Economistas são praticamente unânimes em afirmar que a inflação é o pior dos impostos. No caso dos mais pobres, o aumento escalonado dos preços é ainda mais perverso e catastrófico, como se evidenciou no Brasil durante os anos 1980 e início dos anos 1990, no período que ficou marcado pela 'hiperinflação' no país.
Com a chegada do real, que começou a circular em todo o território nacional a partir de 1994, o poder de compra das classes de renda mais baixa cresceu, apesar de outros fatores agravarem a pobreza.
O sucesso do Plano Real no combate à pobreza extrema no país está nos números. No início da década de 1990, no lançamento do Plano Collor 1, a inflação brasileira acumulada nos 12 meses anteriores atingiu o pico: 6.390%. Na época do lançamento da moeda, que substituiu o Cruzeiro Real (CR$), a inflação anual ainda era superior a 4.000%. Em janeiro de 1998, menos de 4 anos após a vigência do real, o Brasil atingiu uma inflação de 5% ao ano.
No ano em que foi implementada a nova moeda, a taxa de pobreza era superior a 30%. Com apenas dois anos de vigência da nova moeda, este índice caiu para 28,3%, no ano de 1996. Após quase 30 anos, a taxa atingiu o nível mais baixo de toda a série histórica, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ao recuar para 8,3% em 2023.
Em três décadas, o poder de compra dos mais pobres também avançou significativamente. Enquanto em julho de 1994, a cesta básica custava praticamente um salário mínimo (R$ 67,40, no valor da época), atualmente, o poder de compra dos que recebem o piso da remuneração nacional mais que dobrou, ao considerar que o preço médio da cesta no país é de cerca de R$ 700. Com um salário mínimo de R$ 1.412, é possível comprar mais de duas cestas.
No primeiro ano de implementação do plano, o Índice de Gini, que mede a desigualdade entre a população, era de 0,603 no Brasil. Mesmo com altos e baixos, o indicador calculado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), regrediu para 0,495 no quarto trimestre de 2023.
Mesmo com uma série de eventos que desestabilizaram a economia nacional durante os últimos 30 anos, como a crise financeiras de 2008 ou a pandemia de covid-19, o país nunca mais conviveu com a hiperinflação, o que se reverteu em melhores condições de vida para os mais pobres.
Durante este período, a criação de empregos e políticas sociais, a adoção de políticas de incentivo à valorização do salário mínimo e a manutenção da estabilidade de preços contribuíram para o sucesso do real.
Com a nova moeda, a população mais pobre do país foi favorecida por melhores condições de consumo, e a venda de produtos antes considerados inacessíveis, como carros populares e telefones, se intensificou entre a classe média e baixa.
Antes do real, outros planos fracassaram na tentativa de acabar com a hiperinflação. A primeira tentativa de estabilização foi com o Plano Cruzado 1, em 1986, no governo de José Sarney. Na época, a inflação ainda girava em torno de 250%. Um dos integrantes da equipe econômica do ex-presidente, o professor de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Luiz Roberto Cunha, admite que a falha dos primeiros planos foi não ter criado uma 'moeda virtual', como a Unidade Real de Valor (URV), implementada em 1993.
"Ele (Plano Real) criou um mecanismo, aprendendo com os erros do passado, que, de fato, fez com que você tivesse um período em que o consumidor já tinha voltado a poder comparar os preços de um bem com o outro, ou do mesmo bem em dois locais diferentes, porque eles todos eram fixados em URV", avalia o acadêmico.
A 'moeda-virtual', assim chamada por não ser considerada uma moeda, propriamente dita, constava nos preços junto com os valores em cruzeiro real, para servir como uma referência dos valores que seriam adotados a partir de então. O índice tinha paridade direta com o dólar, ou seja: 1 URV = 1 US$. "A pessoa ia para o supermercado, olhava o preço da banana e via lá que estava em 1 URV, e ia no supermercado do outro lado da rua e lá era 1,20 URV. Com isso, ela voltava para o supermercado anterior e comprava a banana pelo preço mais barato", exemplifica Cunha.
Além de reduzir as desigualdades, o real proporcionou o desenvolvimento de cidades com níveis mais precários. Um exemplo próximo ao centro do poder é a cidade de Ceilândia, a cerca de 25 km do Plano Piloto, que tem origem na década de 1970.
O diretor da Associação Comercial de Ceilândia (Acic), Clemilton Saraiva, conta que, nos anos 1990, a cidade era muito pobre. "O Plano Real trouxe para Ceilândia e comunidades do mesmo formato, um processo de ascensão social que transformou a cidade. A partir daí, as pessoas passaram a se programar, a ter acesso a crédito sem aquela inflação que corria. O Plano Real trouxe transformação social econômica e cultural de Ceilândia", destaca.
Com a chegada da nova moeda, Ceilândia registrou uma expansão populacional e um aumento do número de empregos, o que fez com que o local deixasse de ser uma 'cidade-dormitório'. Segundo dados da última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), publicada em 2021, cerca de 43% da população de Ceilândia trabalha dentro da própria cidade.
Atualmente, a localidade arrecada em torno de R$ 6 bilhões de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). O diretor da Acic acrescenta que, com o crescimento econômico da cidade, essa parcela pode chegar a R$ 7,5 bilhões.
Apesar de ser fundamental para a diminuição da pobreza no Brasil, o real teve efeito limitado e não conseguiu extinguir esta realidade social dramática em várias regiões do país. Selma Geralda da Silva, tem 47 anos e é dona de casa. Mãe solo e com 4 filhos para cuidar, a moradora da Estrutural vivencia uma série de dificuldades ocasionadas pelo aumento da inflação, sobretudo após o período da pandemia de covid-19.
Selma era adolescente quando o Plano Real começou a entrar em vigor no país. Na época, a família morava em um ambiente rural e passava por muitas necessidades. "Naquele tempo, a gente tinha muitas necessidades. Às vezes não tinha nem o que comer, ou roupas, calçados eram muito caros, e minha mãe era de uma família muito humilde", relata.
Mas o cenário não mudou muito. Selma já foi manicure, cabeleireira, babá, freelancer, doméstica, além de outras profissões ao longo da vida. Apesar disso, não consegue arranjar um novo emprego e tem que se virar com o pouco dinheiro que recebe, por meio da ajuda social e de programas do governo. "Não sei se mudou muita coisa. Porque, para a gente conseguir alguma coisa, temos que trabalhar muito. E a gente não tem voz, somos invisíveis, ainda mais no local em que a gente mora, com extrema vulnerabilidade", aponta Selma.
Dificuldade semelhante é o que passa Gisele de Sousa da Trindade, de 27 anos, mãe de três filhos, e também moradora da Estrutural. Mesmo tendo nascido após a criação do real, ela conta da dificuldade que é conviver com a inflação e lembra da época em que os preços ainda eram menores, após o lançamento da moeda. "Às vezes a minha mãe dava moeda para a gente e a gente vinha com um monte de balinha. Hoje em dia, se você dá R$ 1 para uma criança, ela vem com um pirulito", afirma.
"O custo é bem alto, porque tem remédio, calçado, material escolar e muitos outros custos que envolvem crianças. E o salário também não dá para manter, é bem complicado", acrescenta Gisele. "Faz tempo que eu não faço uma compra bem farta para minha casa. Eu recebo um benefício de R$ 250 por mês, que não dá para comprar quase nada. Você pega quatro sacolas e quando você vê, o cartão foi todo", conclui.
O ex-diretor do Banco Central entre 1985 e 1988 e entre 1999 e 2003, Carlos Eduardo de Freitas, afirma que, mesmo acabando com a hiperinflação, o Brasil ainda tem que superar as distorções políticas, que impedem o avanço das pautas econômicas. Ele cita um caso bem recente — o conflito entre o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e o atual presidente da autoridade monetária, Roberto Campos Neto.
"Temos uma carga tributária ainda muito elevada, o que afeta a população mais carente. Há preocupações muito equivocadas com políticas sociais. Porque a taxa de juros no país é alta? Em primeiro lugar, porque a poupança é pequena. O setor privado poupa mais ou menos uns 18% do PIB. O setor público 'despoupa' de 3% a 4%. Com isso, a capacidade de crescimento diminui. Então é preciso levar o setor público a ter uma poupança zero, e não negativa", explica.
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