22 de Novembro de 2024

Forças sauditas têm 'licença para matar' em desapropriações para construção de cidade futurista no deserto


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As autoridades sauditas permitiram o uso de força letal para abrir espaço para uma cidade futurista no deserto, que está sendo construída por dezenas de empresas ocidentais, conforme informou um ex-oficial de inteligência à BBC.

O coronel Rabih Alenezi diz que recebeu ordens para despejar moradores de um povoado, no intuito de abrir caminho para a construção de The Line, parte do projeto da cidade futurística de Neom.

Um deles foi, na sequência, baleado e morto por protestar contra a desocupação.

O governo da Arábia Saudita e a administração de Neom se recusaram a comentar.

Neom, a região ecológica de US$ 500 bilhões (R$ 2,5 trilhões) da Arábia Saudita, faz parte do plano estratégico saudita Visão 2030 para diversificar a economia do reino e reduzir a dependência do petróleo.

O carro-chefe do projeto, The Line, foi apresentado como uma cidade sem carros, com apenas 200 m de largura e 170 km de comprimento — embora a expectativa seja de que apenas 2,4 km do projeto estejam concluídos até 2030.

Dezenas de empresas globais, várias delas britânicas, estão envolvidas na construção de Neom.

A área onde Neom está sendo construída foi descrita como uma “tela em branco” perfeita pelo líder saudita, o príncipe herdeiro Mohamed bin Salman. Mas mais de 6 mil pessoas foram deslocadas por causa do projeto, segundo seu governo — e o grupo de direitos humanos ALQST, com sede no Reino Unido, estima que este número seja ainda maior.

A BBC analisou imagens de satélite de três dos vilarejos demolidos — al-Khuraybah, Sharma e Gayal. Casas, escolas e hospitais foram varridos do mapa.

O coronel Alenezi, que se exilou no Reino Unido no ano passado, diz que a ordem para liberar o terreno que recebeu se destinava a al-Khuraybah, a 4,5 quilômetros ao sul de The Line. O vilarejo era habitado principalmente pela tribo Huwaitat, que vive na região de Tabuk, no noroeste do país, há gerações.

Segundo ele, a ordem de abril de 2020 afirmava que [a tribo] Huwaitat era composta por "muitos rebeldes" — e que "quem continuar a resistir [à desocupação] deveria ser morto, por isso autorizava o uso de força letal contra quem permanecesse nas casas".

Ele se esquivou da missão por motivos médicos que inventou, disse ele à BBC, mas mesmo assim ela foi adiante.

Abdul Rahim al-Huwaiti se recusou a permitir que uma comissão de registro de imóveis avaliasse a sua propriedade — e foi morto a tiros pelas autoridades sauditas um dia depois, durante a missão para liberação do terreno. Ele já havia postado vários vídeos nas redes sociais protestando contra os despejos.

Uma declaração emitida pelo departamento de segurança do Estado saudita alegou, na época, que al-Huwaiti havia disparado contra as forças de segurança, que foram obrigadas a retaliar. Organizações de direitos humanos e a ONU afirmaram que ele foi morto simplesmente por resistir ao despejo.

A BBC não conseguiu verificar de forma independente os comentários do coronel Alenezi sobre a força letal.

Mas uma fonte familiarizada com o funcionamento da diretoria de inteligência saudita nos disse que o depoimento do coronel — tanto em relação à forma como a ordem para liberação do terreno foi comunicada, quanto em relação ao que dizia — estava alinhado com o que sabiam sobre tais missões de forma mais ampla. Disseram também que o nível hierárquico do coronel teria sido adequado para liderar a missão.

Pelo menos 47 outros moradores foram detidos após resistir aos despejos, muitos dos quais foram processados ??por acusações relacionadas a terrorismo, de acordo com a ONU e a ALQST. Destes, 40 permanecem detidos, sendo cinco no corredor da morte, afirma a ALQST.

Vários foram presos por simplesmente terem lamentado publicamente a morte de al-Huwaiti nas redes sociais, acrescentou a organização.

As autoridades sauditas dizem que foi oferecida uma indenização àqueles que precisaram se mudar por causa de The Line. Mas os valores pagos foram muito inferiores ao valor prometido, segundo a ALQST.

De acordo com o coronel Alenezi, “[Neom] é o elemento central das ideias de Mohamed Bin Salman. É por isso que ele foi tão brutal ao lidar com os Huwaitat”.

Um alto executivo que fazia parte do projeto de esqui de Neom disse à BBC que ouviu falar do assassinato de Abdul Rahim al-Huwaiti algumas semanas antes de deixar seu país natal, os EUA, para assumir o cargo em 2020. Andy Wirth conta que perguntou repetidamente a seus empregadores sobre as ações de despejo, mas não ficou satisfeito com as respostas.

“Simplesmente cheirava a algo terrível [que] havia sido imposto a essas pessoas… Você não pisa na garganta delas com os saltos das suas botas para poder avançar”, afirma.

Wirth deixou o projeto menos de um ano depois de ingressar nele, desiludido com sua gestão.

Um diretor executivo de uma empresa britânica de dessalinização que desistiu de um projeto de US$ 100 milhões para a The Line em 2022 também é extremamente crítico.

“Pode ser bom para algumas pessoas high-tech que vivem naquela área, mas e o resto?”, questiona Malcolm Aw, CEO da Solar Water PLC.

A população local deve ser vista como um ativo valioso, ele acrescenta, dada a sua compreensão da região.

“Você deve buscar esses conselhos para melhorar, criar, recriar, sem removê-los.”

Os moradores desalojados se mostraram extremamente relutantes em comentar, temendo que falar com a imprensa estrangeira pudesse colocar seus familiares detidos em ainda mais risco.

Mas conversamos com aqueles que foram despejados em outros lugares por causa de outro projeto da Visão 2030. Mais de um milhão de pessoas foram desalojadas por causa do projeto Jeddah Central, na cidade de mesmo nome — que deve incluir um teatro de ópera, um distrito esportivo e unidades residenciais e comerciais de luxo.

Nader Hijazi [nome fictício] cresceu em Aziziyah — um dos cerca de 63 bairros afetados pelas demolições. A casa do seu pai foi destruída em 2021, e ele recebeu menos de um mês de aviso prévio.

Hijazi diz que as fotos que viu do seu antigo bairro eram chocantes — segundo ele, evocavam uma zona de guerra.

"Eles estão travando uma guerra contra as pessoas, uma guerra contra as nossas identidades."

Ativistas sauditas contaram à BBC sobre dois indivíduos presos no ano passado por sua relação com as demolições de Jeddah — um por resistir fisicamente ao despejo, e o outro por postar fotos de grafites contra a demolição em suas redes sociais.

E um parente de um detido na Prisão Central de Dhahban, em Jeddah, disse ter ouvido relatos de mais 15 pessoas detidas lá — supostamente por organizarem uma reunião de despedida em dos bairros que seria demolido. A dificuldade de entrar em contato com aqueles que estão dentro das prisões sauditas significa que não conseguimos verificar isso.

A ALQST entrevistou 35 pessoas despejadas de bairros de Jeddah. Destas, nenhuma afirmou ter recebido indenização, ou aviso prévio suficiente, conforme prevê a legislação local, e mais da metade afirmou ter sido forçada a abandonar suas casas sob ameaça de prisão.

O coronel Alenezi está agora baseado no Reino Unido, mas ainda teme pela sua segurança. Ele contou que um oficial de inteligência disse a ele que seriam oferecidos US$ 5 milhões para ele participar de uma reunião na embaixada saudita em Londres com o ministro do Interior saudita. Ele recusou. Apresentamos esta alegação ao governo saudita, mas eles não responderam.

Os ataques aos críticos do governo saudita que vivem no exterior não são algo sem precedentes — o mais notório é o do jornalista Jamal Khashoggi, assassinado por agentes sauditas dentro do consulado do país em Istambul, na Turquia, em 2018. Um relatório contundente do serviço de inteligência dos EUA concluiu que Mohamed Bin Salman aprovou a operação. O príncipe herdeiro negou qualquer envolvimento.

Mas o coronel Alenezi não se arrepende da sua decisão de desobedecer às ordens relativas à cidade futurista da Arábia Saudita.

"Mohamed Bin Salman não vai permitir que nada fique no caminho da construção de Neom... Comecei a ficar mais preocupado com o que poderia ser solicitado a fazer ao meu próprio povo."

* Reportagem adicional de Erwan Rivault.

Fonte: correiobraziliense

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