09 de Novembro de 2024

'Esquerda da América Latina não sabe o que fazer com esta criatura indecifrável que é o chavismo'


No momento em que aumenta a pressão internacional por uma recontagem transparente e auditável dos votos das eleções de domingo (28/07) na Venezuela, os presidentes de equerda de países latino-americanos se encontram divididos.

De um lado, o presidente do Chile, Gabriel Boric, foi o primeiro a exigir "total transparência das atas de apuração e de todo processo eleitoral", logo após de ter exposto suas dúvidas em relação ao resultado divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, que deu vitória ao presidente Nicolás Maduro.

Brasil, México e Colômbia se juntaram ao Chile e disseram que iriam esperar pelos resultados definitivos, mas países como Bolivia, Nicarágua e Honduras preferiram parabenizar Maduro por seu "triunfo obtido sem objeções".

O cientista político argentino José Natanson, autor de Venezuela. Ensayo sobre la descomposición, analisa como o "fracasso da Venezuela" nestes últimos anos impacta a esquerda da América Latina.

"Existe uma esquerda nostálgica que acredita que a Venezuela segue o projeto de Hugo Chávez e que age como se isto fosse acertado", disse o diretor da revista Le Monde Diplomatique, de tendência de esquerda, na sua edição intitulada Cone Sul, que analisa o chavismo nos últimos dez anos.

Apesar de países como Brasil, México e Colômbia declararem que esperam que os resultados sejam analisados por uma "auditoria independente", a chancelaria venezuelana divulgou um comunicado na segunda-feira (29/07) classificando como "declarações e ações de ingerência" as posições de Argentina, Chile, Costa Rica, Perú, Panamá, República Dominicana e Uruguai e exigiu a "retirada imediata" de seus diplomatas do país.

Também ordenou a volta imediata dos representantes diplomáticos venezuelanos baseados naqueles sete países latino-americanos.

De Buenos Aires, José Natanson conversou sobre a Venezuela com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

BBC News Mundo - Qual a leitura que você faz do anúncio feito pelo CNE sobre os resultados na Venezuela?

José Natanson - Até agora, temos a declaração do chefe do CNE que disse que Maduro ganho as eleições. Para que essa declaração se converta em um resultado verificável faltam os dados de cada mesa e por centro de votação.

Para que uma eleição seja democrática, não basta que os resultados sejam públicos, eles têm que ser verificáveis.

Até este momento estes dados não são auditáveis. Os resultados não são verificáveis porque não se tem acesso aos dados desagregados que é o que permite aos fiscais de mesa da oposição verificarem se os dados da mesa X, da seção X daquela escola são compatíveis com os resultados divulgados pelo CNE.

Por isso, as suspeitas de fraude ganham fundamento. Eu não posso afirmar que houve fraude nem se os resultados divulgados estão corretos, não se pode afirmar nenhuma das duas opções até que tenhamos os dados.

A desconfiança sobre a correção do sistema eleitoral não nasceu no processo de votação em si mas sim no que aconteceu antes e depois das eleições.

Entretanto, desta vez as principais suspeitas da oposição se concentram na recontagem. O que aconteceu?

Até agora, o chavismo já havia cometido diversas irregularidades, desde as mais banais até as mais graves, mas nunca houve uma eleição nacional roubada na votação, por assim dizer.

O regime já tinha impedido candidatos de concorrer, já houve proibição de que eles viajassem de avião, houve prisões políticas e chegaram até a fechar um hotel em que se hospedavam candidatos da oposição.

Mas, desta vez, se forem comprovadas as suspeitas de fraude - que não são suspeitas minhas, são suspeitas manifestadas por alguns líderes -, o chavismo com certeza ultrapassou uma linha que não tinha cruzado anteriormente.

Entretanto essa comprovação ainda não foi feita, por isso temos que ter cautela.

BBC - No seu livro, você define o governo de Nicolás Maduro como um "autoritarismo caótico". Você pode explicar melhor essa definição?

Natanson - O processo de guinada autoritária na Venezuela não foi um processo que se desencadeou a partir de um rota revolucionária, nem nacionalista, nem de nenhum outro tipo. Não é como o processo soviético ou o chinês.

Na Venezuela, isso se deu através de uma série de decisões táticas que acabaram por levar o país a um autoritarismo caótico.

Pelo menos até agora, a Venezuela não era e não é uma ditadura num sentido clássico.

Na Venezuela, a oposição não está totalmente obliterada como em Cuba. Existem três governadores de oposição e mais de cem prefeitos opositores que governam, mesmo que com muita dificuldade.

A Venezuela não tem um sistema de partido único institucionalizado como o sistema soviético, o chinês ou o sistema cubano. Mas o país também não é uma democracia liberal pluralista e republicana por tudo o que sabemos.

Por isso, eu acredito que o país vive transitando entre esses momentos intermediários, em que por vezes se abre, em outros se fecha completamente, em outros é mais autoritário e em outros menos.

BBC - Você vê a Venezuela migrando para um sistema de um só partido, como em Cuba?

Natanson - Não acredito, porque a sociedade venezuelana vivenciou por décadas a democracia plena e próspera e portanto não toleraria um sistema de partido único como o de Cuba.

E, além disso, a Venezuela precisa continuar passando a imagen - pelo menos na aparência - de que é uma democracia republicana, porque só assim consegue manter algumas alianças internacionais importantes.

Me parece que por essa razão foi criado este sistema híbrido, tão opaco e tão pouco explícito.

Os principais aliados de Maduro como a Rússia, China, Cuba e Nicarágua não exigem que seja uma democracia republicana, porque eles mesmos não são, mas isso pode ser feito por outros países da América Latina e por setores empresariais.

BBC - Diante desse cenário de incertezas, você vê um risco de fratura interna?

Natanson - As Forças Armadas estão tão entranhadas no governo que é muito difícil acreditar na possibilidade de uma ruptura vertical dos militares.

Pode haver dissidências - de fato existem mais de cem militares detidos por tentarem se rebelar -, mas não há sinais de uma ruptura em larga escala no interior do governo, porque na verdade todos estão implicados.

BBC - E como você vê as reações da esquerda na América Latina?

Natanson - A esquerda na região está dividida, não sabe o que fazer com esta criatura indecifrável que é o chavismo.

Existe uma esquerda nostálgica que acredita que a Venezuela dá continuidade à etapa de Hugo Chávez e que age como isso fosse acertado.

Essa é uma esquerda mais emocional, que poderia ser descrita como irreflexiva, mas não pretendo desqualificá-la. Posso entender que figuras como Evo Morales se sintam agradecidos pelo chavismo.

Também existe o caso de Cuba e da Nicarágua, que são países com regimes autoritários, que possivelmente saibam o que aconteceu com as eleições, mas não se importam com o caráter democrático e que precisam da Venezuela.

De outro lado, estão os novos líderes da esquerda latinoamericana, como Gabriel Boric e Gustavo Petro, que percebem que o que acontece na Venezuela é diferente dos primeiros anos de governo Hugo Chávez.

E eu acredito que Lula, Pepe Mujica e Andrés Manuel López Obrador acabaram por entender isso depois de algumas idas e vindas.

BBC - Como você analisa as declarações dadas pelo presidente do Chile?

Natanson - Boric é um dos novos líderes da esquerda latinoamericana. Foi ele quem, antes de tudo isso, já dizia que se houver violação de direitos humanos no Afganistão, na Arábia Saudita ou na Venezuela, todas são violações de direitos humanos e ponto final.

Não é por acaso que foi [a ex-presidente do Chile] Michelle Bachelet a autora do primeiro relatório que documenta a violação de direitos humanos na Venezuela.

Também é interessante ver o silêncio estrondoso de Lula e a cautela da abordagem de López Obrador.

O Brasil enviou Celso Amorim a Caracas, depois do ex-chanceler se reunir nos Estados Unidos com Jake Sullivan (responsável pela Segurança Nacional no governo Joe Biden) e depois que Maduro criticou Lula por ter criticados as ameaças do presidente da Venezuela de que haveria um "banho de sangue no país", caso fosse derrotado nas eleições.

BBC - Como você vê o papel do Brasil?

Natanson - Lula sempre foi muito pragmático. Me parece que seu papel no processo eleitoral da Venezuela continua sendo construtivo.

Lula é importante para a Venezuela porque, além de ser presidente do Brasil, ninguém da esquerda vai acusar Lula de não ser de esquerda.

Lula vai fazer todo o possível para que o processo venezuelano se desenvolva em paz e que se conheçam os resultados.

BBC - A comunidade internacional tem capacidade de intervir?

Natanson - Atualmente, a capacidade do Brasil e dos EUA de interferir na situação interna da Venezuela é muito limitada.

Se eles não conseguiram intervir em 2017, nem através das sanções impostas pelo governo Trump, com o Grupo de Lima, ou com o isolamento internacional quase que total a que a Venezuela vem sendo submetida, atualmente, depois que a Venezuela recuperou em parte sua capacidade de produção petrolífera, que o país se armou e atualizou seu sistema de alianças com a China, Rússia, Turquia, Irã e Cuba, não acredito que haja algo significativo.

Não estou dizendo que não vá haver pressão e que isso não vai levar a nada, mas não acredito que a pressão internacional possa alterar o processo venezuelano se não houver vontade de Nicolás Maduro de fazer algo diferente do que está fazendo agora.

BBC - Com a vitória de Maduro declarada pelo CNE e rechaçada pela oposição, que cenários existem no curto prazo, na sua opinião?

Natanson - Primeiro temos que esperar até que o Conselho Nacional Eleitoral divulgue os resultados desagregados e depois temos que esperar que a oposição tenha acesso às atas para demostrar que os resultados desagregados não são aqueles que aparecem nas atas.

Essas duas coisas têm que ocorrer.

Se isso não acontecer, teremos um típico processo que tem ocorrido na Venezuela, que é uma situação em que não se sabe o que aconteceu nem o que está acontecendo. É típico do chavismo, jogar com a ambiguidade.

Desde que Maduro assumiu o poder em 2013, esse recurso da ambiguidade virou uma estratégia para se ganhar tempo. O que não fica claro é para que se faz isso. É tão somente para se manter no poder?

Eu acho que essa rseistência em não divulgar os resultados é parte dessa estratégia. Se eles realmente distorceram os resultados, agora ficam à espera, conversam com Lula, provavelmente vão negociar com os Estados Unidos e ficam de olho nas reações internas.

O objetivo é tão simplesmente se manter no poder, porque, para Maduro, o custo da saída é muito alto por mais que tenha o controle da Assembleia, controle do Tribunal Superior de Justiça, e o controle das Forças Armadas...é altíssimo.

Para mim, sempre mantive essa ideia de que as coisas agora iriam ser diferentes. Como acreditar que finalmente Maduro perderia as eleições, aceitaria a derrota e deixaria o poder de maneira pacífica.

Temos que aguardar os resultados.

Fonte: correiobraziliense

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