Quando o assunto é sobrevivência, poucos patógenos são mais resistentes do que o norovírus.
Todos os anos, este vírus gastrointestinal causa desagradáveis episódios de diarreia e vômito em cerca de 685 milhões de pessoas em todo o mundo – muitas vezes, em hospitais, casas de repouso, prisões, escolas e navios de cruzeiro.
As últimas estatísticas dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos revelam que o norovírus voltou a se espalhar rapidamente pelo país. No nordeste dos Estados Unidos, os casos vêm aumentando com maior rapidez desde outubro de 2023.
Mas, para entender por que é tão difícil combater o norovírus depois do início do surto, é preciso verificar o seu grau de resistência.
"É um vírus muito forte", afirma a professora emérita de biologia e estudiosa do norovírus Patricia Foster, da Universidade de Indiana em Bloomington, nos Estados Unidos.
O vírus é capaz, por exemplo, de sobreviver intacto em alimentos sob temperaturas de até 70ºC.
"Ele consegue sobreviver ao calor, ao frio congelante e ao tempo extremamente seco", explica a professora. "E, por isso, ele simplesmente passa dias sobre uma superfície."
Grande parte dessa resistência se deve a um revestimento de proteína na superfície do vírus, que age como uma pequena armadura, protegendo seu material genético interno.
Foster destaca que muitos vírus adquirem um revestimento de membrana enquanto passam de uma célula para outra, o que aumenta sua capacidade de se espalhar pelo corpo. Mas isso também os torna suscetíveis ao álcool e aos detergentes.
"O norovírus não faz isso", explica ela. "Ele é apenas uma pequena bomba de proteína, de forma que produtos como higienizadores das mãos não conseguem matá-lo enquanto ele ainda puder se mover de uma célula para outra."
O nosso conhecimento sobre a forma exata em que o norovírus se espalha pelo corpo ainda é relativamente pequeno. Mas sabemos que ele é transmitido entre as pessoas com incrível rapidez.
Acredita-se que sejam necessárias apenas 10 partículas de norovírus para que a infecção se estabeleça. Em termos comparativos, estima-se que a chamada dose infecciosa de covid-19 seja de cerca de 100 a 400 unidades do vírus SARS-CoV-2.
Mas, nas últimas décadas, os virologistas começaram a descobrir que alguns de nós carregam fatores biológicos naturais que nos protegem contra a doença.
Os chamados challenge studies (ou ensaio de desafios humanos), com voluntários pagos que concordam em serem infectados deliberadamente com uma linhagem de norovírus, ajudaram a determinar que até uma a cada cinco pessoas de descendência europeia carrega uma mutação em um gene chamado FUT2.
Essa mutação desativa uma enzima que os protege contra o GII-4, a mais comum das 29 linhagens de norovírus conhecidas atualmente com capacidade de infectar seres humanos. Essa linhagem é responsável por causar de 50% a 70% de todos os surtos de norovírus do mundo.
Isso acontece porque o norovírus geralmente prefere entrar nas células do intestino delgado através dos antígenos, por entradas moleculares conhecidas como oligossacarídeos, que são compostos por uma série de açúcares diferentes.
O GII-4 e diversas outras linhagens de norovírus precisam de um oligossacarídeo específico, conhecido como antígeno H1, para infectar uma pessoa.
Mas as pessoas que carregam uma mutação no gene FUT2 não possuem uma enzima envolvida em uma etapa fundamental na formação do antígeno H1 nas células produtoras de muco na boca, garganta, intestino e pulmões. E, sem esses antígenos nas células, o vírus GII-4 é incapaz de causar a infecção.
Como as pessoas que carregam essa mutação não produzem a enzima FUT2 nas células produtoras de muco, os virologistas as chamam de "não secretores".
Pela mesma razão, o tipo sanguíneo, que é determinado pela composição genética, também desempenha um papel importante na resistência e na susceptibilidade às diferentes linhagens de norovírus.
Pessoas com sangue tipo B costumam ser mais resistentes, pois menos linhagens evoluíram para se ligar àqueles oligossacarídeos específicos. Já as pessoas com sangue tipo A, AB ou O são muito mais propensas a ficar doentes.
Segundo o professor e especialista em vírus Robert Atmar, da Faculdade de Medicina Baylor em Houston, no Texas (EUA), esta informação poderá ajudar a desenvolver melhores antivirais contra linhagens de norovírus no futuro.
"Estão sendo realizados estudos para observar se a interação entre os norovírus e os antígenos das células pode resultar no desenvolvimento de produtos terapêuticos", explica ele.
Mas esse trabalho é complexo, devido à velocidade de adaptação e alteração do material genético do norovírus, que faz com que algumas linhagens ainda encontrem uma forma de infectar indivíduos relativamente resistentes.
"Eu mesma sou não secretora", afirma Foster. "Isso significa que você tem alguma resistência, mas não completa, já que o norovírus evolui com extrema rapidez."
Ela prevê que, com o passar do tempo, os próprios não secretores podem se tornar mais suscetíveis a variantes do GII-4, à medida que esta linhagem de norovírus encontrar caminhos diferentes para ingressar no corpo.
"Estive lendo sobre a evolução do GII-4 e todas as variantes que apareceram nos últimos 20 anos, principalmente na China", explica a professora. "A conclusão é que ele está interagindo cada vez melhor com diferentes locais de ligação nas nossas células. É o jogo da evolução."
Embora o norovírus não costume matar seu hospedeiro, ele pode ser letal para pessoas com sistema imunológico enfraquecido, crianças e idosos.
O patógeno causa cerca de 200 mil mortes por ano, particularmente em países de baixa renda, e 70 mil hospitalizações nos Estados Unidos.
Por isso, os virologistas estão tentando empregar nosso conhecimento cada vez maior do vírus para ajudar a desenvolver vacinas.
Há décadas, a própria ideia de criar uma vacina contra o norovírus era absurdamente difícil. Um dos motivos é que o patógeno evolui com tanta rapidez que qualquer vacina ficaria rapidamente desatualizada.
O norovírus também é famoso por ser dificilmente cultivado em laboratório, o que prejudica seu estudo.
No entanto, nos últimos anos, pesquisadores começaram a idealizar formas de cultivar o vírus em células do intestino humano, mantidas em placas de Petri.
Esse procedimento pode ser fundamental para testar qual seria a melhor forma de induzir o sistema imunológico a criar uma reação de anticorpos poderosa contra o vírus.
"Estes modelos de cultivo celular podem ser úteis para o desenvolvimento de vacinas, demonstrando que a reação imunológica gerada após a vacinação mata ou inativa o vírus, neutralizando sua capacidade de infecção", explica Atmar.
Mas, como existem muitas linhagens de norovírus e um fluxo aparentemente contínuo de novas variantes, a vacina precisará incluir uma reação imunológica muito ampla.
O professor de doenças infecciosas Ming Tan, do Centro Médico do Hospital Infantil de Cincinnati, em Ohio (EUA), afirma que, muito provavelmente, será necessário desenvolver uma vacina bivalente ou multivalente, com diversas partículas imunizantes, de vários pontos do código genético do vírus. Só assim, poderemos ter alguma chance de atingir a imunidade duradoura.
Essa vacina deverá ser particularmente importante se ela for aplicada em crianças pequenas, para evitar um fenômeno conhecido como "impressão antigênica" – a tendência do sistema imunológico de confundir uma nova variante viral com outra que já foi encontrada e, assim, preparar uma reação de anticorpos ineficiente.
Pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, acreditam que, se for administrada uma vacina adequada e abrangente a crianças com cerca de seis meses de idade, ela poderá orientar a reação dos anticorpos a outras variantes do norovírus.
O desenvolvimento dessa vacina abrangente não é uma tarefa fácil, mas diversas companhias e grupos de pesquisa aceitaram o desafio. E cada um deles decidiu utilizar uma plataforma tecnológica diferente.
A Moderna iniciou um teste clínico com uma vacina de RNA mensageiro (mRNA) contra o norovírus, inicialmente em pessoas na faixa de 18 a 49 e de 60 a 80 anos de idade.
Paralelamente, a empresa de biotecnologia HilleVax, com sede em Boston (EUA), está realizando testes da sua vacina em bebês de cinco meses, crianças de dois a nove anos, adultos de 18 a 59 anos e idosos com mais de 60 anos.
A técnica da HilleVax usa partículas semelhantes ao vírus (VLPs, na sigla em inglês), que são moléculas que imitam linhagens de norovírus. Por isso, elas acionam a reação imunológica, sem causar realmente a infecção.
"Ainda estamos aprendendo muito sobre as vacinas contra o norovírus e como elas podem oferecer proteção", segundo Atmar.
"Sabemos que a administração de vacinas baseadas em VLPs pelo nariz ou por injeção intramuscular pode trazer proteção contra a doença. As vacinas de mRNA podem permitir a inclusão de um maior número de linhagens."
"Acho que todas elas provavelmente serão eficazes e a eficácia relativa irá depender de outros fatores que ainda estamos aprendendo, incluindo a amplitude da reação imunológica após a vacinação, a duração da reação imunológica e o papel das infecções passadas e da composição genética sobre a reação e a proteção do indivíduo", explica o professor.
Apesar de todos esses esforços, o sucesso provavelmente irá depender da rapidez com que a vacina precisará ser atualizada e readministrada como dose de reforço.
Ming Tan publicou recentemente um estudo sobre a técnica usada pelo seu laboratório para produzir uma vacina contra o norovírus. Ele admite que a necessidade de atualização e doses de reforço pode ser um obstáculo para o desenvolvimento.
"As vacinas produzidas utilizando a nossa técnica precisarão de atualizações regulares para atender aos desafios da rápida evolução do vírus e ao possível surgimento de novos genótipos de norovírus como linhagens predominantes no futuro", explica ele.
Mas Atmar permanece mais otimista. Para ele, precisamos aguardar os resultados de testes muito mais amplos para chegar a conclusões firmes sobre a possível durabilidade da vacina.
"Os resultados de um dos estudos da vacina com VLP sendo realizados pela HilleVax indicam que ela pode proteger contra doenças causadas pela linhagem GII-2 quando a vacina contiver as linhagens GI-1 e GII-4", afirma ele. "Por isso, não sabemos se será como a influenza ou a covid [que precisam de doses de reforço regulares] ou se pode ser mais próxima do RSV [vírus sincicial respiratório, na sigla em inglês], que não exige atualizações de linhagens."
Mas, se conseguirmos desenvolver pelo menos uma vacina nos próximos anos, ela irá representar um passo importante na batalha travada pela humanidade contra o norovírus.
"Estamos evoluindo paralelamente a esse vírus há centenas de milhares de anos", destaca Foster.
"E ele pode ser um assassino, particularmente de bebês e pessoas imunocomprometidas, que não conseguem se livrar do vírus, de forma que qualquer vacina será um progresso."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site da BBC Future.
Fonte: correiobraziliense
Utilizamos cookies próprios e de terceiros para o correto funcionamento e visualização do site pelo utilizador, bem como para a recolha de estatísticas sobre a sua utilização.