Em pouco mais de uma semana, mais de 400 municípios gaúchos tiveram bairros inteiros engolidos por uma chuva que não parava de cair.
A maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul já deixou pelo menos 145 mortos e afetou mais de 2,1 milhões de pessoas.
Mas como a situação escalou para as cenas trágicas vistas nos últimos dias?
A BBC Brasil elaborou uma cronologia do drama vivido pelos gaúchos para ajudar a entender a crise.
Desde o dia 27 de abril, áreas no Vale do Rio Pardo, na região central do Estado, já sofriam com fortes chuvas e granizo.
Mas foi em 29 de abril que o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu o primeiro alerta vermelho de volume elevado de chuva.
As chuvas foram resultado de uma combinação de fatores, entre eles uma massa de ar quente sobre a área central do país, que bloqueia a frente fria que está na região Sul e faz com que a instabilidade fique sobre o Estado, causando chuvas intensas e contínuas.
Aliado a isso, o período entre o final de abril e o início de maio de 2024 ainda tem influência do fenômeno El Niño, responsável por aquecer as águas do Oceano Pacífico, contribuindo também para que áreas de instabilidade fiquem sobre o Estado.
Tudo isso foi potencializado pelo aquecimento global, que torna os eventos climáticos mais frequentes e cada vez mais potentes.
No dia seguinte, foram registradas as primeiras cinco mortes da tragédia gaúcha.
Foram duas na cidade de Paverama, uma em Pantano Grande, uma em Encantado e uma em Santa Maria.
Dezoito pessoas estavam desaparecidas naquele momento e 77 municípios eram considerados impactados pela água.
Em Santa Maria, a força da água foi tamanha que destruiu uma ponte.
Uma segunda ponte desabou em Santa Tereza, cidade a cerca de 70 km de Caxias do Sul.
No dia 1° de maio, quarta-feira, o cenário piorou dramaticamente.
Já eram 114 municípios e mais de 19 mil pessoas afetadas. O Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública.
Nesse dia também foram contabilizadas mais cinco mortes, totalizando 10 óbitos.
Metade das vítimas fatais até então era de pessoas idosas.
Entre as causas das mortes estavam descarga elétrica, afogamento e deslizamentos de terra, segundo a Defesa Civil.
A partir da quinta-feira (2/5), o número de vítimas fatais disparou, com 19 novas mortes registradas em 24 horas.
"Não estamos conseguindo acessar determinadas localidades e sabemos de deslizamentos, de inundações e de pessoas que estão em locais inacessíveis. Infelizmente, esses números vão ainda aumentar", afirmou o governador Eduardo Leite (PSDB) em entrevista.
Mais de 4.500 pessoas já estavam em abrigos em todo o Estado.
A Defesa Civil advertiu que a barragem da Usina Hidrelétrica (UHE) 14 de Julho, localizada entre Cotiporã e Bento Gonçalves, na Serra do Rio Grande do Sul, estava em processo de colapso. Famílias nas áreas de risco começaram a ser evacuadas.
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Na região metropolitana de Porto Alegre, a Defesa Civil alertou que o Lago Guaíba estava prestes a transbordar de modo "significativo".
Entre 1° e 2 de maio, a quantidade de chuva era tamanha que sete cidades do Rio Grande do Sul foram ranqueadas entre as que tiveram o maior índice pluviométrico do mundo, medido pelo instituto meteorológico Ogimet.
No dia seguinte, já eram 265 municípios afetados, mais da metade do estado.
O Lago Guaíba ultrapassou a marca histórica de 1941 e alcançou o nível inédito de 4,77 metros. Isso causou inundações em diversos bairros da capital gaúcha, incluindo o centro histórico.
A rodoviária e os centros de treinamento do Internacional e Grêmio ficaram debaixo d’água.
A Defesa Civil alertou para rompimento parcial da barragem 14 de Julho e advertiu que moradores de sete municípios da região deveriam sair das áreas de risco e procurar abrigos.
O órgão também colocou o rio Taquari em situação de inundação severa.
O Vale do Taquari é formado por cidades como Estrela, Lajeado, Roca Sales, Muçum, Arrio do Meio e Cruzeiro do Sul – municípios que já haviam enfrentado enchentes no ano passado.
Com tudo isso, as mortes chegaram a 39. Além disso, 68 pessoas estavam desaparecidas.
No sábado (4/5), o número de mortos ultrapassou o da tragédia ambiental de setembro de 2023 no Estado, quando 54 pessoas morreram em enchentes.
Naquele momento, a estatística chegava a 55, com 74 desaparecidos.
Além dos danos a casas e prédios, a infraestrutura pública também havia sido atingida.
Em 4 de maio eram mais de 400 mil pontos sem energia elétrica e pelo menos 186 municípios sem sinal de internet e telefone.
Mais de 1 milhão de casas estavam sem abastecimento de água.
Em entrevista coletiva ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o governador Eduardo Leite afirmou que o Estado vai precisar de um plano de recuperação semelhante ao Plano Marshall, que reergueu a Europa no pós-2ª Guerra Mundial.
"É um cenário de guerra no Estado. E como cenário de guerra, vai ter que ter também um pós-guerra", disse Leite.
Naquele momento o governo estadual já havia restabelecido o canal de doações por Pix chamado de SOS Rio Grande do Sul, usado no ano anterior.
As autoridades também criaram contas para doações internacionais.
Em paralelo, centenas de ONGs e grupos espontâneos criados por brasileiros em diversos estados do país e no exterior faziam arrecadações em dinheiro, mantimentos e outros itens de primeira necessidade para serem enviados.
As autoridades locais registravam 78 óbitos e 175 feridos.
Já eram 341 municípios afetados, ou mais de 840 mil pessoas.
O Guaíba continuou a subir: na manhã de 6 de maio, ele chegou a 5,33 metros, sem dar sinais de recuo.
O aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, foi fechado por tempo indeterminado.
O espaço já estava interditado desde sexta-feira (3/5), quando o nível do Lago Guaíba ultrapassou 5 metros.
Os aeroportos das cidades de Passo Fundo, Caxias do Sul, Pelotas e Santo Ângelo continuavam operando.
Naquele momento, já eram 85 óbitos confirmados, e 385 dos 497 municípios do estado já tinham sido atingidos de alguma forma.
Em 7 de maio, o número de desabrigados chegou a quase 160 mil.
A intensidade da chuva começou a diminuir, mas o nível dos principais rios continuava elevado e muitas cidades permaneciam com bairros inteiros sob a água.
Por isso, o número de pessoas obrigadas a deixar suas casas não parava de crescer.
"Tem sido muito triste ver as pessoas desoladas, sem saber exatamente para onde ir, andando sem direção. E sem contato, porque não tem luz, não tem comunicação, não tem sinal de telefone", relatou Daniel Odrisch, voluntário de um abrigo à agência Associated Press (AP).
No dia 8, o nível do Lago Guaíba, na capital gaúcha, já estava em processo de descida, baixando 20 centímetros em 24 horas.
Mas uma nova frente fria chegou ao Estado, derrubou as temperaturas e causou mais chuvas e ventos fortes, além de riscos de raios e trovoadas.
E muitos moradores seguiam em situação dramática. Mais de 500 mil pessoas estavam sem água, incluindo 85% da população de Porto Alegre.
A reportagem da BBC Brasil encontrou uma igreja evangélica funcionando como um abrigo para 66 pessoas e ao menos dez cães na cidade.
O local, por onde já passaram cerca de 110 desalojados, segundo o pastor que coordena o projeto, oferece quatro refeições e banho quente, além de assistência médica e psicológica.
Chorando, Roselaine da Silva contou que está alojada na igreja com os três filhos, um deles autista, e dois cães.
As lágrimas corriam do rosto quando lembrava dos dois gatos que deixou para trás no bairro do Sarandi, na zona norte de Porto Alegre. Os felinos estão no telhado da casa da família, a única parte que não foi engolida pela água.
"Eu não sabia que a água tomaria essa proporção toda. Eles [gatos] estão no telhado, mas são muito ariscos. Meu filho tentou pegá-los hoje, mas não conseguiu. Já chorei muito, me culpo muito por isso. Eu os deixei num local seguro, com água e comida, e mesmo assim aconteceu isso", disse, emocionada.
Na quinta-feira (9/5), as notícias eram de mais de 1,7 milhão de pessoas afetadas, com centenas de relatos de famílias desesperadas e sem saber o que fazer diante da tragédia.
Com o desabastecimento, supermercados ficaram lotados de pessoas em busca de água mineral e alimentos básicos.
Ao mesmo tempo, voluntários têm feito a diferença, ajudando a resgatar e abrigar vítimas, e arrecadar e distribuir mantimentos.
Mas o caos também faz muita gente se ver forçada a sair de Porto Alegre.
O repórter gaúcho Luiz Antonio Araújo, colaborador da BBC, é uma dessas pessoas.
"No dia 4 pela manhã, a caixa d'água do condomínio deixou de receber água da rede pública. Nós decidimos ficar em casa enquanto houvesse luz e água da caixa. Mas no dia 7 pela manhã houve uma interrupção total do fornecimento de água e instabilidade da luz. Nós decidimos então vir para o litoral, onde estamos, em Torres, a 150 quilômetros de Porto Alegre, para poder continuar trabalhando."
Na sexta-feira (10/5), o Rio Grande do Sul contabilizava 126 mortos, 141 desaparecidos e 756 feridos.
Cerca de 1,9 milhão de pessoas foram afetadas em 441 municípios, com 340 mil tendo que deixar suas casas e 71 mil alojadas em abrigos.
O Rio Grande do Sul voltou a registrar chuvas em vários pontos.
Na tarde de sábado (11), o lago havia atingido 4,57, o menor nível desde o início da enchente. À noite, o nível começou a subir.
Segundo medição do Cemaden, choveu entre 25 e 30 mm em Porto Alegre durante a madrugada de sábado para domingo.
As autoridades locais contabilizavam 136 mortos, 125 desaparecidos e 806 feridos. O Estado ultrapassou a marca de 2 milhões de pessoas afetadas em 446 municípios.
Os números oficiais também mostravam que 537 mil tiveram que deixar suas casas e 81 mil estavam alojadas em abrigos.
As fortes chuvas continuaram no domingo (12) e deixaram o Rio Grande do Sul em alerta para novas enchentes.
A Defesa Civil do estado e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres (Cemaden) informaram que a situação deve se agravar entre segunda (13) e terça-feira (14), com inundações severas e possíveis deslizamentos.
As áreas afetadas são as mesmas que já foram prejudicadas pelas chuvas que começaram no fim de abril: o centro-norte e o nordeste do estado e a Região Metropolitana de Porto Alegre.
Na capital, o nível do Guaíba deve subir de novo e pode bater 5,50 metros, o que seria um novo recorde.
No sul do estado, a Lagoa dos Patos não para de subir. As enchentes avançam sobre as cidades de Pelotas, Rio Grande e São Lourenço do Sul.
O último boletim divulgado pela Defesa Civil contabilizava 145 mortos e 132 desaparecidos. Mais de 81 mil pessoas estão em abrigos em todo o Estado.
Os dias a seguir serão importantíssimos para determinar o nível dos estragos e o futuro dos moradores.
Segundo previsão do Climatempo, a semana começa com diminuição da chuva e entrada de ar frio de origem polar sobre o Rio Grande do Sul. A chuva vai dar uma pequena trégua aos gaúchos, mas a temperatura caiu muito nos próximos dias e pode ficar abaixo de 0°C nas regiões mais elevadas.
"Vai chegar uma frente fria e entre os dias 16 e 17 as temperaturas podem chegar a patamares muito baixo, com previsão de temperatura abaixo de zero grau na Serra Gaúcha", diz Francisco de Assis, meteorologista do Inmet.
Segundo o especialista, a expectativa é que o clima se mantenha mais seco até o dia 25 de maio.
"Nesse momento, pode ser que vejamos a água baixar. Pode ser bom para os trabalhos de recuperação", afirma.
A ecologista Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília, explica que o Rio Grande do Sul sempre foi o ponto de encontro de sistemas tropicais e sistemas polares, o que cria um padrão que inclui períodos de chuvas intensas e outros de seca.
"O secretário-geral da ONU sempre diz algo importante: a mudança climática é uma amplificadora de crises. Tudo aquilo que já podia acontecer vai se tornar mais drástico."
Fonte: correiobraziliense
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