidemia [de Aids] é absurda. Acho fundamental o ato de resgatar a memória dessas pessoas, porque a gente pensa que essas pessoas, que antes da Aids, estavam criando coisas, construindo contribuições. E se a gente pode falar sobre o assunto hoje, também é por causa dessas pessoas", afirma Guerra.
Fonte: correiobraziliense
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