Uma empresa administrada por um homem que passou a ser chamado de o "encanador mais gentil da Grã-Bretanha" inventou histórias de pessoas que teria ajudado e arrecadou milhões em doações com elas, revela a BBC.
A Depher, uma empresa de cunho social, do Reino Unido, usou fotos de pessoas vulneráveis sem consentimento delas. O fundador, James Anderson, gastou dinheiro da empresa em uma casa e um carro.
Anderson impediu que uma mulher idosa se matasse, afirmava a empresa. Na verdade, ela havia morrido anos antes.
Ele negou algumas das alegações da BBC, mas admitiu: "cometi erros".
Desde 2019, a Depher postou centenas de histórias de atos de bondade que afirma ter realizado.
A Depher está registrada no Reino Unido como uma Empresa de Interesse Comunitário (Community Interest Company, CIC). E, como tal, opera da mesma forma que uma sociedade limitada, mas também fornece um benefício público definido, como serviço prestado diretamente a uma comunidade ou o uso dos lucros para beneficiar de alguma forma uma comunidade.
A empresa com sede na cidade de Burnley ajudou muitas pessoas usando doações para fornecer comida gratuita, pagar contas de gás e eletricidade, fazer trabalhos de encanador gratuitamente e até mesmo ajudar com custos de funeral.
As histórias contadas em rede social fizeram dela uma sensação viral em meio ao aumento no custo de vida no Reino Unido e trouxeram pelo menos 2 milhões de libras (R$ 13 bilhões) em doações, de acordo com uma análise das contas da empresa feita pela BBC.
Entre os doadores estavam, supostamente, celebridades como a cantora Lily Allen, a atriz de Emmerdale Samantha Giles e o ator Hugh Grant, que doou 75 mil libras (R$ 487 mil).
Anderson recebeu cartas de agradecimento da falecida rainha Elizabeth 2ª e do rei Charles 3º, além de um prêmio Pride of Manchester. Ele foi convidado para programas como Good Morning Britain, BBC Breakfast, The One Show, Sky News e Russell Howard Show, e foi descrito como “o encanador mais gentil da Grã-Bretanha” ou como um “herói encanador”.
Mas ao analisar centenas de postagens da Depher e entrevistar as famílias dos rostos expostos nas postagens de redes sociais, a BBC encontrou um padrão de mentiras e alegações de exploração.
O que encontramos:
A principal conta em rede social da Depher, que tinha mais de cem mil seguidores durante nossa investigação, foi deletada por Anderson.
Falando à BBC de seus escritórios em Burnley, onde cartões de agradecimento e cartas de dignitários enfeitam as paredes, Anderson disse: “Eu sei que agi errado. Peço desculpas. Mas o que eu posso fazer? Eu não tenho uma varinha mágica. Eu não sou Harry Potter.”
Ele disse que cometeu erros por causa de uma campanha implacável de “bullying, assédio e ataques” realizados por trolls online.
A BBC viu críticas feitas online a Anderson que expressam preocupações legítimas, mas ele também nos mostrou mensagens que continham abusos e ameaças.
Entre as histórias mais perturbadoras que a Depher postou no X, antigo Twitter, está uma foto de uma mulher sem nome ao lado de Anderson, com o rosto coberto por um emoji.
O post de 12 de junho de 2022 dizia: “Uma senhora de 84 anos ligou para a @DepherUK e falou comigo mesmo, ela estava chateada e desesperada. Ela morava a 53 milhas de distância em #Preston. Dirijo o mais rápido que posso e quando cheguei lá, ela tinha uma forca pronta para cometer suicídio. Tudo o que ela queria era água quente! #costoflivingcrisis"
A BBC descobriu que a imagem foi usada um total de sete vezes pela Depher entre fevereiro de 2021 e agosto de 2023, com diferentes idades e locais.
Nós a identificamos como Joyce, uma mulher que morreu em fevereiro de 2020, mais de um ano antes da Depher começar a usar sua imagem.
A filha, Andrea, disse à BBC que os detalhes postados por Anderson eram "uma mentira completa". Ela disse que Anderson consertou o chuveiro da mãe de graça. E, como ela podia pagar pelo reparo, ela e a família doaram mais de 100 libras (R$ 650) para a empresa dele.
Andrea disse que as postagens de rede social fazem parecer que “ele está usando pessoas vulneráveis como minha mãe como uma máquina de fazer dinheiro”.
Anderson negou ter postado a imagem, mas admitiu que o post “não era verdadeiro” e disse ter pedido desculpas à família. “Essa não é a senhora,” disse ele.
Em outro caso, a Depher postou uma imagem de uma mulher com o rosto apagado, que dizia que ela tinha morrido de envenenamento por monóxido de carbono.
Após a BBC identificá-la em outras postagens anteriores da Depher, Anderson admitiu que a postagem era “uma mentira” e prometeu investigar como foi publicada pela conta da empresa no então Twitter.
A BBC também encontrou uma mulher chamada Gemma, de Burnley, que aceitou a ajuda de Anderson em 2022. Ela disse que ele usou fotos dela sem permissão e retratou-a como uma ladra.
Em duas das postagens feitas pela Depher posteriormente, estavam os filhos pequenos de Gemma, e a legenda dizia que no passado ela tinha sido vítima de violência doméstica.
Algumas das postagens dizem que ela não tem comida, somente “pão, margarina e massa” em sua casa e alegam que ela “roubou deliberadamente” da loja de arrecadação de fundos da Depher. Gemma disse que ambas as alegações são falsas.
Ela contou ter dito a Anderson que não queria ser fotografada porque não queria aparecer em redes sociais. E disseram-lhe que a foto não seria postada, que era apenas “para transparência”.
“Foi provavelmente o mais vulnerável que já estive em minha vida,” disse Gemma. “Eles simplesmente tornaram algo muito privado, algo muito, muito público.”
Anderson insistiu que ela havia dado permissão para que a foto fosse usada e reafirmou as alegações de roubo. Mas ele se desculpou por qualquer transtorno causado e reconheceu que deveria ser mais cauteloso “sobre a questão da vulnerabilidade”.
Em outro caso, Anderson compartilhou um vídeo em sua página do Facebook, mostrando uma visita para instalar um aquecedor de água de forma gratuita. A BBC não divulgará o nome do homem, na casa dos 90 anos e que morreu após darmos início à nossa investigação.
O vídeo mostra Anderson se aproximando da casa, descrevendo o trabalho e perguntando ao homem se tudo bem por ele ser filmado. O homem diz claramente: "Ah, Deus, não."
Mas sua imagem e sua história foram compartilhadas mais de uma dezena de vezes nos dois anos seguintes, incluindo o medo que tinha de ser discriminado por ser gay. As postagens foram vinculadas a campanhas de arrecadação de fundos para a Depher, que resultaram em doeções de cerca de 270 mil libras (R$ 1,75 milhão).
A BBC conseguiu identificar a casa do homem a partir da postagem e fazer contato com os vizinhos e o advogado dele, que disse que o homem não tinha a capacidade de dar um consentimento informado.
“Ele era uma pessoa reservada e nunca concordaria com algo assim. Eu acho isso nojento. Ele odiaria isso”, disse um vizinho que conhecia o homem há 30 anos.
Anderson disse que “não ouviu” o homem corretamente e que deveria ter removido quaisquer detalhes que pudessem identificá-lo.
Um post da Depher mostrou uma senhora idosa sentada na cama, desviando o olhar da câmera. A documentação com seus dados bancários e endereço estava claramente visível na foto, vista mais de 11.000 vezes.
Após a postagem ter nos levado a sua porta, ela disse que estava “horrorizada” e sentiu-se “usada”. “Tendo sido enganado antes, mostra o quão vulnerável eu estou”, disse ela.
A BBC alertou a família. O filho, Robert, questionou o porquê de a Depher entrar no quarto da mãe e chamou a postagem de rede social de “uma exploração absoluta”.
“É uma questão enorme de proteção e estou muito preocupado”, disse ele.
Anderson disse que falou com a família, pediu desculpas e apagou a postagem.
Separadamente, a BBC falou com quatro ex-funcionários que trabalharam próximos a Anderson na Depher, para corroborar relatos da vida dentro da empresa.
Um ex-funcionário, que trabalhou para a Depher por cerca de três anos, disse que muitas pessoas "não tinha consentido" que suas fotos fossem usadas nas redes sociais, e a empresa recebia reclamações de parentes.
Anderson disse à BBC que um formulário de consentimento por escrito para que fotos sejam usadas nas redes sociais passou a ser adotado no ano passado.
O ex-funcionário disse que não havia um sistema substancial para decidir a quem ajudar, e Anderson simplesmente "escolheria e definiria".
O ex-funcionário também lembrou de um incidente em que um técnico - que não estava registrado na Gas Safe Register, órgão de registro de técnicos de gás do Reino Unido, estava fumando ao realizar um trabalho.
Em fotos postadas nas redes sociais da Depher, o aquecedor de água de uma idosa foi descrito como vazando monóxido de carbono, um gás inflamável. Um dos engenheiros não qualificados é visto trabalhando no aquecedor de água com um cigarro aceso na boca.
A postagem foi posteriormente retirada pela Depher e o engenheiro foi falsamente descrito como um "subcontratado". Anderson disse à BBC que o gás foi isolado e “tudo foi feito com segurança”.
A Gas Safe Register confirmou que, na Depher, apenas James Anderson era registrado. Anderson disse que os dois engenheiros que aparecem na foto estavam autorizados a fazer os trabalhos contanto que ele estivesse presente. Mas a Gas Safe Register disse que isso só seria permitido se eles estivessem em um programa de treinamento formal, como um estágio.
Anderson disse repetidas vezes online e em entrevistas à imprensa que ajudou dezenas de milhares de pessoas ou, mais recentemente, "mais de dois milhões" de pessoas.
Questionado pela BBC, ele disse que o número exato era de 2.150.000. Mas pressionado disse que "não sabia" e que os números eram "suposição". “É o efeito geral, não ajudamos apenas a pessoa, mas os membros da família”, disse ele.
Anderson disse que o número de aquecedores de água instalados gratuitamente era de "centenas, não milhares".
Ele disse à BBC que descobriria e liberaria um número exato de beneficiários “em breve”.
Os registros da empresa mostram que a Depher comprou uma casa como uma "propriedade de investimento" por 73.125 libras (R$ 474 mil). A BBC descobriu que o imóvel está alugado para um integrante da família estendida de Anderson.
“Isso não é ser uma empresa comunitária, é apenas ajudar a família através de um canal que ele pode usar,” disse o ex-membro da equipe.
O ex-funcionário também contou à BBC que Anderson comprou carros usando dinheiro da Depher e “dirigiu eles por aí”.
Anderson disse que a casa foi comprada usando lucros do trabalho remunerado, que a compra foi permitida pelos regulamentos para empresas do tipo CIC e que o regulador desse tipo de empresa estava ciente. Ele também defendeu a compra do que chamou de “carros para a empresa” como permitido.
A análise da BBC das contas mais recentes da Depher, de abril de 2021 a abril de 2023, descobriu que as doações em dinheiro dobraram, chegando a mais de 1,2 milhão de libras (R$ 7,8 milhões). Em abril de 2023, detinha mais de 643 mil (R$ 4,2 milhões) em dinheiro.
Mas durante esse tempo, Anderson postou regularmente nas redes sociais que, sem receber “mais apoio”, a Depher poderia ter que cortar os serviços. Em janeiro de 2023, em uma página de arrecadação de fundos online, ele disse que as doações tinham caído 80%.
À BBC, ele disse que a queda nas doações foi “por causa dos trolls” e que seus apelos eram baseados em “previsão” - mas admitiu que o sistema de arrecadação em particular era “enganoso” e “um erro”.
Ele disse que qualquer dinheiro de doação restante seria gasto no ano seguinte e que, se ele fosse uma instituição de caridade registrada, seus custos seriam menores.
Anderson também disse à BBC que investe 200 libras (R$ 3,9 mil) de seu salário semanal de volta na Depher.
Ele se comprometeu a devolver parte do dinheiro doado relacionado a postagens enganosas específicas ou questões de salvaguarda levantadas pela BBC. Questionado sobre grandes doações de figuras como Hugh Grant, ele disse: “Se Hugh quiser o dinheiro de volta, eu o enviarei de volta, não é um problema”.
O encanador também disse à BBC que está buscando o perdão do país.
“Peço desculpas, eu realmente peço desculpas. E espero que o coração de vocês possa aceitar. Sinto muito e vou fazer melhor," disse.
Colaborou James Kelly, da BBC Verify
Fonte: correiobraziliense
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