A pressão da população majoritariamente jovem do Quênia surtiu efeito sobre o presidente do país, William Ruto.
Após uma forte onda de protestos de eleitores desiludidos e furiosos, liderada pela geração Z (nascidos entre 1995 e 2010), Ruto voltou atrás, por enquanto, no seu plano de aumentar os impostos para pagar a dívida do governo.
"A razão pela qual estamos protestando não é porque não queremos pagar impostos. Na verdade, queremos pagar! Mas queremos poder ver o que está sendo feito com esse dinheiro", disse à BBC News uma jovem manifestante que não quis ser identificada.
"Se você quer permanecer no poder, que seja pelo povo! Ouça as pessoas."
No início desta semana, milhares de jovens se mobilizaram nas redes sociais para organizar protestos, chamando o presidente de Zakayo, uma referência a Zaqueu, o principal cobrador de impostos da Bíblia.
As manifestações culminaram em confrontos entre policiais e manifestantes nos arredores da sede do Parlamento, em Nairóbi, que deixaram mais de 20 mortos na terça na terça-feira (25/6).
Na quinta (27/6), os manifestantes se reuniram novamente no centro da cidade para homenagear os mortos, com planos de marchar até a residência oficial do presidente.
Os protestos começaram após meses de tensão devido ao aumento do custo de vida.
Muitos países no mundo todo têm enfrentado uma crise relacionada ao custo de vida após a pandemia de covid-19, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a guerra em Gaza.
Mas no Quênia, a retirada dos subsídios aos combustíveis e ao trigo e os aumentos consecutivos de impostos exacerbaram a subida do preço de produtos de uso diário.
O movimento de protesto liderado por jovens já havia alertado o presidente contra a aprovação do projeto de lei orçamentária que, segundo eles, levaria mais pessoas à pobreza.
O projeto de lei original previa o aumento o aumento dos impostos, incluindo a introdução de um imposto sobre valor agregado (IVA) de 16% sobre o pão até a taxação de de diversos itens, como fraldas e absorventes higiênicos.
Na terça-feira (25/6), após o Parlamento aprovar a lei orçamentária, manifestações realizadas em todo o país, com a participação de milhares de pessoas, começaram de forma pacífica, mas culminaram em atos de extrema violência.
Em Nairóbi, a polícia atirou contra manifestantes que conseguiram atravessar as barreiras policiais nos arredores do Parlamento.
A Comissão Nacional do Quênia para os Direitos Humanos (KNCHR, na sigla em inglês) afirmou que havia registrado e verificado 22 mortes.
Uma parte do prédio do Parlamento também foi incendiada nos protestos, considerados os mais graves no Quênia em décadas.
O KNCHR abriu uma investigação, afirmando que 300 pessoas foram detidas e mais de 50 presas.
Na terça-feira, os parlamentares do Quênia aprovaram o projeto de lei orçamentária diluído, mas menos de 24 horas depois, Ruto se viu obrigado a rejeitá-lo.
Em uma transmissão ao vivo, ele disse que a nação havia se manifestado — e que ele "cederia".
Ele escreveu ao presidente do Parlamento, e pediu que todas as cláusulas do projeto de lei fossem eliminadas, retirando efetivamente o projeto de lei. Como seu partido tem maioria na Casa, a expectativa é de que os parlamentares apoiem sua proposta.
O objetivo da série de aumentos fiscais de Ruto era gerar US$ 2,3 bilhões de receita no ano fiscal que começa em 1° de julho.
O governo disse que quer reduzir o déficit orçamentário de 5,7% do Produto Interno Bruto (PIB) no atual ano fiscal para 3,3% no próximo. Não está claro até que ponto eles vão ter que repensar completamente esses planos.
A frustração dos jovens com o aumento do custo de vida não é algo exclusivo do Quênia. Durante o ano passado, foi observado um padrão de violência e protestos de jovens em toda a África, da Libéria a Moçambique.
"Este é um movimento que se desenvolveu muito rápido por meio das plataformas de redes sociais, ainda não está claro quem é sua liderança", diz Alex Vine, analista da Chatham House, uma consultoria e centro de pesquisa em Londres, sobre os protestos no Quênia.
"É diferente de outros países porque é mais visível devido à solidez da mídia queniana. Os quenianos são usuários realmente efetivos dos meios de comunicação. Anteriormente, costumávamos ser capazes de localizar quem foram os instigadores, mas a forma como se espalhou por tantas áreas, mostra o quão mais avançado e interconectado o Quênia está no continente", explica.
Ken Gichinga, economista-chefe da consultoria independente Mentoria Economics, acredita que a dimensão dos protestos foi tão grande porque as políticas econômicas de Ruto "impactam desproporcionalmente os jovens".
Segundo Gichinga, os altos impostos sobre mercadorias comuns, como alimentos, "atingem com mais força as pessoas que estão na base — as pessoas que estão desempregadas pagam mais pelo pão". Ele observa que os aumentos elevaram tanto o custo dos negócios que as empresas não contratam mais, e há muito poucas perspectivas de emprego para os jovens.
Os analistas concordam que havia grandes expectativas por parte dos jovens em relação ao mandato de Ruto, que se apresentava como alguém de origem desfavorecida. O fracasso na implementação de uma nova abordagem deixou os jovens quenianos amargurados e desiludidos.
A economia do Quênia tem um problema de dívida significativo. Mas o mesmo acontece com muitos outros países. O Egito deve ao Fundo Monetário Internacional (FMI) US$ 11 bilhões, enquanto a Argentina deve espantosos US$ 31 bilhões.
O Quênia deve ao FMI modestos US$ 3,5 bilhões — mais do que Gana, e menos do que Angola.
O descontentamento entre os quenianos em relação ao acordo com o FMI tem aumentado desde 2021.
Muitos manifestaram que desaprovavam um novo acordo de empréstimo por meio de uma campanha online. Eles exortaram o FMI a retirar sua oferta, argumentando que os empréstimos anteriores não haviam sido bem geridos. Mas no espaço de três anos, o pacote do FMI havia aumentado de US$ 2,3 bilhões para US$ 4,4 bilhões.
As exigências do FMI também se tornaram mais sensíveis politicamente, afirma Shani Smit-Lengton, economista da consultoria Oxford Economics Africa. De 2022 a 2023, a organização financeira determinou reformas que envolveram a retirada dos subsídios aos combustíveis e ao trigo.
O FMI afirmou que está monitorando de perto a situação no Quênia, e que seu principal objetivo é ajudar o país a superar desafios difíceis.
"Estamos profundamente preocupados com os trágicos acontecimentos ocorridos no Quênia nos últimos dias, tristes pelos mortos e pelos vários feridos", afirmou Julie Kozack, diretora de comunicação do FMI.
Em 2023, a dívida pública do Quênia atingiu 73,5% do PIB. Para efeito de comparação, o endividamento da vizinha Tanzânia era de 45,2% do PIB.
Além disso, o Quênia tem uma elevada taxa de desemprego, especialmente entre as pessoas com menos de 25 anos.
Mas o cenário econômico pode parecer conflitante.
No ano passado, o xelim queniano foi a moeda com melhor desempenho em relação ao dólar no mundo. E a economia do país deve crescer mais de 5% neste ano, segundo previsão do Banco Central — mais do que o previsto para a África do Sul (1,3%) e para a Nigéria (3,2%), de acordo com o Banco Africano de Desenvolvimento.
O problema é que muito pouco disto está repercutindo na vida dos jovens quenianos comuns.
"Eles estão com dificuldade de colocar comida na mesa", diz Ken Gichinga, da Mentoria Economics.
"Esse crescimento não se traduz em empregos. Sim, o PIB está crescendo, mas não está em pé de igualdade com a geração de empregos."
Ruto atribui a culpa ao seu antecessor, Uhuru Kenyatta, que é fortemente criticado pelos enormes gastos em projetos de infraestrutura, estradas e ferrovias.
Estes investimentos podem em algum momento render frutos, mas por enquanto parecem estar beneficiando empresas internacionais, em vez de enriquecer os quenianos comuns.
Agora que Ruto retirou o projeto de lei orçamentária, todas as atenções vão estar voltadas para o acordo em curso do país com o FMI, afirma Shani Smit-Lengton, economista da Oxford Economics Africa.
"Acreditamos que o Quênia vai solicitar uma reformulação do seu programa atual ou uma prorrogação", diz ela.
“O governo certamente vai buscar concessões do FMI", acrescenta Topher Hockey, do Royal United Services Institute (Rusi).
Mas ele diz que há um entendimento de que não há como evitar cortes de gastos.
"Foi a natureza das mudanças fiscais que estava aborrecendo as pessoas."
Hockey acredita que os quenianos estão irritados com a corrupção e a má administração.
"Eles não confiam em como o governo gasta seu dinheiro. As pessoas não teriam saído às ruas se sentissem que seus impostos estavam sendo usados ??com sabedoria."
Smit-Lengton diz que o presidente planeja agora cortar gastos públicos e conversar com os partidos da oposição e organizações religiosas para discutir uma estratégia.
Os próximos dias vão mostrar se os manifestantes acham que ele fez o suficiente.
Fonte: correiobraziliense
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