Para o cientista político Michael Andrés López Stewart, da Arko Advice, a eleição norte-americana ganhou frescor com a entrada da vice-presidente Kamala Harris. A chegada da democrata torna a corrida para a Casa Branca ainda mais emblemática. Mas, na contagem de votos, a disputa permanece complicada, em razão de um eleitorado “calcificado” nos Estados Unidos. Na avaliação do especialista, Kamala pode ganhar projeção em temas como o aborto legal, mas enfrenta dificuldades avançar entre norte-americanos conservadores. A escolha do candidato a vice para a campanha democrata, para Stewart, pode representar uma vitória nos estados pêndulo, que costumam definir as eleições norte-americanas. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
A substituição de Biden por Kamala, por si só, é fator decisivo para a vitória democrata?
A sensação é de que a mudança deu um embalo na campanha e oxigenou o partido. Kamala é uma oradora acima da média e pode trazer um dinamismo que vai contrastar com os 78 anos de Trump, que, após a saída de Biden, se tornou o candidato mais velho da história do país. Kamala pode ganhar, mas Biden também tinha chances de vitória. A lógica de eleições presidenciais majoritárias torna difícil de enxergar a lógica calcificada do partidarismo negativo, que é o elemento definitivo das eleições presidenciais americanas.
Sendo mulher, Kamala teria mais vantagens no debate com Trump do que Biden?
Não. Ela teria vantagem pela oratória, algo que ela demonstrou inúmeras vezes no Senado, inclusive em trechos de vídeos que estão viralizando nesses últimos dias. Trump foi muito bem nos debates contra a Hillary porque não se intimidou e foi para o ataque. Não tenho dúvida de que, caso aceite debater com Kamala, ele tentará utilizar a mesma estratégia. Mas quem já viu Kamala no Senado sabe que não seria um embate unilateral.
O fato de ela ser uma descendente direta de dois imigrantes não afasta Kamala do eleitorado conservador?
O eleitorado conservador já não está com ela, assim como não estava com Biden. As mudanças demográficas das últimas décadas mudaram o panorama étnico-demográfico, o que tem, por exemplo, motivado o partido republicano a limitar a adesão e comparecimento de novos eleitores. Kamala tem que buscar o apoio dos eleitores democratas e da maior parcela possível da já minúscula porção do eleitorado que está indefinido. O sucesso dependerá mais da motivação de militantes, que ajudam a aumentar o comparecimento (turnout) do que tentar apelar para um eleitorado conservador. Dito isso, um dos argumentos a favor de um vice-presidente como o senador Mark Kelly seria sua capacidade de balancear a percepção refletida nesta pergunta.
Qual a explicação para a extraordinária captação de recursos de Kamala em tão poucos dias?
Tem a ver com o “timing”, com o momento do anúncio. Durante semanas a pressão foi aumentando, e Biden resistiu. Vimos vários momentos de gafes, momentos em que o mundo inteiro estava de olho no presidente norte-americano. Com o anúncio da saída e o imediato apoio a Kamala, foi como abrir uma panela de pressão. A sensação da campanha mudou imediatamente e os democratas mais engajados fizeram o seu papel e contribuíram. Houve uma mudança total de narrativa e a mídia, que estivera focada quase exclusivamente em Trump e no atentado, passou para um novo foco, a Kamala Harris.
Isso significa algum tipo de apoio e vontade do establishment em derrotar Trump?
Não. Existe sim um temor sobre algumas políticas e decisões que já foram ventiladas por Trump e fazem parte da plataforma conhecida como Project 2025, uma espécie de codificação do trumpismo que, na opinião de diversos analistas, poderia trazer significativos riscos à democracia americana. Não podemos esquecer que o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro ocorreu enquanto o plenário estava em sessão, e a multidão foi até o local imediatamente após um discurso de Trump. Tampouco podemos esquecer que Trump tem apoiadores de renome no mundo empresarial. Dois exemplos são Elon Musk (que ainda é dono do Twitter) e Ben Horowitz, da Andressen Horowitz. A captação de Kamala reflete o engajamento dos democratas, que historicamente tem conseguido levantar recursos significativos de doadores pequenos desde a campanha de Barack Obama em 2008.
Qual a diferença de pensamento entre Biden e Harris?
Existem várias diferenças, muitas vezes não em relação a contradições de visão, mas em pesos para certos assuntos. Um assunto que rendeu frutos eleitorais importantes para o partido nas eleições de midterm foi o tema dos direitos de aborto, no contexto pós-reversão, em 2022, do Roe v. Wade (decisão que permitiu o aborto legal nos EUA) pela Suprema Corte. Kamala Harris tem lutado pelos direitos das mulheres durante toda sua carreira. Ela fez isso como advogada geral da Califórnia e continuou como senadora. Na corrida eleitoral, este é um assunto pode trazer benefícios para o partido democrata junto ao segmento de mulheres entre 18-49 anos, por exemplo.
Em quais outros temas se nota uma diferença de ênfase?
Biden e Kamala têm muitos pontos em comum, como o comprometimento com a mudança climática e o tema dos student loans (financiamento estudantis). Mas outros pontos de diferença são: Harris tem demonstrado maior apoio ou empatia com a Palestina na questão do conflito em Gaza. Outro tema importante é a Inteligência Artificial. Kamala apoia a regulamentação federal, enquanto Biden é a favor de standards para o setor de adesão voluntária. Essa preocupação com a IA está em linha com o histórico de atuação trabalhista, de direitos civis e de proteção do consumidor de Kamala.
Qual o fator mais decisivo na corrida eleitoral: o atentado a Trump ou a desistência de Biden?
O mais importante aqui é ressaltar a calcificação do eleitorado. Mesmo com estes dois acontecimentos históricos (atentado a Trump e desistência de Biden), o impacto nos dados, nos fundamentos da eleição, é menor do que imaginamos. Tudo será decidido por parcelas pequenas de eleitores em estados-chave como Pensilvânia, Wisconsin e Michigan, entre outros.
Como avalia a situação dos swing states (estados pêndulo) com a chegada de Kamala?
Ainda é cedo para avaliar os impactos específicos em swing states. As pesquisas nesta distância da eleição tendem a refletir dinâmicas que não necessariamente se concretizam durante a eleição. A questão do turnout (comparecimento) é central para resultados, algo muito difícil de mensurar nesta altura do campeonato. O ponto central é que o eleitorado americano está muito calcificado. O percentual de eleitores que estão dispostos a mudar de lado, ou que não tem um lado definido, é muito pequeno. Por isso, a eleição tende a ser apertada, mesmo com essas grandes mudanças das últimas semanas.
Pode haver alguma surpresa nesses estados?
Um elemento que pode trazer um impacto direto em swing state será a escolha do VP de Kamala. Se Kamala escolher um governador ou senador de um estado importante, este político pode trazer um impacto importante. Dentre os possíveis escolhidos temos o Senador Mark Kelly no Arizona, que tem uma biografia muito interessante, é casado com a deputada Gabrielle Giffords, vítima de atentado em Tucson em 2011, mas apoiador da segunda emenda e do porte de armas. O Governador da Carolina do Norte, Roy Cooper, tem um longo histórico de atuação no estado. Ele obteve seis pontos a mais que o Biden no estado em 2020. A governadora Gretchen Whitmer, em Michigan, poderia ajudar a trazer os 15 votos eleitorais (electoral votes) do estado para a Kamala, ainda que existam outras considerações estratégicas em relação a uma possível nomeação dela.
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