David Martins Miranda foi criado em sítios e fazendas na cidade de Reserva, no interior do Paraná. Depois foi mecânico e escriturário numa fábrica de papel, a Klabin – tudo isso antes de se tornar um dos pastores mais populares no Brasil.
Católico fervoroso, era congregado mariano – seguidor da Congregação Mariana, uma associação de leigos católicos. Foi para São Paulo em 1957.
Passou a frequentar, no centro da capital paulista, um templo evangélico, “Maravilhas de Jesus”, e se converteu.
Em junho de 1962, disse ter recebido uma “revelação” e um chamado de Deus para fundar a sua própria denominação, a Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA).
À frente de sua igreja, Miranda arregimentou fiéis que tornaram a Deus é Amor a 11ª maior denominação evangélica do país, com 845 mil fiéis – uma lista liderada pela Assembleia de Deus, com 12,3 milhões, segundo os dados mais recentes do IBGE (2010).
Depois de um período de ascensão – a igreja diz em seu site estar presente em quatro continentes, com 17 mil templos -, a Deus é Amor vive momentos conturbados.
Após a morte do líder David Miranda em 2015, aos 78 anos, o comando da igreja passou à sua mulher Ereni, hoje também com 78 anos.
Agora, a matriarca e três dos quatro filhos do casal, além de netos e genros, estão envolvidos numa acirrada disputa. Em jogo estão tanto o patrimônio milionário deixado pelo patriarca como o controle da igreja e sua doutrina, segundo denúncias de ex-fiéis.
O valor dos bens partilháveis de David Miranda foi estimado em seu inventário, em 2015, em R$ 86,3 milhões, de acordo com documento obtido pela BBC News Brasil.
Ele deixou aos seus herdeiros uma agência de turismo, emissoras de rádio, dezenas de imóveis, salas comerciais e carros luxuosos, além de aplicações financeiras.
A briga foi parar nos tribunais, mas as ações em que irmãos e parentes disputam uns contra os outros seguem em segredo de Justiça.
Posts em redes sociais, blogs e sites veem divulgando alegações sobre supostos desvios e condutas supostamente inadequadas de membros da família, alimentando uma espécie de novela em capítulos, com influenciadores do mundo religioso comentando o tema.
A BBC News Brasil pediu posicionamentos dos citados na trama, mas ninguém havia se pronunciado até a publicação desta reportagem (leia mais abaixo).
O clã Miranda está, no momento, dividido em dois grupos, num embate que põe os gêmeos da família, primogênitos do casal fundador, em lados opostos.
O primeiro grupo está no controle da igreja – e do dinheiro – e é formado pela matriarca, uma filha e um dos netos.
No segundo grupo, estão dois irmãos que contestam as decisões dos controladores.
Não tem lado evidente na disputa o caçula dos irmãos, que mora nos Estados Unidos.
A matriarca Ereni é a líder da igreja e também presidente da Fundação Reviver, ligada à instituição.
Ela tem o apoio de sua filha Débora Miranda, de 58 anos, que é vice-presidente do Conselho Deliberativo da Deus é Amor e também pregadora.
O filho de Débora, David Miranda Neto, é aliado da mãe e da avó e, com 34 anos, vem sendo preparado como um possível novo líder da agremiação.
Mas, no caminho de Miranda Neto para chegar a ser sucessor de Ereni, ele terá que vencer os fiéis que preferem que sua mãe seja a nova líder após a morte da matriarca, e não ele.
Do outro lado do embate está David Miranda Filho, de 58 anos. Gêmeo de Débora, David já rompeu com a Deus é Amor e fundou sua própria igreja.
O primogênito também escolheu apoiar a irmã do meio, Leia Miranda, um ano mais nova, na mais nova fase da disputa. Cantora e pregadora com 144 mil seguidores no Instagram, Leia critica, inclusive nas redes sociais, o atual controle da igreja.
Não há comentário oficial sobre o racha e o assunto nunca é tratado nos cultos. No entanto, em uma de suas últimas aparições públicas, no final de janeiro, a matriarca Ereni admitiu dificuldades na igreja, sem mencionar divergências entre seus filhos e netos.
“Tudo que é pecado não pode entrar na igreja. Sei que muitas pessoas estão aborrecidas com a nossa igreja, porque [há] muito pecado, muita vaidade, muita coisa que antes não tinha e agora tem. Estou vendo tudo”, disse Ereni, em vídeo veiculado no site da instituição.
“Eu sei disso, estou enxergando. Jesus está triste... Mas eu conto com vocês para orar pela igreja Deus é Amor, para orar por mim e para eu sempre falar o que Deus mandar”, disse a matriarca que, segundo relatos de membros da igreja nas redes sociais, estaria com problemas de saúde após ter sido atacada por um cão em sua residência.
Disputas pelo poder em instituições religiosas após a morte de seu principal líder são comuns, segundo o cientista da religião Leonildo Silveira Campos, ex-coordenador do programa de pós-graduação de Ciências da Religião das universidades Mackenzie e Metodista de São Paulo.
“Toda igreja fundada por um líder carismático sofre um baque quando morre o seu líder máximo. A saída dessa situação é sempre tumultuada e, às vezes, demora muito tempo para a poeira assentar e a igreja retomar uma única linha de ação”, afirmou.
Para o especialista, o fundador David Miranda não teria conseguido se preparar para a sucessão em sua igreja assim como o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus. Ele lembra que Macedo, por exemplo, indicou o seu genro, bispo Renato Cardoso, como o herdeiro da instituição.
“Creio que o David Miranda não imaginava que poderia morrer tão cedo”, disse Campos.
Todo o desenrolar da disputa familiar é comentado em sites e canais no YouTube seguidos pelos religiosos e por ex-fiéis. Um deles é mantido por uma ex-fiel da igreja e amiga de infância dos irmãos Miranda, Malú Lima.
Com mais de 42 mil inscritos em seu canal no YouTube, Malú Lima se dedica quase exclusivamente a falar da disputa da família em seus vídeos, alguns com mais 30 mil visualizações – procurada pela BBC News Brasil, no entanto, ela não quis conceder entrevista.
Na versão de Malú, a tensão atual é porque os filhos que não estão no controle da igreja querem a divisão dos bens da família e da própria instituição antes da troca de comando, com a morte de Ereni. David e Leia receberiam uma mesada, mas, também segundo a ex-fiel, não estão de acordo com os valores.
“Eles querem a parte da herança antes da partida da Ereni, pois haverá muitas brigas depois”, disse Malú Lima.
O advogado Francisco Tenório, ex-fiel da Deus é Amor que teve bastante proximidade com líderes e dirigentes da instituição até virar um dissidente, em 2004, estima que o patrimônio em jogo no embate pode ser ainda maior do que o consta no inventário do fundador.
Segundo Tenório, atualmente consultor de instituições religiosas, a administração da igreja teria meta de faturamento com a venda de amuletos e outros artigos.
“Antes a meta era o maior número de pessoas”, criticou.
Dois pastores da Deus é Amor que apoiam a presidente Ereni Miranda foram procurados, mas também preferiram não falar com a reportagem.
A BBC News Brasil também fez questionamentos a todos os citados nesta reportagem, mas não recebeu respostas até a publicação deste texto.
A presidente da Deus é Amor, Ereni, não atendeu aos pedidos para dar esclarecimentos, bem como seus filhos e David Miranda Neto, procurados por meio da assessoria da igreja. Leia Miranda foi contatada por uma de suas redes sociais e David Filho, por telefone, mas ambos também não retornaram.
A Deus é Amor emergiu na chamada segunda onda do pentecostalismo no Brasil - como definiu o sociólogo Paul Freston -, entre os anos 1950 e 1960, ao lado de igrejas como a Brasil para Cristo, Evangelho do Quadrangular e Casa da Benção, que enfatizavam a cura divina, as profecias e o dom de falar línguas estranhas.
A primeira onda, no final de 1910, surgiu com a Congregação Cristã do Brasil e a Assembleia de Deus. A terceira veio no final dos anos 1970, com as chamadas igrejas neopentecostais, entre elas a Universal do Reino de Deus, a Renascer em Cristo e a Sara Nossa Terra.
Para o líder David Miranda, a televisão seria “a imagem e o olho eletrônico da besta”.
Líderes condenam a prática do futebol. As mulheres da Deus é Amor são proibidas de cortar o cabelo, usar maquiagem ou depilar a sobrancelha, defendeu a presidente da Igreja Ereni Miranda, em um vídeo no ano passado.
“Calça comprida é coisa para homem”, disse também Ereni Miranda. Homens também não podem ter barba.
Pelas normas, os homens precisam usar sempre, em público ou privado, calça comprida e camisas, no máximo, de mangas curtas.
Camisetas regatas, jamais.
Andar sem camisa é proibido em qualquer hipótese.
As mulheres devem usar saia ou vestido que cubra o joelho, e as roupas não podem mostrar a barriga ou axilas. Homens e mulheres jamais devem usar sunga ou biquínis.
Parte dessas instruções, no entanto, acabariam descumpridas por integrantes do clã, provocando embates internos na igreja, que começaram já em 2005, dez anos antes da morte de David Miranda.
Naquele ano, Leia e o seu então marido Sergio Sora - que chegou a ser vice-presidente da instituição e era apontado até então como o provável sucessor na Igreja -, foram expulsos, por conta de divergências com a cúpula da igreja.
Logo em seguida, eles fundaram uma nova denominação, a Igreja Evangélica Vida em Cristo. O casal se separou depois e Leia voltou para a Deus é Amor em 2015.
David Miranda Filho foi afastado no ano seguinte, também por suposta conduta inadequada.
Já fora, David Filho também abriu a sua própria instituição religiosa, a Igreja Pentecostal Santificação no Senhor, no bairro do Brás, na região central de São Paulo.
“As lutas internas na Igreja ainda estão sendo controladas. Mas esse processo começou a ser abalado no momento em que David Filho saiu da organização”, observou o especialista Leonildo Campos.
Em setembro de 2022, Leia Miranda foi novamente afastada pela mãe Ereni, por um período de cinco anos, por suposto comportamento tido como inadequado.
Leia, à época, foi ao púlpito da igreja, na sede mundial no Parque Dom Pedro II, na região central de São Paulo, e iniciou uma pregação. Houve tumulto e a polícia foi chamada.
Em uma sala ao lado, ela passou a falar ao vivo nas redes sociais, contando com o apoio de um grupo de fiéis. Leia rebateu as acusações e criticou duramente a atual direção da igreja, principalmente a irmã Débora e o sobrinho David Miranda Neto.
Ela reivindicava a eleição para a escolha de uma nova direção da igreja. Para deixar o local, exigia a presença de um membro da direção que assinasse um documento se comprometendo a convocar eleições.
“Quero uma nova eleição. Eles [a direção] estão pintando e bordando e agindo de maneira muito reprovável. Não agem como homens de Deus”, protestou em um vídeo. Pediu, em seguida, o imediato afastamento da irmã Débora. Leia acabou expulsa da instituição.
David Miranda Neto também provoca reações de fiéis por tentar modernizar os cultos da igreja, com a introdução de uma linguagem pop, luzes e outras tecnologias nos cultos, além de permitir que pastores usem camisetas e tênis, relatam os seguidores mais antigos.
Ele também contrariou as normas ao jogar no time de base da Portuguesa de São Paulo, mesmo com a rejeição da Deus é Amor ao futebol.
Ele foi afastado em setembro de 2022, quatro dias depois da punição imposta à sua tia Leia, devido ao vazamento de fotos dele com a mulher, Karina, em trajes de banho em uma piscina.
David Neto contesta essas restrições. A punição que recebeu foi abrandada logo depois pela avó Ereni.
“David Miranda Neto agora está agitando as estruturas internas e sempre teve o apoio da avó Ereni, da mãe Débora e do pai, o pastor Lourival de Almeida [hoje também com problemas de saúde após um AVC, mas ainda um líder da igreja]”, observou o especialista Leonildo Campos.
Para Campos, é Débora que, com o apoio da mãe, “consegue hoje manter um capital simbólico” da Deus é Amor.
Entre os fiéis, a disputa não é um segredo.
Ouvido pela BBC News Brasil, o obreiro (auxiliar de pastor) e vendedor de frutas Robson Machado de Pinto, 42 anos, morador da Pavuna, na zona norte do Rio de Janeiro, diz que a Deus é Amor é a melhor igreja que encontrou desde que se converteu à fé evangélica, aos 18 anos.
“É uma igreja abençoada por Deus. É uma igreja que funciona na base da oração. Me sinto bem na igreja.”
Robson sabe das divergências entre filhos e netos de David Miranda, mas não vê nisso um problema. “Todas as igrejas têm problemas. Qual não tem? Mas isso é de menos.”
“A família é unida, eles se entendem e resolvem lá. Acabam resolvendo. O importante é que Deus tem operado e curado pessoas, e pessoas estão voltando para Jesus através da Igreja Deus é Amor”, finalizou.
Fonte: correiobraziliense
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