22 de Novembro de 2024

'Influencers do lixo': os brasileiros que fazem sucesso mostrando o que americanos jogam fora


A fila dava volta no Parque Villa Lobos, área nobre de São Paulo, em uma tarde de junho.

Depois de minutos de espera, algumas pessoas choravam de emoção pela chance de encontrar a youtuber brasileira Adeline Camargo, que mora nos Estados Unidos e virou uma referência em vídeos de dumpster diving.

A expressão em inglês significa “mergulhar na lixeira” — e quer dizer isso mesmo: pessoas que entram e vasculham caçambas de lixo em busca por produtos em boas condições e até novos que são descartados pelos americanos.

“Sei que muita gente quer uma lembrancinha do dumpster”, registra no vídeo Adeline, que trouxe para o encontro no Brasil dezenas de produtos que ela encontrou assim para sortear entre os seguidores. São maquiagens, bolsas, objetos de decoração…

O encontro em São Paulo reflete o fenômeno entre brasileiros ávidos por vídeos sobre o lixo dos Estados Unidos.

São dezenas de canais no YouTube e perfis no Instagram, alguns de famílias inteiras, que mostram essa prática comum no país.

“Os brasileiros ficam muito curiosos, porque os americanos esbanjam muita coisa, é um desperdício que te deixa alucinado. Tem muita coisa nova”, diz Alessandra Gomes, capixaba que também se filma “mergulhando” no lixo, no Estado de Massachusetts. Ela já recolheu edredons, sofás, mesas e muita comida.

Nos Estados Unidos, de forma geral, a atividade não é ilegal, mas navega em uma zona cinzenta.

Em 1988, no caso que ficou conhecido como California contra Greenwood, a Suprema Corte do país decidiu que não há “privacidade” no lixo deixado na calçada.

Mas regras específicas em Estados e cidades sobre a questão das lixeiras podem se sobrepor.

A atividade, por exemplo, pode ser considerada ilegal se envolver invasão de propriedade privada, se houver alguma placa indicando que é proibido mexer ou a lixeira estiver fechada com algum cadeado.

Entrar nessas áreas sem permissão pode resultar em acusações de invasão. Também pode haver denúncias sobre incômodo público ou risco à segurança na atividade.

Nos vídeos gravados pelos brasileiros, em geral, não é possível saber se eles invadiram propriedades ou se desrespeitaram proibições.

Ao menos uma destas pessoas disse à BBC News Brasil que já foi detida pela polícia após uma loja denunciá-la e precisou pagar fiança e passar por uma audiência na Justiça.

Vídeos que mostram os brasileiros sendo “pegos no flagra” acumulam muita audiência — na maioria, são funcionários de lojas que pedem para eles saírem ou simplesmente permitem que continuem.

“Já fui flagrado pela polícia algumas vezes”, diz André da Silva, de 49 anos, que se mudou do Rio de Janeiro para Rhode Island há 23 anos e hoje tem mais de 300 mil seguidores apenas no Facebook com seus vídeos.

"Mas, em geral, só perguntam o que estou fazendo, e eu explico que gravo vídeos. Eles ficam até chocados com as coisas que encontramos."

Apesar do fenômeno recente nas redes sociais em países como Brasil ou El Salvador, a atividade faz parte da rotina de americanos há décadas, explica Jeff Ferrell, sociólogo e professor emérito da Universidade Cristã do Texas (TCU, na sigla em inglês) que, há 50 anos, se debruça sobre o fenômeno — seja como pesquisador ou "mergulhando" ele mesmo em lixeiras.

Autor do livro Empire of Scrounge: Inside the Urban Underground of Dumpster Diving, Trash Picking, and Street Scavenging (Império dos catadores: dentro do submundo urbano da busca em lixeiras, coleta de lixo e garimpagem na rua, em tradução livre), ele passou oito meses sobrevivendo apenas com o que achava no lixo.

Ferrell explica que o perfil de "mergulhadores" de lixeiras é variado. Alguns, como ele, são movidos por ideologia.

Podem ser os chamados freegans, que por princípio de vida boicotam o consumo e sobrevivem com o que é descartado, ou organizações de caridade que distribuem esses bens e comida a moradores de rua ou necessitados.

“Muitas pessoas acreditam em uma redistribuição de recursos. Isso é tirar dos ricos e dar para os pobres, porque o lixo dos ricos em geral tem coisas de muita qualidade, coisas que ainda são muito úteis”, diz o pesquisador.

Mas os imigrantes, na maioria sem os documentos necessários para residir nos Estados Unidos, diz Ferrell, também sempre formam um grupo relevante nessa caça ao tesouro nas lixeiras.

Alessandra Gomes chegou nos Estados Unidos há cinco anos, aos 19, em busca de um futuro melhor para ela e seu filho, na época com menos de 2 anos.

Ela saiu de Ecoporanga, no Espírito Santo, onde vivia uma relação conturbada com a família humilde na zona rural da cidade, para cruzar a fronteira do México rumo aos Estados Unidos.

Quando chegou a Massachusetts, ela conta, via muitas pessoas fazendo o dumpster diving.

“Foi quando fiz o primeiro vídeo, mostrando umas vasilhas e louças que achei. O vídeo viralizou, e eu vi que era um ramo que dava muita audiência”, diz Alessandra, que foca nas lixeiras de lojas e supermercados, porque encontra nelas muitos produtos ainda novos que foram descartados.

Segundo a capixaba, os brasileiros que assistem aos seus vídeos se dividem em dois grupos: os que se revoltam com o consumismo americano e a cultura do desperdício e os que ficam fascinados com os produtos e desejam imigrar para fazer o mesmo.

Os "mergulhadores" que se aventuram no lixo aprendem o dia da coleta de cada região e ficam ligados quando há uma renovação no estoque de uma loja.

O carioca André da Silva, de 49 anos, explica, por exemplo, que quando há uma nova coleção de roupas de cama, as lojas tendem a jogar fora edredons, fronhas e lençóis que são da temporada passada.

Ex-dançarino no Brasil e ex-lavador de pratos nos Estados Unidos, André administra o tempo entre sua empresa de demolição e a busca por caçambas.

Foi em um trabalho para uma loja há seis anos que ele percebeu o quanto os americanos jogavam coisas novas no lixo.

“Quando cheguei no dumpster, eu tomei um susto”, diz André.

“Era tudo novo, empacotado, toalhas caras, travesseiros. Chamei o gerente da loja, porque achei que eles tinham se enganado. Aí, ele disse que era o lixo mesmo, porque eles perdem dinheiro guardando isso no estoque.”

André teve que alugar um caminhão para buscar o tanto de produtos que estavam sendo descartados naquele dia.

Para o professor Jeff Ferrell, que aos quase 70 anos segue vasculhando os lixos alheios no Estado do Texas, como os EUA são o principal país capitalista do mundo, a produção incessante de bens de consumo estimula o descarte.

“É inerente à cultura do consumo: haverá uma grande quantidade de lixo toda vez que um estilo de moda mudar ou novas tecnologias forem introduzidas”, diz Ferrell.

"Quanto mais orientamos nossa economia em torno da produção e consumo de bens, inevitavelmente, mais resíduos produzimos."

Além dos objetos em si, a comida também é parte importante do trabalho dos catadores-produtores de conteúdo.

Hoje, Alessandra e o marido focam na busca em caçambas de mercados que vendem alimentos. Esse, inclusive, é o aspecto que mais tem chocado a família.

“Tem muita coisa boa para consumo que jogam fora. Algumas passaram da validade, mas ainda servem. É chocante”, diz.

Segundo o Serviço de Inspeção e Segurança Alimentar dos Estados Unidos (FSIS, na sigla em inglês), "os fabricantes fornecem datas para ajudar consumidores e varejistas a decidir quando os alimentos estão na melhor qualidade".

"Exceto para fórmulas infantis, as datas não são um indicador da segurança do produto e não são exigidas pela lei federal", diz o FSIS em seu site oficial. Mas, ainda assim, muito é jogado fora.

Segundo Alessandra, a atividade de vasculhar o lixo rende de US$ 200 (cerca de R$ 1.100) a US$ 300 (R$ 1620) por mês com o que ela consegue vender. A audiência dos vídeos chega a render mais US$ 100 (R$ 540). O marido também trabalha como pintor.

Tocadores de música, bolsas, brinquedos caros, joias, relógios… O que mais chama atenção dos brasileiros nos vídeos de fato são os produtos caros que vão parar na lixeira dos americanos.

Os comentários vão desde um “fico babando com tantas coisas maravilhosas” a “meu sonho é ter essas coisas, queria ir praí”.

Para o pesquisador Jeff Ferrell, que já encontrou abotoaduras da marca de luxo Tiffany e pulseiras de diamantes, a ênfase dada às marcas e ao valor dos produtos nas redes sociais acaba desviando a filosofia por trás do movimento de dumpster diving.

“Acho irônico que as pessoas estejam nessa busca por bens de consumo em lixeiras. Em outras palavras, elas estão tentando transformar o lixo de volta em um estilo de vida de consumo”, opina.

Mas os brasileiros angariam fãs mesmo com as doações que fazem.

André da Silva explica que basicamente doa tudo que encontra para famílias em necessidade ou para igrejas de Massachusetts e Rhode Island.

Já Alessandra, que cuida de dois filhos, se divide entre doações para famílias de imigrantes na vizinhança e para o próprio consumo.

“Não tenho vergonha nenhuma de estar dentro do lixo. Vim de uma família muito pobre, então, tudo que eu puder aproveitar, eu vou pegar mesmo”. E, segundo ela, postar.

A capixaba diz que “segura na mão de Deus” e segue realizando a atividade.

É que, na região onde vive, as lojas ficaram mais hostis aos “mergulhadores" de lixeiras, já que muitas pessoas acabam mexendo e deixando lixo espalhado na calçada.

Para quem há décadas explora o lixo americano, “há uma outra ironia” no sucesso digital da prática nos Estados Unidos.

“Qual é a chave para ser um bom dumpster diver? É ser discreto e nunca chamar atenção para si mesmo. Nunca postaria nas redes sociais”, aconselha Ferrell.

Fonte: correiobraziliense

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