21 de Novembro de 2024

Bolívia: 3 fatores para compreender a crise política e econômica por trás da tentativa de golpe


A tentativa de golpe de Estado denunciada nesta quarta-feira (26/6) pelo presidente Luis Arce reflete a situação complexa pela qual a Bolívia está passando.

A denúncia do mandatário ocorreu após soldados e veículos militares tomarem controle da Praça Murillo, na capital administrativa boliviana, La Paz, e invadirem o Palácio Quemado, antiga sede do governo.

As ações militares foram lideradas pelo general Juan José Zúñiga, recentemente destituído do cargo de chefe do Exército após fazer declarações contra o ex-presidente Evo Morales.

Zúñiga justificou sua ofensiva perante a imprensa pela “situação do país” e acrescentou que as Forças Armadas pretendiam “reestruturar a democracia”.

Embora o levante militar tenha sido controlado horas depois, com Zúñiga sendo detido, os bolivianos vivem momentos de incerteza.

O episódio, repudiado por todos os setores políticos, é um exemplo da crescente tensão que tem envolvido a Bolívia nos últimos meses.

Quais são os fatores que têm alimentado essa tensão? Vamos explicar a seguir.

A tentativa de golpe denunciada por Arce é o mais recente episódio na turbulenta história política da Bolívia.

Em seus 200 anos de história, o país andino enfrentou diversos levantamentos militares e revoltas que abalaram seus líderes.

As causas foram diversas, assim como os cenários políticos em que ocorreram.

Desta vez, a ofensiva do general Zúñiga foi precedida por uma crescente disputa de poder entre o ex-presidente Evo Morales e seu sucessor, Luis Arce.

Isso provocou uma divisão no Movimento ao Socialismo (MAS), o partido governante.

A cisão ficou evidente em setembro de 2023, quando Morales anunciou sua candidatura presidencial para as eleições de 2025, desafiando abertamente Arce, que se espera buscar a reeleição.

O ex-presidente acusou o governo de tentar barrar sua candidatura e ameaçou que haverá uma "convulsão" na Bolívia se for impedido de concorrer.

Evo Morales liderou o país por quase 14 anos até que em 2019 teve que deixá-lo após eleições marcadas por acusações de fraude. O líder denunciou um golpe de Estado com apoio dos Estados Unidos e partiu para o exílio.

Após um governo interino de 11 meses, Luis Arce obteve uma vitória decisiva nas eleições de outubro de 2020, permitindo o retorno do ex-presidente.

No entanto, o entusiasmo só garantiu alguns meses de calma, pois em pouco tempo a divisão começou a crescer entre os dois dirigentes do MAS. A ponto de o partido, neste ano, ter celebrado dividido - em atos separados - seu 29º aniversário, com os "evistas" em Santa Cruz e os “arcistas” em La Paz.

A disputa política se transferiu para o Congresso, onde Arce perdeu a maioria devido à divisão do MAS.

O doutor em Ciência Política Fernando Mayorga explicou à BBC Mundo em setembro de 2023 que a ruptura do bloco governista levou os parlamentares aliados a Morales a avançarem em acordos com a oposição para bloquear decisões do Executivo ou censurar ministros, o que há meses incomoda Arce.

Tudo isso fez com que o governo acusasse Morales de provocar um "cenário de crise estrutural no país" com o objetivo de "encurtar" o mandato de Arce.

"Evo Morales está disposto a bloquear nossa economia e a convulsionar nosso país para impor sua candidatura de qualquer maneira, como ele mesmo disse", declarou a ministra da Presidência, María Nela Prada, em uma coletiva de imprensa realizada no domingo, 23 de junho.

Morales, por sua vez, escreveu em sua conta no X (anteriormente Twitter) que "a verdadeira conspiração contra o governo está na incapacidade e na corrupção de seus funcionários. O povo precisa de confiança em suas autoridades e de soluções para seus problemas".

Arce, por sua vez, afirmou em diversas declarações públicas que é alvo de um "golpe brando" cujo objetivo é "encurtar mandatos" e que os seguidores de Morales estariam por trás disso. O ex-presidente, entretanto, afirmou que "os únicos que falam em encurtar o mandato presidencial são os próprios membros do governo".

Após o levante militar ocorrido nesta quarta-feira em La Paz, o general Zúñiga - considerado próximo a Luis Arce e aos setores mineiros e sindicais - acusou o presidente de montar um "autogolpe" para "aumentar sua popularidade".

Toda essa disputa política ocorre em um momento economicamente muito complexo para a Bolívia.

Bloqueios de estradas e manifestações têm ganhado força nos últimos meses devido à deterioração da economia, que, paradoxalmente, se destacou na América Latina na última década pelo rápido crescimento, estabilidade e capacidade de conter a inflação.

Alguns até chamaram isso de "o milagre econômico boliviano".

Mas esse modelo mostrou suas falhas em março de 2023, quando ficou evidente uma grave escassez de dólares e começaram a surgir longas filas nas ruas de cidadãos tentando obter a moeda estrangeira.

"A disponibilidade de dólares está cada vez menor. Antes, eu podia sacar o que queria, mas hoje só me permitem 100 dólares por dia" conta Marcelo Pérez, fotógrafo e jornalista que vive em La Paz, à BBC Mundo.

Isso abriu espaço para um mercado paralelo de dólares, explica o economista boliviano e consultor financeiro internacional Jaime Dunn.

“Pessoalmente, estimei que temos 13 tipos de câmbio paralelos, entre formais e informais”, comenta à BBC Mundo.

Embora o governo de Arce tenha insistido que a economia continua estável - e tenha culpado o ocorrido a "um surto especulativo" - muitos especialistas alertam que o problema é muito mais profundo.

E que se explica, em parte, pela queda no nível de produção de gás natural que trouxe consideráveis receitas ao país depois que Evo Morales decretou a nacionalização dos hidrocarbonetos em 2006.

“Desde 2014, começou a reverter o efeito dessa bonança, o que fez diminuir o nível de dólares que chegavam ao país”, diz Dunn.

Paralelamente, as reservas internacionais diminuíram consideravelmente.

Segundo os relatórios do Banco Central, essas reservas passaram de U$15.122 milhões em 2014 para U$1.796 milhões em abril de 2024 (data em que foi publicado o último relatório).

Com esses recursos, foram mantidos alguns dos programas sociais dos governos de Evo Morales primeiro e Luis Arce depois, como o subsídio à compra de combustíveis, que a Bolívia precisa importar e pagar em dólares nos mercados internacionais.

“Isso levou o país a uma crise porque, apesar da queda nas receitas, manteve-se um gasto muito alto. E desde 2014, quando as receitas do gás natural começaram a ser substituídas por dívida interna e externa”, explica Jaime Dunn.

A escassez de dólares tem repercutido especialmente nos setores que importam ou exportam bens.

"Bolívia é importadora de insumos e bens de capital em quase 80%, o que a fez ser muito afetada pela escassez de dólares", destaca à BBC Mundo Claudia Pacheco, presidente do Colégio de Economistas de Santa Cruz.

Segundo Marcelo Pérez, isso já pode ser sentido nas ruas, com o aumento do valor de alguns produtos básicos, como arroz e tomate.

"No supermercado, alguns produtos subiram de preço e outros simplesmente desapareceram, pois não conseguem mais importá-los com a frequência de antes", indica.

Nos últimos dias, no entanto, o vice-ministro de defesa dos direitos do usuário e consumidor, Jorge Silva, afirmou que conseguiram estabilizar o preço desses produtos.

A escassez de dólares também afetou diretamente a importação de combustível.

Há mais de 15 anos, a Bolívia impôs um subsídio à compra de combustível, o que representou um grande gasto nas contas públicas.

Agora, especialistas alertam que o país não tem dólares para comprá-lo. Isso é problemático, considerando que, segundo o próprio presidente Arce, a Bolívia importa 56% da gasolina e 86% do diesel que consome.

"A Bolívia passou de ser um país exportador líquido de energia a ser um importador. Há apenas 10 anos, era uma espécie de centro energético para a América do Sul", afirma Jaime Dunn.

O presidente boliviano reconheceu que a situação do diesel é "patética".

Segundo ele, isso se deve à "falta de uma política clara para os hidrocarbonetos no país" nos últimos anos.

Agora, no entanto, o presidente disse que estão "fazendo o certo" com a aprovação de projetos que supostamente ajudarão a garantir reservas de gás, diesel e gasolina.

Isso gerou descontentamento na população.

Comerciantes e transportistas realizaram manifestações e bloqueios em várias cidades do país.

Enquanto isso, uma multidão de vendedores ambulantes marchou até La Paz denunciando a escassez de dólares e combustíveis.

"No ano de 2023, tivemos quase 200 dias de bloqueios, o que prejudicou a importação e a exportação", diz Claudia Pacheco.

Nas postos de gasolina, formaram-se longas filas de pessoas tentando conseguir combustível. Diante disso, o presidente Arce ordenou a militarização do sistema de provisão de combustíveis.

"Há dias em que se vende diesel, mas em outros não. Às vezes, é preciso dormir nos postos para consegui-lo", disse um motorista à agência de notícias Reuters.

A situação levou o governo a apresentar medidas para combater esses problemas.

Em fevereiro, o ministro da Economia, Marcelo Montenegro, reuniu-se com coletivos empresariais e anunciou uma série de reformas econômicas, como a flexibilização das restrições às exportações e a criação de um leilão de diesel para os grandes produtores.

Até o momento, no entanto, as medidas parecem não ser suficientes.

A tensão gerada por esses episódios também afetou a popularidade de Arce, que tem caído nas pesquisas de aprovação.

Se optar por competir nas eleições de 2025, isso pode ser um problema.

Seu grande desafio, concordam os analistas consultados pela BBC Mundo, é resolver os problemas econômicos, o que não deixa de ser paradoxal para quem os especialistas consideram o "pai do modelo econômico" vigente no país.

No Brasil, as notícias sobre a tentativa de golpe militar na Bolívia mobilizaram a Presidência da República e a diplomacia durante o início da tarde e à noite.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) convocou o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e o seu assessor para assuntos internacionais, Celso Amorim, para discutir o assunto.

O embaixador do Brasil na Bolívia, Luiz Henrique Sobreira Lopes, ficou em contato direto com Vieira e seus assessores em Brasília e repassou informações sobre a situação no local.

Uma das primeiras decisões foi a de rechaçar o golpe tão logo ficasse claro qual era o cenário.

No início da tarde, Lula se manifestou sobre isso pessoalmente.

"Como eu sou um amante da democracia, eu quero que a democracia prevaleça na América Latina, golpe nunca deu certo", disse o presidente.

Em seguida vieram manifestações de Lula em suas redes sociais e uma nota do Itamaraty rechaçando a tentativa de golpe.

Uma fonte do governo brasileiro que falou à BBC News Brasil que o presidente Lula chegou a telefonar para o presidente boliviano, mas Arce não chegou a atender à chamada.

Ao mesmo tempo em que tentava obter informações atualizadas sobre a situação, o governo brasileiro passou a articular uma reação regional contra a tentativa de golpe.

A ideia, segundo essa fonte, era deixar evidente aos militares golpistas que uma ruptura democrática na. Bolívia não teria respaldo internacional.

Uma dessas frentes aconteceu junto à Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que convocou uma reunião extraordinária para esta quinta-feira (27/6) em que o assunto será debatido.

Em outra frente, a diplomacia brasileira atuou junto à Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo secretário-geral, Luis Almagro, se pronunciou contra o levante.

Três fontes diplomáticas brasileiras ouvidas pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmaram que a tentativa de golpe militar no país vizinho pegou o Brasil e a região de surpresa e que não havia indicações de que as tensões políticas na Bolívia poderiam levar àquele desfecho.

Uma dessas fontes afirmou que a viagem do presidente Lula à Bolívia, prevista para o dia 9 de julho, está mantida e passou a ter um novo caráter após a tentativa de golpe.

Se antes ela tinha um aspecto mais protocolar, agora ela teria uma dimensão de apoio ao governo Arce e à democracia no país e na região.

Fonte: correiobraziliense

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