A família da psicóloga Iara Iavelberg, morta em 1971 durante a ditadura militar, enfrentou, além do luto, uma longa disputa para tentar tirá-la da "ala dos suicidas" do Cemitério Israelita do Butantã, na cidade de São Paulo.
A versão da ditadura para a morte de Iara — militante marxista que combatia o regime militar — foi de que ela havia se matado, mas seus parentes duvidaram disso desde o início.
Por isso, eles não aceitaram que ela ficasse enterrada nesta área dos cemitérios judaicos reservada aos suicidas, longe daqueles que haviam morrido por outras causas.
Com a ajuda do rabino Henry Sobel (1944-2019), a família de Iara conseguiu, após uma longa batalha judicial, que o corpo de Iara fosse exumado em 2003.
Um perito avaliou não ter ficado comprovado o suicídio e laudos mostraram que Iara morreu durante um cerco policial em Salvador, na Bahia.
Em 2006, a psicóloga foi enterrada novamente no mesmo cemitério, mas, desta vez, fora da ala dos suicidas e ao lado do túmulo do pais.
Um dos irmãos de Iara, o fotógrafo Samuel Iavelberg, de 78 anos, conta à BBC News Brasil que a disputa judicial foi necessária porque o cemitério relutou em permitir a exumação, alegando motivos religiosos que impediriam o procedimento.
Samuel e Iara eram muito próximos, ele conta, do tipo de irmãos que não brigam. Iara era cerca de um ano mais velha que ele.
Os dois, inclusive, começaram a militância universitária no mesmo período e na mesma faculdade, ingressando juntos na Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop).
Quando ela morreu, aos 27 anos, Samuel estava no exílio, no Chile, e não pôde acompanhar o enterro
"Lógico, ficamos muito tristes, mas a gente estava como que contando com essa possibilidade, porque as organizações de esquerda que faziam a luta armada estavam sendo dizimadas", lembra o fotógrafo.
O enterro na ala dos suicidas causou revolta, conta Samuel, porque endossava a versão do regime militar, mas a existência dessa parte do cemitério não trouxe surpresa.
"Toda criança judaica sabe que existe uma ala dos suicidas. Toda criança sabe que não pode se suicidar segundo a religião porque não se pode renegar a vida que Deus deu", diz o fotógrafo, que hoje se considera ateu.
O caso de Iara Iavelberg e de outros militantes de famílias judias durante a ditadura lançou luz sobre a antiga tradição desta religião de separar os suicidas em alas próprias nos cemitérios.
Um dos casos mais notórios foi do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975. Segundo afirmaram os militares na época, Herzog teria se matado nos porões do DOI-CODI, principal órgão de repressão da ditadura em São Paulo.
O rabino Henry Sobel também teve um papel central neste episódio, confrontando a versão oficial após ver o corpo e identificar marcas de tortura.
Sobel conduziu então o sepultamento de Herzog no centro do mesmo cemitério onde Iara foi posteriormente enterrada, e não na ala dos suicidas. Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro pelo assassinato de Herzog.
A família do jornalista foi procurada pela BBC News Brasil, mas não quis se manifestar a respeito.
A existência de uma ala para enterro de pessoas que se mataram é simbólica da histórica rejeição do judaísmo ao suicídio — um tabu compartilhado por outras religiões, como a BBC News Brasil vem mostrando na série de reportagens "Suicídio e Fé".
Essa prática começou a ser abandonada no século 20, segundo representantes e estudiosos do judaísmo consultados pela BBC News Brasil.
No Estado de São Paulo, onde está a maior população que segue o judaísmo no Brasil (51.050, de um total de 107.329 no país, de acordo com o Censo 2010), a organização que administra os quatro cemitérios judaicos existentes, a Associação Cemitério Israelita de São Paulo (Chevra Kadisha), afirma que não há mais essa separação.
Segundo Shie Pasternak, rabino da Chevra Kadisha de São Paulo, há cerca de 20 anos essa prática mudou — mas ele explica por que o judaísmo historicamente rejeitou os suicidas.
"Não somos donos do nosso corpo e temos a obrigação de cuidar do corpo que Deus nos deu. O corpo é sagrado. Por isso, antigamente, judeus que cometiam suicídio eram sepultados próximos aos muros do cemitério, de forma a serem isolados por terem tirado a própria vida."
O rabino afirma que, devido ao conhecimento atual sobre o papel de distúrbios mentais no suicídio, isso foi abandonado.
"Entendemos, portanto, judeus do mundo todo, que não podemos julgar quem comete suicídio. Cabe apenas a Deus julgar."
Por sua vez, Marcos Zalcman, presidente da Chevra Kadisha do Rio — o segundo Estado com mais seguidores do judaísmo no país (24.451 pessoas) —, diz não ter registros de que os cemitérios locais já tenham tido uma ala separada para suicidas.
"Mesmo um evento ocorrido na década de 1930, noticiado no jornal da época como suicídio, foi enterrado em um local como qualquer outro, escolhido pelos familiares", diz Zalcman.
O rabino Ruben Sternschein, representante da Confederação Israelita do Brasil (Conib) para o diálogo inter-religioso, afirma tampouco ter ficado sabendo de casos recentes, no Brasil e no mundo, de suicidas que tenham sido enterrados em uma ala separada.
Sternschein diz perceber em seu dia a dia um aumento do número de pessoas que o buscam por ter perdido alguém que se matou, por terem tentado se matar ou por apresentarem questões de saúde mental preocupantes.
"Eu me deparei, infelizmente, com vários casos. Acho que cada vez mais, em diversas idades e diferentes contextos socioeconômicos", conta o rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), apontando que frequentemente recomenda que pessoas que buscam sua ajuda procurem ajuda especializada, com psicólogos e psiquiatras.
Sternschein diz que a antiga separação da ala dos suicidas nos cemitérios, dizendo que ela tinha um foco "mais na valorização da vida do que na condenação do suicídio" e defende que haja maior empatia nas religiões com o assunto.
"Não deveria haver no suicídio nada relacionado com culpa, pecado e condenação. A sociedade tem que se perguntar, e a religiosidade tem que se perguntar, se soube ajudar o suficiente", defende o rabino.
Na população brasileira como um todo, a taxa de suicídios por 100 mil habitantes aumentou nos últimos anos, segundo um estudo publicado em fevereiro na revista científica The Lancet Regional Health Americas.
De 2011 a 2021, a taxa de suicídios no Brasil teve crescimento médio de 3,7% ao ano.
Números absolutos de suicídios contabilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram aumento ano após ano de 2016 a 2022.
Karen Scavacini, doutora em psicologia e fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, diz "não ter dúvidas" de que há um aumento real no número de suicídios no país.
"Há um aumento, especialmente no período pós-pandêmico. Eu vejo pela experiência de trabalhar com psicólogos e de ter contato com muitos psiquiatras. Os números têm aumentado, de tentativa e de suicídio completo", diz, acrescentando que os números devem ser até "muito maiores", devido à subnotificação.
Segundo os psicólogos, cientistas sociais e enlutados pelo suicídio entrevistados pela BBC News Brasil na série Suicídio & Fé, esse fenômeno deixa em evidência o tabu cultural com o assunto — para o qual as religiões têm contribuído há séculos.
No passado, a Igreja Católica Apostólica Romana determinou que suicidas não recebessem os ritos funerários como outras pessoas, deixando de ter missas de sétimo dia, por exemplo.
As igrejas evangélicas, mesmo com toda a sua diversidade, têm como postura comum a interpretação do suicídio como um pecado, e há relatos de denominações que até hoje não realizam velórios para quem se matou.
O catolicismo apostólico romano (religião de 64,6% dos brasileiros), as igrejas evangélicas (22,1%) e o espiritismo (2%) são as religiões com mais seguidores no Brasil segundo o Censo 2010.
Mas a BBC News Brasil decidiu abordar também o judaísmo, que apesar de não ter tantos adeptos quanto esses outros grupos, por anos praticou algo tão simbólico do tabu com o suicídio quanto a ala dos suicidas nos cemitérios.
O último Censo mostrou que os seguidores do judaísmo são 0,06% da população brasileira.
Scavacini afirma que há muitas evidências científicas mostrando que a religião pode ser um fator de proteção contra o suicídio — por trazer experiências em comunidade, atividades sociais e esperança, entre outros fatores.
"Mas em alguns casos, a religião pode ser um fator de risco, especialmente se ela traz vergonha, exclusão. Se traz esse valor de que foi algo errado, de algo moral. Isso vai trazer dor", afirma, apontando que a religião pode fazer mal para quem pensa em ou tentou suicídio, além daqueles que perderam uma pessoa querida para o suicídio.
"As religiões têm mudado com o tempo, mas [o tabu] ainda está muito forte no imaginário popular."
Os pesquisadores Israel Orbach e Aron Rabinowitz, que analisaram como o judaísmo encara o suicídio, afirmam que, na Bíblia hebraica (a Tanakh), não há menção direta ao suicídio — embora vários personagens expressem a vontade de morrer ou de fato se matem.
Essas passagens muitas vezes não são apresentadas de forma condenatória — pelo contrário, há casos em que o suicídio é visto como uma saída honrosa, como o do rei Saul, que preferiu morrer a ser aprisionado e torturado pelos filisteus.
Com o tempo, os rabinos que estudaram a Tanakh fizeram interpretações da proibição ao suicídio a partir de alguns trechos, como os Dez Mandamentos, importantes também para o cristianismo.
A ordem "Não matarás" está na Bíblia hebraica (a base do Antigo Testamento para os cristãos).
Orbach e Rabinowitz concluíram que, apesar de existirem muitos exemplos na Bíblia hebraica de histórias em que o suicídio é uma saída honrosa quando forças externas ameaçam princípios da religião, os textos que se acumularam ao longo dos séculos formam uma proibição “categórica” ao suicídio.
De acordo com a pesquisadora Ranana Dine, judia e doutoranda em Ética Religiosa na Universidade de Chicago, o tratado Semachot é a fonte judaica mais antiga a tratar explicitamente de ritos funerários para suicidas.
A data de publicação desse tratado é debatida entre os pesquisadores, mas provavelmente ocorreu entre os séculos 3 e 8.
"Para um suicídio, nenhum rito deve ser observado", diz um trecho do tratado (em tradução livre).
"A regra geral é: o público deve participar em tudo o que for feito por respeito aos vivos; não deve participar de nada que seja feito por respeito aos mortos", diz, indicando reverência às pessoas que ficam e não ao suicida.
Não se sabe ao certo, porém, quando começou a separação, nos cemitérios, de uma ala para os suicidas. Frequentemente, ao serem colocados nessa parte, os corpos de pessoas que se mataram ficavam longe das lápides de seus familiares.
Segundo Orbach e Rabinowitz, há textos antigos de autoridades rabínicas determinando também que suicidas não deveriam receber ritos funerários comuns a outros judeus, como a purificação do corpo, o hábito de enlutados rasgarem um pedaço de sua roupa como demonstração de dor e os sete dias de luto, período chamado de shivá.
No final do século 19, começam a aparecer os primeiros escritos com uma abordagem mais compreensiva do suicídio, segundo a pesquisa de Dine, que no mestrado estudou como o judaísmo e o catolicismo lidaram no passado e lidam no presente com o suicídio.
Ruben Sternschein reconhece ser difícil precisar desde quando e quão disseminada é a decisão de sepultar suicidas de forma convencional, sem uma separação.
Isso porque, diferente por exemplo da Igreja Católica Apostólica Romana, que tem um poder centralizado — e decidiu em um documento de 1983 mudar suas práticas para ritos funerários de suicidas —, os rabinos têm relativa autonomia local.
"Não existe uma estrutura no judaísmo em que saia um edito e todo mundo tenha que fazer isso. É impossível. Não poderia haver uma única autoridade no judaísmo, porque o judaísmo é contrário a isso", explica o rabino, apontando que essa religião é uma "tradição de discussões".
"Aparece uma interpretação que vai passando para o outro, alguém contesta essa interpretação, ou amplia essa interpretação... Assim foi o judaísmo sempre. O mais tradicional no judaísmo é a transformação, a discussão", diz Sternschein.
Ele se define como um rabino liberal, pertencendo a uma corrente mais flexível a reformas no judaísmo. Já o judaísmo ortodoxo tende a ser mais conservador quanto a mudanças de interpretação sobre escrituras antigas.
Entretanto, entrevistados ouvidos pela BBC News Brasil afirmaram não ter notícias de que haja mais condutas diferentes em relação ao enterro de suicidas, independente da corrente judaica.
Ranana Dine ratifica que, atualmente, não se pratica mais a separação de uma ala para suicidas — e ela responde que essa é uma conduta comum aos rabinos do mundo, dos mais ortodoxos aos mais reformistas.
"É bastante homogênea a percepção de que o suicídio é algo ruim de se fazer, por conta da perspectiva teológica de que Deus tem o domínio da vida. O judaísmo é uma religião que realmente valoriza a vida", aponta Dine.
"Mas acredito que todos os rabinos em todo o espectro diriam que, uma vez que um suicídio aconteceu, ele deve ser tratado com compaixão. Mesmo que haja nos livros e que haja um precedente histórico para não sepultar normalmente suicidas."
Fonte: correiobraziliense
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