22 de Novembro de 2024

Os sul-africanos que ainda vivem sob 'apartheid econômico' 30 anos após fim da segregação racial


O quarto de Jameelah já foi um necrotério; o de Faldilah, um banheiro; e o de Bevil, o consultório médico que ele visitava para receber seu remédio contra o diabetes.

Eles ocuparam um hospital abandonado na Cidade do Cabo, na África do Sul. Foi um protesto contra o que eles consideram ser falha do governo, por não oferecer moradias à população a custos acessíveis.

O fim do apartheid no país trouxe liberdade e direitos políticos para todos. Mas, às vésperas da sétima eleição democrática da África do Sul, a desigualdade persiste em dividir o país.

Em muitos aspectos, a política habitacional do partido do governo, o Congresso Nacional Africano (CNA), reforçou inadvertidamente a geografia do apartheid, em vez de combatê-la.

Ativistas pertencentes a um movimento chamado Reconquiste a Cidade ocuparam o Hospital Woodstock na calada da noite, sete anos atrás.

Seu objetivo foi ocupar imóveis perto do centro da cidade, segundo um dos líderes do movimento, Bevil Lucas.

O acesso a empregos e serviços é fundamental para corrigir os erros causados pela segregação.

"Uma nova forma de apartheid econômico" substituiu as leis racistas que mantinham os negros e as pessoas de cor (como são chamados os cidadãos sul-africanos com herança racial mista) presos na pobreza em bairros distantes da Cidade do Cabo, declarou Lucas à BBC.

"Os pobres e vulneráveis em geral foram empurrados para a periferia da cidade", ele conta. Agora, eles têm o direito de se mudar, mas não conseguem pagar os altos valores de aluguel exigidos pelos incorporadores de imóveis no centro da cidade.

Para Jameelah Davids, a localização era tudo.

"Eu me mudei para cá por causa do meu filho, que é autista", ela conta. "Ele frequenta a escola que fica na esquina. Era muito perto para ele. Tudo está ali. E ele evoluiu."

Ela instalou sua família no antigo escritório do necrotério do hospital.

Outra moradora, Faldilah Petersen, mostrou como ela transformou o banheiro do hospital na sua casa. O cubículo do toalete passou a ser a cozinha e a área do lavatório, o quarto de dormir.

"Fui despejada cerca de 10 vezes em um ano", ela conta. "Mas morar nesta ocupação me deu a oportunidade de melhorar minha vida."

"Tenho mais liberdade de fazer o que preciso e também fico muito mais perto da cidade. É como um retorno ao lar."

As autoridades municipais concordam que o local pode ser reformado para fins residenciais, mas afirmam que os atuais moradores são ocupantes ilegais, que precisam sair antes que comecem as reformas.

O CNA chegou ao poder 30 anos atrás, com a Carta da Liberdade que prometeu moradia para uma população que foi privada de lares seguros e confortáveis, devido ao apartheid. Desde então, o governo construiu mais de três milhões de casas, concedendo sua propriedade gratuitamente ou alugando abaixo dos preços de mercado.

Mas a lista de pessoas em busca de casas do governo ainda é longa. Davids espera há cerca de 30 anos, enquanto Petersen está na lista há ainda mais tempo.

E a maioria das casas foi construída longe do centro da cidade, onde os terrenos são mais baratos. Com isso, o governo deixou de reverter o planejamento urbano do apartheid, que perpetuava as desigualdades.

A Cidade do Cabo é o exemplo mais típico deste processo, segundo o pesquisador de políticas urbanas Nick Budlender. Ele afirma que a cidade "provavelmente é a área urbana mais segregada do planeta".

A região foi o ponto de entrada dos colonizadores. Foi assim que eles projetaram a cidade, segundo o pesquisador, e reverter esta situação exigiria intervenções estatais criteriosas.

Mas, "desde o fim do apartheid, nenhuma unidade habitacional com custo acessível foi construída no centro da Cidade do Cabo", afirma Budlender.

Ele me oferece um tour pelos estacionamentos que guardam veículos governamentais, alguns deles apenas acumulando poeira. Esses terrenos são alvo dos ativistas, já que são terrenos públicos disponíveis que poderiam ser transformados em residências para pessoas de baixa renda.

"Usar um terreno no centro da cidade que sofre com essa séria crise de segregação para armazenar veículos, em vez de oferecer casas... não faz sentido do ponto de vista de ninguém", destaca Budlender.

Existem sinais de uma nova abordagem. O governo da província, liderado pelo partido Aliança Democrática (AD), está construindo um modelo de "moradia melhor" em terras do Estado, perto dos empregos e serviços da cidade.

Foi criado o projeto do Parque Conradie – por acaso, também no local de um antigo hospital. A primeira fase oferece um conjunto de opções subsidiadas e outras com valor de mercado, enquanto a segunda fase do projeto está em construção.

O Ministro da Infraestrutura Provincial, Tertuis Simmers, reconhece os atrasos que levaram 600 mil pessoas a aguardar sua moradia. Ele afirma que existem planos "ambiciosos" de construir 29 projetos similares de moradia social.

Mas o orçamento é pequeno. O ministro está buscando parcerias com o setor privado e não há prazos de conclusão definidos.

As dificuldades de moradia costumam ser um tema importante durante as eleições, mas vêm perdendo destaque entre as prioridades políticas. O manifesto da AD, que é o partido de oposição oficial em nível nacional, não menciona especificamente a habitação – e o mesmo ocorre com os outros partidos.

Nas ruas estreitas do bairro de Khayelitsha, na Cidade do Cabo, existe pouca esperança no futuro. Muitos moradores dos inúmeros barracos de ferro corrugado espalhados pelo bairro saem de casa antes do amanhecer para ir à cidade trabalhar, da mesma forma que faziam seus pais e até seus avós.

A distância é de cerca de 30 km e os micro-ônibus, táxis e trens que eles usam são caros, não confiáveis e, muitas vezes, inseguros.

Noliyema Tetakome morou ali pela maior parte dos seus 49 anos. Ela consegue água na torneira comunitária no final do beco onde mora e usa as latrinas públicas.

Ela é jardineira e gasta um quarto do seu magro salário com o transporte até o seu local de trabalho. Alguns dos seus vizinhos gastam até a metade dos seus salários – e ela não espera que a eleição vá mudar esta situação.

Tetakome depositou seu voto em todas as eleições até aqui, mas "não faz nenhuma diferença", segundo ela.

Desta vez, ela afirma que "não irá votar", inclinando-se para frente na cadeira para dar mais ênfase. "Porque estou cansada. Porque eu já votei, mas não vi mudanças. Ainda estou aqui!"

Sua principal preocupação são as chuvas de inverno que estão chegando e devem inundar novamente o seu barraco.

A desilusão com o partido do governo, o CNA, indica que o partido da liberdade pode perder, pela primeira vez, a maioria absoluta com que governa o país desde a eleição de Nelson Mandela, em 1994.

O terceiro maior partido da África do Sul, os Combatentes da Liberdade Econômica (CLE), questiona o que ele chama de décadas de fracasso do CNA no fornecimento de um "plano de resgate" radical, para redistribuir a maior parte da renda que ainda se encontra nas mãos de uma pequena minoria.

E um novo partido, chamado Rise Mzansi, também explora as divisões que continuam existindo na Cidade do Cabo.

"Acreditamos que os sul-africanos deveriam poder morar mais perto dos seus locais de trabalho", afirmou recentemente o líder nacional do partido, Songezo Zibi, em uma visita de campanha. Ele acusa a AD e o CNA de não elaborarem o tipo de planejamento urbano necessário para a cidade, que se encontra em rápido crescimento.

O Rise Mzansi ainda não foi observado em ação, mas o partido chega sem a bagagem do mau uso do poder que marca o CNA e a corrupção generalizada que obscureceu suas décadas no governo.

"Os poderes existentes estão muito associados ao poderio imobiliário", afirma Lucas. Ele conversa comigo empoleirado na cama instalada nas suas apertadas instalações, que ocupam a mesma sala onde ele costumava consultar seu médico.

Ex-ativista antiapartheid que nunca deixou de defender a justiça social, Lucas explica que está decepcionado com o resultado das lutas. Mas ele insiste que o futuro ainda oferece possibilidades.

Para ele, "como é uma eleição, há esperança, o que não existia no antigo regime".

Lucas ainda espera que as autoridades políticas atendam à escala de necessidades sociais que permanece como legado do apartheid.

"Se não houver atendimento adequado", explica ele, "poderá haver convulsão social – e convulsão social significativa. O que as pessoas têm a perder quando já estão sem teto, quando não conseguem ter abrigo?"

Fonte: correiobraziliense

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