A divulgação dos casos de cancelamentos unilaterais estão entre os motivos que explicam o aumento expressivo no número de processos contra planos de saúde nos últimos anos, segundo especialistas ouvidos pelo Correio. Os processos formam uma triangulação que envolve consumidores, operadoras e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Dados do painel de Estatísticas Processuais de Direito à Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam crescimento de 65% nos processos de cidadãos contra as operadoras entre os anos de 2020 e 2023. Segundo o CNJ, em 2023, foram movidos 219,34 mil novos processos, contra 132,53 mil ações em 2020.
As ações individuais constituem quase 100% dos processos desde 2020, o que resultou em um custo de R$ 17 bilhões para os planos, apenas nos últimos cinco anos. O montante acaba por ser repassado para os usuários, alertam os representantes do setor.
Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) diz, em nota, que a judicialização da saúde ocorre de forma "indevida" e prejudica mais o próprio beneficiário. "O maior impactado pelas judicializações indevidas é o próprio beneficiário, uma vez que o sistema funciona no modelo de coletividade: o uso de um é pago por todos. Ou seja, quando há um mau uso ou uma judicialização indevida que leva a uma ação judicial, há um aumento do custo não previsto, o que encarece o uso do sistema para todos os beneficiários", escreve.
De acordo com a Abramge, somente em 2023, foram desembolsados R$ 5,5 bilhões para custear os gastos com processos judiciais. Desde 2016, segundo a associação, os valores aumentaram significativamente; em 2016, o gasto foi de R$ 1,3 bilhões, um aumento de mais de 320% em cinco anos.
Divulgação
De acordo com o advogado e mestre em direito administrativo, Silvio Guidi, o aumento na judicialização é motivado, especialmente, pelo crescimento de casos noticiados na mídia sobre cancelamentos unilaterais, coberturas negadas, deficits nas coberturas, entre outros. "Processar as operadoras de saúde era um assunto muito tímido na sociedade até 2020, até a gente começar a ver o assunto de planos de saúde circular com mais frequência na mídia desde a pandemia", explica.
Guidi comenta que o crescimento das ações individuais reflete uma suposta falta de credibilidade que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) transmite à população, que sente mais segurança no Judiciário do que na agência reguladora. "Os números mostram que o Judiciário está regulando mais o setor de saúde suplementar do que a própria ANS. Então, a sociedade está depositando mais fé no judiciário e cria uma crise de credibilidade na ANS. Quando pensamos na credibilidade que a população deposita na Anvisa, isso não reflete no judiciário, porque o judiciário não fica desfazendo as decisões da Anvisa a todo momento", opina Guidi.
Em resposta, a ANS afirmou ao Correio que não tem acesso às ações judiciais relacionadas à saúde suplementar e que a agência é "pioneira na intermediação de conflitos entre beneficiários e operadoras". O órgão argumentou que a ferramenta criada para agilizar as demandas de reclamações dos beneficiários, a Notificação de Intermediação Preliminar (NIP), consegue resolver 90% das queixas dos consumidores no curto prazo. "Se o problema não for resolvido pela NIP e se constatada infração à legislação do setor, será instaurado processo administrativo sancionador, que pode resultar na imposição de sanções à operadora, destacando-se, entre elas, a aplicação de multa".
No entanto, de acordo com o mestre em direito e especialista em direito médico, Washington Fonseca, o aumento do número de processos e a judicialização dos planos de saúde são motivados por urgências médicas que precisam de uma resolução mais rápida que os atendimentos da ANS podem fornecer. "A decisão judicial vai agilizar o processo de muitas pessoas em situações de emergência. O beneficiário que precisa de uma cirurgia ou um medicamento que o plano não está aceitando consegue uma liminar, e em 24h ou 48h, no máximo, consegue esse atendimento", explica.
A aposentada Régia Fernanda Freire, de 70 anos, é uma das pessoas que precisaram entrar na justiça para poder recuperar o plano de saúde, do qual é beneficiária há dois anos. Freire conta que sempre paga a mensalidade entre os dias 20 e 25 do mês, mas passou a receber boletos de meses que já havia pago e, ao questionar a operadora, não recebeu respostas. Até que, no dia 20 de junho, ao tentar realizar o pagamento do mês, foi alertada de que o plano havia sido cancelado por inadimplência.
"Fui ao Procon e à sede da operadora tentar resolver, mas continuo sem resposta sobre o meu plano. Recebi de volta o boleto de junho e já paguei para ter tempo de ver com um advogado como devo proceder. Estou temerosa porque o valor do boleto está muito abaixo daquele referente ao boleto que não consegui pagar", conta.
Para a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), a judicialização é uma forma "injusta de acesso à saúde". A Federação cita um estudo da FGV sobre a "Judicialização da Saúde Suplementar", que analisa todas as decisões de 1ª e 2ª instâncias do Tribunal de Justiça de São Paulo relativas a planos de saúde proferidas entre 2018 e 2021.
Segundo o estudo, as decisões de segunda instância do TJSP sobre a negativa de cobertura e reajuste são fundamentadas mais na própria jurisprudência (56%) do que na Lei dos planos de saúde (23%).
Com base nesse estudo, a diretora-executiva da FenaSaúde, Vera Valente, se posiciona em oposição à judicialização. "A judicialização é a forma mais injusta de acesso à saúde, pois beneficia apenas aqueles que têm informação e recursos financeiros para recorrer aos tribunais, deixando desassistida a grande maioria dos beneficiários dos planos de saúde".
Reclamações
Em maio deste ano, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) notificou 20 operadoras de planos de saúde pelo grande número de cancelamentos unilaterais constatados pela ANS. Desde então, a prática de cancelamento unilateral foi criticada por diversos setores.
Além disso, a Senacon expõe que muitas das reclamações dos beneficiários mostram que as operadoras estariam privando os consumidores de realizarem exames e tratamentos. "Ao analisar o mercado de consumo, foi observado que os consumidores estariam sendo privados de realizar exames e tratamentos ou tornando-se excessivamente oneroso para o consumidor usufruir desses serviços, por estar ocorrendo possíveis irregularidades quanto ao descredenciamento de prestadores de serviços de saúde", escreve a Senacon, em nota ao Correio.
*Estagiária sob supervisão de Edla Lula
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