Os oceanos do planeta são como uma bateria global. Eles absorvem imensas quantidades de calor, que são liberadas lentamente em seguida.
Até agora, os nossos oceanos já absorveram mais de 90% do calor capturado na atmosfera da Terra pelo aumento das emissões de gases do efeito estufa. Mas, nos últimos tempos, esse aquecimento se acelerou vertiginosamente.
Desde o fim de março de 2023, as temperaturas da superfície dos oceanos atingem novos recordes de temperatura diariamente. E, em 47 desses dias, as temperaturas superaram os recordes anteriores pela maior margem já registrada na era dos satélites, segundo os dados do Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus, da União Europeia.
Em fevereiro de 2024, o mundo completou um ano com aquecimento das temperaturas do ar acima de 1,5 °C. Mas, no ano passado, algumas regiões dos oceanos atingiram níveis muito próximos do que seria esperado se o aquecimento global do ar atingisse 3 °C acima dos níveis pré-industriais.
Estas medições sugerem que o oceano está se aquecendo com maior rapidez do que o esperado.
O rápido aumento da temperatura dos mares trouxe um quebra-cabeça para os cientistas: por que o recente aquecimento dos oceanos é ainda maior do que o indicado pelos modelos climáticos?
"O salto das temperaturas do oceano no último ano é enorme", segundo a professora de impactos das mudanças climáticas Hayley Fowler, da Universidade de Newcastle, no Reino Unido. "O fato de não podermos simular esses aumentos radicais e compreender o que está acontecendo é assustador."
O certo é que o aquecimento dos oceanos já causa prejuízos às pessoas e aos ecossistemas.
No verão de 2023, boias no litoral da Flórida registraram temperaturas da água mais altas que o nível de calor de uma banheira quente. E os recifes de coral estão passando pela sua quarta onda de branqueamento em todo o planeta, considerada a mais significativa verificada até hoje.
E ainda há outras consequências menos discutidas, como a intensificação das chuvas e a desoxigenação das profundezas do oceano. Tudo indica que os recordes de temperatura dos mares estão desestabilizando o planeta.
Dois fatores são os principais responsáveis pelo aquecimento recorde dos oceanos no último ano, segundo o oceanógrafo Michael McPhaden, da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês).
O primeiro motivo é a concentração cada vez maior de gases do efeito estufa na atmosfera. E o segundo foi o forte fenômeno El Niño em 2023.
O El Niño fez com que águas superficiais mais quentes que a média na zona tropical do Oceano Pacífico aumentassem a evaporação, causando imensa transferência de calor para a atmosfera.
E outros fatores bem mais fracos também influenciaram o aquecimento, afirma McPhaden.
No início de 2022, o vulcão Hunga Tonga-Hunga Ha'apai entrou em erupção no Oceano Pacífico, liberando quantidades de vapor d'água "sem precedentes". E este vapor capturou calor na atmosfera.
Além disso, em 2020, uma determinação da Organização Marítima Internacional exigiu que os navios petroleiros comerciais passassem a usar combustível com baixo teor de enxofre.
Esta medida reduziu as emissões de dióxido de enxofre geradas pelo transporte marítimo global. Mas o dióxido de enxofre é um precursor de sulfatos atmosféricos, que refletem a luz solar e contribuem para a formação de rastros de nuvens atrás dos navios.
Essas nuvens refletem o calor de volta para o espaço. E a redução desses rastros brilhantes pode eventualmente causar um pequeno aumento do aquecimento global.
Mas a soma destes fatores não justifica o nível de aquecimento dos oceanos verificado atualmente em algumas regiões, segundo McPhaden. Partes do norte do Oceano Atlântico, por exemplo, estão agora "extraordinariamente" quentes, por motivos que ainda não compreendemos totalmente.
Por isso, os pesquisadores estão começando a pesquisar outros fatores.
Em um estudo inicial, que ainda aguarda revisão por pares, o oceanógrafo da NOAA Boyin Huang tenta explicar esta questão, indicando outro longo ciclo de aquecimento e resfriamento dos oceanos nas latitudes mais altas (50-70 anos).
As causas dos recordes atuais de aquecimento dos oceanos ainda não são bem conhecidas, mas seus impactos já são sentidos em todo o mundo. Um dos efeitos mais evidentes pode ser observado nas precipitações e na formação de tempestades.
Fowler explica que, com as temperaturas mais altas da superfície da água, a evaporação aumenta.
Ao mesmo tempo, o aquecimento global eleva a temperatura da atmosfera e o ar mais quente consegue reter mais umidade. Por isso, quando chove, a quantidade de precipitação é maior.
Este efeito é cumulativo: cada grau de aquecimento traz potencial de aumento de 7% da chuva e da umidade, segundo Fowler.
Outro ponto que tomou os meteorologistas de surpresa em 2023 foi a velocidade de intensificação das tempestades. Eram os chamados "ciclones-bomba": ciclones em latitudes intermediárias que ganharam força rapidamente.
Nos trópicos, o furacão Otis atingiu a cidade mexicana de Acapulco, no litoral do Oceano Pacífico, em outubro de 2023. Ele começou como uma tempestade fraca, que se intensificou até se tornar um furacão categoria 5 da noite para o dia. O mesmo fenômeno já havia sido verificado com o furacão Lee, que atingiu o Caribe um mês antes.
"Achamos que eles são o resultado das altas temperaturas do oceano, que intensificam rapidamente pequenos temporais até se tornarem sistemas muito grandes", explica Fowler. "Mas ainda estamos estudando quais são exatamente esses mecanismos."
O potencial de furacões mais ativos será particularmente preocupante em 2024. Afinal, o recente fenômeno El Niño pode entrar em breve na fase La Niña.
La Niña reduz as cortantes de vento, o que favorece a formação de tempestades intensas e frequentes no norte do Oceano Atlântico, perto do litoral da África. E, com os recordes de temperatura da superfície do mar transferindo mais energia para essas tempestades no seu trajeto, a estação de furacões pode ser uma das mais ativas já registradas.
Além disso, os oceanos mais quentes também podem produzir eventos de aquecimento mais extremos, do tipo "unicórnio", afirma o professor de matemática aplicada Valerio Lucarini, da Universidade de Leicester, no Reino Unido.
Lucarini afirma que "o impacto do aquecimento dos oceanos pode gerar ondas de calor em níveis que nunca vimos antes".
O professor explica que a temperatura mais alta da água do mar aumenta a evaporação e, consequentemente, a umidade.
A sobrevivência humana depende do índice de calor (que considera a umidade e a temperatura do ar em conjunto) – e o aquecimento dos oceanos pode fazer com que se repitam as ondas de calor recorde verificadas em terra em 2023.
O aquecimento dos oceanos pode causar sérios efeitos também abaixo da superfície.
Da Austrália até a Tanzânia, o branqueamento dos corais se tornou mais extenso e frequente, segundo a ecologista portuguesa Ana Queirós, especializada em ecologia marinha e mudanças climáticas, do Laboratório Marinho de Plymouth, no Reino Unido.
Queirós explica que, ao contrário de organismos marinhos como os peixes, os corais não conseguem se mover quando o oceano à sua volta sofre uma onda de calor. E, com muitas regiões do oceano sofrendo ondas de calor no leito marinho, o impacto pode ser "terrível".
O aquecimento dos oceanos também reduz a quantidade de oxigênio e nutrientes vitais para a vida marinha.
O oxigênio é menos solúvel em águas mais quentes. E, como a água da superfície se aquece antes da água do fundo, ela também perde densidade, o que dificulta a mistura entre a água do topo e do fundo do oceano.
Sem essa mistura, os nutrientes depositados no leito do oceano ou perto dele têm dificuldade para voltar à superfície, onde seriam consumidos pelos micro-organismos que formam a base da cadeia alimentar, como o fitoplâncton. E, por sua vez, o oxigênio da superfície não consegue atingir as camadas mais profundas do oceano.
O resultado, segundo Queirós, são ocorrências mais frequentes de hipoxia (baixo teor de oxigênio) no fundo do mar, gerando mortes em massa no leito do oceano. E outra consequência é a expansão das "zonas com nível mínimo de oxigênio", com áreas do leito oceânico com baixo nível de oxigênio por longos períodos.
As linhas costeiras também estão sujeitas às consequências do aquecimento dos mares. À medida que ficam mais quentes e menos densas, as águas do oceano ocupam maior volume, o que contribui para o aumento do nível do mar.
As águas mais quentes também causam o derretimento do gelo marítimo da Antártida e da Groenlândia. E o nível médio global do mar já aumentou em cerca de 21-24 cm nos últimos 140 anos.
Segundo o oceanógrafo da NOAA William Sweet, pela velocidade atual, o nível médio do mar deve aumentar em mais 15-18 cm até 2050. "Áreas de baixa altitude densamente povoadas já sofrem enchentes com mais frequência – e isso irá se agravar", alerta ele.
No Golfo do México e na costa leste dos Estados Unidos, os níveis do oceano estão subindo com rapidez ainda maior do que a média.
"No momento, a velocidade do aumento está superando todos os modelos: está ficando quente e está ficando alto", afirma Sweet.
Outro efeito crítico associado ao aquecimento global é a redução da velocidade e o eventual colapso do sistema de correntes oceânicas conhecido como Circulação Meridional de Capotamento do Atlântico (AMOC, na sigla em inglês).
A AMOC liga o sul ao norte do Oceano Atlântico. Ela transporta água quente das regiões tropicais para o norte, que é mais frio.
À medida que a água se move, ela é resfriada e fica mais salgada, já que parte dela evapora. Essa água mais fria e salgada é mais densa e, em dado momento, ela afunda no oceano e retorna para o sul.
Valerio Lucarini destaca que, se essa circulação for mais lenta, a quantidade de água quente transferida para as regiões de alta e média latitude do Atlântico diminui. Isso, por sua vez, produz um efeito de resfriamento regional no centro-oeste da Europa.
O sistema está relacionado à forma em que o aquecimento dos oceanos altera a precipitação e o derretimento do gelo, explica ele.
A água doce da chuva não afunda tão bem quanto a água do mar, que é mais densa. Por isso, os níveis mais altos de precipitação no norte do Oceano Atlântico e o aumento do derretimento do gelo da Groenlândia fazem com que menos água afunde no oceano e viaje de volta para o sul. Com isso, resulta o enfraquecimento geral da AMOC.
Segundo Lucarini, a menor circulação de água quente em direção ao norte também explica por que, apesar do aumento médio do aquecimento dos mares, existe atualmente uma "bolha fria" em uma região específica do norte do Oceano Atlântico.
Os sinais de instabilidade da AMOC já existem, mas a forma e a rapidez das mudanças ainda são desconhecidas.
Um estudo recente de Lucarini e seus colegas demonstrou que pode haver diversos estágios no enfraquecimento dessa intensa circulação de água.
"Se a AMOC ficar lenta demais, ela não irá necessariamente se recuperar", explica ele. "Ela pode simplesmente prosseguir para outro estágio, com um regime climático muito diferente."
Lucarini menciona o possível aumento das ondas de calor, secas e períodos de frio. O impacto pode ser especialmente forte na Europa e talvez na Ásia central, além de causar redução das chuvas na América do Sul, o que pode transformar a floresta amazônica em uma savana.
"Estaríamos mudando as regras do jogo", afirma o professor.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.
Fonte: correiobraziliense
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