22 de Novembro de 2024

Governo Lula infla bilhões de reais ao divulgar recursos federais para socorro ao RS, dizem economistas


Pressionado a reagir com a agilidade à destruição sem precedentes do Rio Grande do Sul, o governo federal tem anunciado dezenas de bilhões de reais em ações de socorro ao Estado, que incluem linhas de crédito (empréstimos a empresas e produtores rurais), recuperação de estradas, compras de medicamentos, auxílio direto a famílias no valor de R$ 5,1 mil e a suspensão do pagamento da dívida gaúcha com a União.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que as medidas têm ido na direção certa, embora ainda sejam insuficientes diante do tamanho da catástrofe —algo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconhece.

O valor total das medidas anunciadas, porém, não está claro, devido a informações imprecisas e contraditórias divulgadas pelo governo.

Uma análise feita pela BBC News Brasil — e corroborada por especialistas em contas públicas ouvidos pela reportagem — identificou que conteúdos de canais oficiais, como o portal Gov.br e perfis de autoridades em redes sociais, superestimam o esforço federal no socorro ao Rio Grande do Sul.

Na avaliação de economistas entrevistados, a comunicação da gestão Lula está inflando em dezenas de bilhões de reais os valores federais disponibilizados ao considerar que linhas de crédito anunciadas, operadas por bancos públicos e privados, seriam "investimentos do governo federal" ou "recursos destinados" ao Estado.

Além disso, canais oficiais do governo e de ministros de Estado divulgaram a partir de domingo (12/5) que o governo já teria destinado mais de R$ 62 bilhões em ações para enfrentar a crise socioambiental gaúcha, sem detalhar o que está contabilizado nesses valores.

Para um dos especialistas em contas públicas entrevistados, esse cálculo teria contabilizado algumas ações duas vezes, inflando os números em ao menos R$ 7 bilhões.

As críticas vão desde economistas ligados à esquerda, como o consultor do PSOL na Câmara dos Deputados David Deccache, a especialistas com perfil liberal, como o ex-diretor da Instituição Fiscal Independe (órgão do Senado) Gabriel de Barros.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) não respondeu sobre as críticas de que a comunicação do governo estaria inflando os valores e disse que a Casa Civil responderia sobre as medidas anunciadas.

Já a Casa Civil respondeu que "todos os dados fornecidos pelo governo são claros e transparentes, desde a divulgação das primeiras ações".

O órgão também disse que "a decisão do Governo Federal de ofertar linhas de créditos é fundamental para o processo de retomada das atividades do setor produtivo gaúcho", sem responder diretamente sobre as críticas de que o governo estaria divulgando potenciais empréstimos sem recursos da União como "investimentos federais".

"Reiteramos que todos os esforços são realizados para ajudar o povo gaúcho nesse momento de extrema dificuldade", acrescentou a Casa Civil.

Já o Ministério da Fazenda informou à reportagem que deletou uma post em sua rede social e corrigiu um texto publicado no seu portal de notícias que erronelamente se referiam a um pacote anunciado pelo governo de R$ 50,9 bilhões como "recursos cedidos ao Estado” do Rio Grande do Sul.

A grande maioria desses valores corresponde, na verdade, a linhas de crédito (empréstimos a empresas e produtores rurais) e adiamento de impostos (que deverão ser pagos depois).

Entenda como os valores anunciados como recursos federais estão sendo contestados pelos especialistas.

O primeiro grande pacote do governo federal para o Rio Grande do Sul foi anunciado no dia 9 de maio, com valor de R$ 50,9 bilhões.

Esse montante representa uma projeção do impacto total de um conjunto de medidas que custariam concretamente para o governo o desembolso de R$ 7,7 bilhões.

Deste desembolso, R$ 7 bilhões são para impulsionar linhas de crédito, R$ 200 milhões são para fundos de estruturação de projetos de reconstrução e R$ 498 milhões para pagar duas parcelas adicionais de seguro-desemprego a trabalhadores afetados que já estivessem recebendo o benefício.

O custo real para o governo é menor porque parte dos R$ 50,9 bilhões anunciados inclui antecipação de benefícios que já seriam pagos, como Bolsa Família, antecipação de restituição de Imposto de Renda e adiamento de impostos (que terão que ser pagos posteriormente).

Além disso, a maior parte do pacote (R$ 39 bilhões) é composta por estimativas de quanto pode ser emprestado por bancos em linhas de crédito para pequenas empresas e produtores rurais, a partir de aportes do Tesouro Nacional no valor de R$ 7 bilhões para subsidiar juros e oferecer garantias contra eventuais calotes.

Essa garantia do governo permite aos bancos reduzir seu risco e, assim, oferecer crédito mais barato aos atingidos pelas inundações, mesmo no caso de empresas que agora estão em dificuldade financeira. Os empréstimos concedidos nessas operações, porém, são dos próprios bancos, que recebem compensação do Tesouro somente em caso de inadimplência.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, explicou no anúncio do pacote que a União iria pagar R$ 2 bilhões aos bancos para descontos nos juros e que depositaria mais R$ 5 bilhões em fundos garantidores, medidas que teriam potencial de gerar os R$ 39 bilhões em empréstimos para empresas e produtores rurais de pequeno porte, afetados pelas inundações no Rio Grande do Sul.

O maior volume projetado (R$ 30 bilhões) é para o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), criado em 2020, para oferecer crédito barato a empresas na pandemia de covid-19.

Relatório com dados do Pronampe mostra que bancos controlados pela União, como Caixa e Banco do Brasil, respondem por 54,5% dos empréstimos concedidos desde 2020 (R$ 144,6 bilhões), enquanto os valores restantes vêm majoritariamente de instituições privadas (Itaú, Bradesco, Santander e outros) e alguns bancos estaduais.

Embora Haddad tenha explicado no anúncio do pacote que esses R$ 39 bilhões seriam linhas de crédito, todo o montante anunciado foi classificado como "investimentos do governo federal no Rio Grande do Sul" em contas oficias de ministros de Lula e do próprio presidente.

A reportagem lista a seguir alguns exemplos:

No dia do anúncio, o então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, compartilhou na rede social X:

"AGORA: Presidente @lulaoficial anuncia R$ 50,9 bilhões em investimentos do governo federal para o Rio Grande do Sul. Os investimentos se destinam a trabalhadores assalariados, beneficiários de programas sociais, produtores rurais, empresas, municípios e estado do Rio Grande do Sul. #ForçaRS".

Na quarta-feira (15/5), Pimenta mudou de função ao ser nomeado ministro da Secretaria Extraordinária da Presidência da República de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul.

Já a conta do presidente Lula compartilhou na mesma rede a seguinte mensagem: "Durante a cerimônia de anúncio de R$ 50,9 bilhões em investimentos do governo federal para o Rio Grande do Sul, soube pela @JanjaLula que o cavalo Caramelo está sendo resgatado do telhado".

O Ministério da Fazenda, por sua vez, divulgou tanto em sua rede social como em sua página de notícias a informação de que "ao todo, as iniciativas representam um impacto de R$ 50,945 bilhões em recursos cedidos ao Estado", numa linguagem que sugere que os valores foram diretamente transferidos ao Rio Grande do Sul, apesar de o pacote envolver tributos adiados que terão que ser pagos posteriormente e potenciais linhas de crédito.

Após questionamento da BBC News Brasil, a Fazenda corrigiu o texto em seu site e deletou o post na rede social X.

“O Ministério da Fazenda atuou diretamente na concepção e formulação das medidas para reconstrução do Rio Grande do Sul. Sobre o conteúdo mencionado, o objetivo foi dar transparência a essas medidas, que incluem o acesso a crédito mais barato para agricultores e empresas e que, sem o recurso do Tesouro, não chegaria a quem foi afetado”, disse o ministério em nota à reportagem.

A pasta disse ainda que, no lugar do termo "cedidos", deveria ter informado que os valores seriam "viabilizados" pelas ações adotadas pelo governo.

Já a Secom não respondeu porque Lula e Pimenta se referem ao pacote como "investimentos do governo federal".

Para o economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV IBRE), não está errado incluir as projeções de crédito como parte das medidas para socorrer o Estado. Ele ressalta, porém, que não se trata de investimentos federais.

"Não é correto chamar esses R$ 50 bilhões de 'investimentos'. Trata-se, sim, de um pacote de suporte fiscal/creditício", respondeu à BBC News Brasil por mensagem.

Ele destaca, ainda, que os valores são apenas uma estimativa do que pode ser emprestado. "Não necessariamente esses R$ 30 bilhões serão totalmente demandados pelo setor privado", afirmou, sobre as projeções de impacto no caso do Pronampe.

Apesar de criticar a comunicação das medidas, Borges avalia que o governo tem agido com agilidade no anúncio de ações emergenciais e que será preciso ter uma avaliação melhor dos estragos para determinar quanto será necessário em novas ações.

Economista com doutorado pela Universidade de Brasília (UnB) e consultor do PSOL na Câmara, David Deccache diz que os recursos federais estão sendo inflados "em dezenas de bilhões de reais".

"A comunicação do governo inflou os números que foram apresentados pelos técnicos. Eles fizeram uma estratégia inadequada e que fere os princípios do Orçamento público".

Defensor da liberação de recursos mais expressivos para a reconstrução do Rio Grande do Sul pelo governo federal, ele considera que isso favorece o "terrorismo fiscal" contra novas ações.

Deccache ressalta que a arrecadação do governo estadual e dos municípios deve cair sensivelmente diante da paralisia de muitas atividades econômicas, ampliando a necessidade de investimentos do governo federal para bancar a reconstrução do Estado.

"Eu acho que, dada a situação de calamidade, a contabilidade dos recursos de fato gastos pelo governo federal deve ser muito rigorosa, muito transparente, porque há toda uma pressão do mercado financeiro para conter ao máximo possível os gastos no Rio Grande do Sul", argumenta.

"Então, se os gastos estão inflados para fazer propaganda política, isso pode prejudicar gastos necessários logo à frente", reforçou.

Deccache defende que seja criada uma página similar à que a Controladoria Geral da União adotou na pandemia de covid-19 para detalhar os gastos emergenciais adotados no governo de Jair Bolsonaro.

"Isso fortaleceria a transparência e eliminaria a guerra de narrativas (sobre o montante de gastos) entre a extrema-direita e a esquerda", disse.

"Como que se avalia políticas públicas sem dados concretos, sem rigor nas divulgações, sem notas metodológicas publicizadas?", questionou ainda.

O segundo grande anúncio do governo para o socorro do Rio Grande do Sul foi a edição de uma medida provisória no sábado (11/05) abrindo crédito extraordinário de R$ 12,2 bilhões para ações no Rio Grande do Sul.

O crédito extraordinário é o mecanismo fiscal que permite ao governo liberar recursos novos, fora dos limites da lei de Orçamento. O uso do instrumento na crise gaúcha foi autorizado pelo Congresso.

Esses valores serviriam para cobrir gastos já anunciados, como os R$ 7 bilhões para alavancar investimentos e os recursos extras para seguro-desemprego, além de bancar algumas despesas novas como atendimentos de emergência da Polícia Federal e da Força Nacional, reposição de remédios, limpeza e reforma de escolas e reconstrução de rodovias.

Com a abertura do crédito extraordinário, canais oficiais da gestão Lula e perfis de ministros nas redes sociais passaram a divulgar uma soma dos "recursos destinados ao Rio Grande do Sul". Alguns conteúdos falavam que os valores já somavam mais de R$ 60 bilhões, e outros que já somavam mais de R$ 62 bilhões.

Na segunda-feira (13/5) de manhã, por exemplo, o portal Gov.br, que reúne notícias da administração federal, publicou um texto dizendo que "o governo federal já destinou mais de R$ 62 bilhões em resposta à catástrofe socioclimática causada pelos temporais no Rio Grande do Sul", sem detalhar como chegou a esse valor.

A notícia mencionava que parte desses R$ 12,2 bilhões bancariam os custos para alavancar as linhas de crédito anunciadas antes, mas não apontava que isso representava mais da metade do crédito extraordinário (R$ 7 bilhões).

Ou seja, apesar de boa parte do novo anúncio incorporar ações do primeiro pacote de R$ 50,9 bilhões, o texto do governo parece somar esses valores para chegar aos "mais de R$ 62 bilhões" já destinados ao Rio Grande do Sul.

Outro texto do portal Gov.br divulgado na noite de segunda-feira (13/5) reforça a percepção de que o governo estava tratando o primeiro pacote e o crédito extraordinário como ações adicionais, sem levar em conta a repetição de parte das medidas.

Essa notícia divulgava o anúncio de suspensão do pagamento da dívida do Rio Grande do Sul por três anos e acrescentava: "As medidas agora apresentadas somam-se aos R$ 50,9 bilhões que haviam sido destinados -- entre antecipação de programas sociais e liberação de crédito para o RS -- e aos R$ 12,1 bilhões liberados por Medida Provisória para diversos órgãos federais executarem ações necessárias no atendimento aos municípios".

Para o economista Gabriel de Barros, ex-diretor da IFI, "há claro dupla contagem" nos anúncios do governo.

"Infelizmente, é surpreendente, mas não é inacreditável que o governo esteja inflando os números e fazendo dupla contagem para 'ganhar a narrativa' de que não faltou ajuda", disse em mensagem à reportagem, após analisar os números a pedido da BBC News Brasil.

Ele também não considera correto incorporar as linhas de crédito anunciadas no valor total dos recursos "destinados" ao Rio Grande do Sul.

"Esse recurso não é do governo, é dos bancos, inclusive privados. Isso revela um interesse do governo em se apropriar da narrativa de que ele é o grande provedor da reconstrução do Estado e usar a tragédia como vetor político para se alavancar do ponto de vista eleitoral, o que é totalmente reprovável", disse ainda.

A BBC News Brasil questionou a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) e a Casa Civil a respeito de como o governo chegou aos R$ 62 bilhões e em relação às críticas a uma possível duplicação na contabilização de recursos, mas não obteve esclarecimento.

A Casa Civil disse apenas que "sempre informou que as medidas somavam mais de R$ 60 bilhões", indicando que não poderia responder sobre outros ministérios.

Após o pedido enviado pela reportagem na terça-feira (14/05) para o governo explicar os valores totais anunciados, o texto do portal Gov.br foi alterado: em vez de dizer que "o governo federal já destinou mais de R$ 62 bilhões em resposta à catástrofe socioclimática", passou a afirmar que "o governo federal já destinou mais de R$ 60 bilhões em resposta à catástrofe climática".

A alteração não foi acompanhada de uma nota de correção explicando a mudança.

A informação de que foram destinados "mais de R$ 60 bilhões" passou a ser remetida, por meio de um link, a uma página lançada na quarta-feira (15/05), reunindo as ações do governo federal para o Rio Grande do Sul.

Segundo uma tabela que consta nessa página, os recursos já empregados somariam R$ 60,7 bilhões, sendo R$ 14,5 bilhões em "antecipação de benefícios e prorrogação de tributos" e R$ 46,2 bilhões em "recursos novos".

O primeiro grupo de despesas não é detalhado na página: o governo lista algumas medidas, sem especificar valores.

O segundo grupo traz um maior detalhamento e parece ter eliminado a dupla contagem, optando por contabilizar apenas os R$ 39 bilhões projetados para empréstimos, em vez dos R$ 7 bilhões de fato desembolsados pelo governo.

Sem somar aos valores totais "destinados", a página também informa que o governo suspendeu o pagamento da dívida do Rio Grande do Sul com a União por três anos, o que vai liberar R$ 11 bilhões em investimentos no período. A ação veio acompanhada do perdão dos juros que incidiriam nesse intervalo (R$ 12 bilhões).

A suspensão da dívida foi anunciada na tarde de segunda-feira (13/05), depois, portanto, do governo dizer que já havia destinado mais R$ 62 bilhões ao Estado.

Os valores listados na tabela que soma as ações para o Rio Grande do Sul também não incluem ainda o último anúncio do governo, feito na quarta-feira (15/5), de que vai pagar uma parcela única de R$ 5,1 mil para famílias afetadas pelas inundações, no chamado Auxílio Reconstrução. A administração Lula estima gastar ao menos R$ 1,2 bilhão, com 240 mil benefícios.

Para o economista Rafael Schiozer, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), essa ação é mais urgente e efetiva para socorrer as famílias emergencialmente do que as dezenas de bilhões em potenciais empréstimos anunciados, embora ressalte que as linhas de crédito também são uma medida positiva.

"O anúncio do auxílio até que foi rápido, talvez por causa da experiência que tivemos na pandemia. Agora temos que ver qual será a eficiência para efetuar os pagamentos", disse.

Os valores anunciados têm sido questionados pela oposição, que acusa a gestão Lula de não reagir adequadamente à catarstrofe.

Há críticas, porém, que também vêm acompanhas de informações erradas.

O deputado federal, Nikolas Ferreira (PL-MG), por exemplo, questionou o pacote de R$ 50,9 bilhões em post no sábado (11/05).

“Quando você escutou ‘Governo envia 50 bilhões para o RS’, você pensou - assim como todos - que seria direto para o caixa do Governo de RS pra ajudar o Estado, não foi) Era o que deveria ser, mas não. Dos 50 bilhões, apenas 1 bilhão é isso”, disse, apesar de nenhuma parte desses recursos ser direcionada ao caixa do governo estadual.

Depois, ele diz que “R$ 10 bilhões correspondem a adiantamentos de auxílio que as pessoas já iriam receber ou a adiamentos de impostos que terão de pagar depois” e que os “R$ 40 bilhões restantes são empréstimos que todos nós teremos de pagar depois, com juros”.

As linhas de crédito anunciadas, porém, são para pequenas empresas e produtores rurais – são esses grupos que pagarão os empréstimos, não toda a população.

Fonte: correiobraziliense

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