Após ser declarado vencedor nas eleições presidenciais de 28 de julho pelo presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Elvis Amoroso, Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça (TSJ, na sigla em espanhol) solicitando uma auditoria para esclarecer 'a verdade' sobre o pleito.
O TSJ é o órgão máximo do poder Judiciário na Venezuela, equivalente ao Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil.
Isso ocorre em meio às alegações da oposição de que seu candidato, Edmundo González Urrutia, foi o verdadeiro vencedor e que possui as atas eleitorais para provar isso.
Maduro descreveu as alegações da oposição como uma "tentativa de golpe de Estado" e pediu ao TSJ que responda a esse "ataque ao processo eleitoral".
Esse pedido é incomum por duas razões: é raro que um vencedor solicite revisão dos resultados, e a solicitação não aborda a questão central levantada pela oposição e por parte da comunidade internacional — a falta de divulgação dos resultados detalhados de cada mesa de votação pelo CNE, as chamadas atas eleitorais (espécie de boletim de urna), o que dificulta a auditoria das eleições.
Tradicionalmente, o CNE publica todos os resultados detalhados e qualquer contestação é geralmente feita pelo perdedor diretamente ao CNE.
A oposição, no entanto, criou um site compartilhando mais de 81% das atas que reuniu, indicando que González Urrutia teria recebido 7.156.462 votos contra 3.241.461 de Maduro. Se esses números estiverem corretos, a diferença seria irreversível.
Na sexta-feira, Amoroso divulgou um boletim com 96,86% das atas, mostrando a vitória de Maduro com 6.408.844 votos, enquanto González Urrutia teria obtido 5.326.104 votos.
O atraso na divulgação dos resultados foi atribuído por Amoroso a um suposto ataque por hackers, mas ele não apresentou as atas nem explicou a falta de transparência.
Diante disso, o que Maduro busca ao recorrer ao TSJ?
José Ignacio Hernández, advogado da Aurora Macro Strategies e procurador especial do autoproclamado governo de Juan Guaidó, afirma que "não há o que impugnar perante o TSJ".
Hernández, que também é especialista em Direito Constitucional e Administrativo, argumenta que o problema fundamental na Venezuela é a ausência de divulgação transparente, pública e verificável dos resultados eleitorais.
Segundo ele, "o CNE deveria permitir o acesso aberto, apartidário e técnico a todas as atas eleitorais".
Portanto, para ele, o recurso ao TSJ não resolve a questão central.
Hernández explica que, conforme as informações disponíveis, Maduro teria apresentado um recurso contencioso eleitoral com uma medida cautelar de proteção.
Ele expressa preocupação com o possível abuso dessa figura jurídica, uma vez que o governo já usou essa técnica anteriormente.
Em 2015, após a oposição conquistar uma maioria absoluta na Assembleia Nacional, o chavismo introduziu um recurso com pedido de proteção para impedir que quatro deputados eleitos pelo estado de Amazonas assumissem seus cargos.
Três desses deputados eram opositores e faziam a diferença numérica entre uma maioria simples e uma maioria qualificada de dois terços.
Naquela ocasião, a oposição rejeitou a medida do TSJ, resultando em uma declaração de desacato que levou à anulação das decisões do Parlamento controlado pela oposição.
Hernández destaca que, embora o recurso em si possa ser irrelevante, "o que realmente importa é a medida cautelar que pode obrigar a oposição a entregar as atas".
Ele alerta que, se a oposição acatar uma ordem semelhante do TSJ, isso significaria abrir mão das provas que comprovam os resultados das eleições.
"Se entregarem as atas, perdem as provas. E se não entregarem, serão declarados em desrespeito e poderão ser presos", adverte ele.
O especialista enfatiza que o que realmente deve ser feito é o que diversos atores internacionais têm solicitado: a divulgação dos dados desagregados das mesas de votação pelo CNE.
Maduro afirmou que o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) possui as atas, mas Hernández ressalta que "não é o PSUV nem a oposição que deve mostrar as atas. É o CNE".
Mas, embora do ponto de vista jurídico possa haver dúvidas sobre o recurso apresentado por Maduro ao TSJ, do ponto de vista político a manobra de Maduro pode ser uma estratégia para ganhar tempo e desviar a atenção, diz Carmen Beatriz Fernández, CEO da consultoria Datastrategia e doutora em comunicação pública.
Segundo ela, "com essa jogada do TSJ, Maduro está tentando ganhar tempo, porque está sob uma pressão interna e externa bastante significativa no momento".
Ela acrescenta que a ação do TSJ permite que o governo coloque o tribunal, que muitos consideram alinhado com o chavismo, como mediador para revisar e eventualmente validar a eleição.
"O TSJ pedirá uma pausa para avaliar o caso. Essa pausa pode durar um tempo, durante o qual esperam que a pressão diminua um pouco. Dirão: estou passando para o TSJ e vamos esperar para ver o que dizem. E o que o TSJ dirá? O que Maduro quer que digam", afirma Fernández.
O TSJ anunciou na quinta-feira que aceitou o recurso de Maduro e convocou os dez candidatos presidenciais para comparecerem à sua sede na sexta-feira, onde foram notificados sobre o procedimento em andamento.
González Urrutia não compareceu, mas Enrique Márquez, do partido opositor minoritário Centrados, esteve presente e se recusou a assinar a notificação, questionando o fundamento do recurso.
"Vim ver do que se trata e saio da mesma forma. Não sei do que se trata isso. A Sala Eleitoral admite um recurso do presidente da República, que foi declarado vencedor pelo Conselho Nacional Eleitoral. Contra o que o presidente da República está recorrendo? Contra sua própria proclamação?", questionou Márquez ao deixar o evento.
Márquez disse que o TSJ pediu que assinassem uma notificação sobre o recurso interposto por Maduro, mas que ele se recusou a assiná-la porque não foi informado sobre o conteúdo da demanda.
"Não me sinto notificado de nada. A notificação deve vir acompanhada do recurso", afirmou ele.
"Ratifico meu compromisso com a vontade popular expressa em 28 de julho e aproveito a presença do TSJ para exigir que o CNE se ajuste à lei e publique os resultados eleitorais que sustentam o boletim #1 e #2, produzidos hoje, com os resultados. Não há outra forma", acrescentou.
Os questionamentos sobre a imparcialidade do TSJ vão além das questões jurídicas e envolvem desconfiança em relação ao CNE e ao TSJ.
Três dos cinco membros do CNE são considerados representantes do governo.
O presidente do CNE, Elvis Amoroso, foi deputado pelo PSUV e, como controlador geral da República, foi responsável pela inabilitação administrativa que impediu a candidatura de María Corina Machado, estrela da oposição, à presidência.
Essa medida foi aprovada pelo TSJ e questionada pela oposição e por instituições como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que afirmou que a exclusão de líderes opositores confirma a falta de independência e imparcialidade do sistema de justiça venezuelano.
Quanto ao TSJ, todos os seus membros foram nomeados por parlamentos dominados pelo chavismo, e alguns deles, como Calixto Ortega e Caryslia Rodríguez, têm histórico com o PSUV.
Diversos juristas apontam que as decisões do TSJ geralmente favorecem o governo.
Jennie K. Lincoln, chefe da missão de observação eleitoral do Centro Carter, convidado para acompanhar as eleições presidenciais na Venezuela, criticou a intervenção do TSJ, afirmando que "não é uma avaliação independente" e sugeriu que Maduro deveria exigir ao CNE a publicação dos dados eleitorais mesa por mesa.
O relatório final do Centro Carter, divulgado na terça-feira, criticou fortemente as eleições de 28 de julho, concluindo que não atenderam aos "padrões internacionais de integridade eleitoral" e não podem ser consideradas democráticas.
O relatório também destacou que as autoridades do CNE demonstraram parcialidade em favor do governo e contra as candidaturas da oposição.
Fernández, da Datastrategia, observa que a decisão do governo de recorrer ao TSJ contradiz o discurso do chavismo sobre a independência do Poder Eleitoral.
Ela acredita que ninguém “vai acreditar no TSJ, porque, no final, o que está em jogo é o que foi demonstrado, não apenas no domingo, mas ao longo dos anos: não há autonomia dos poderes (na Venezuela). Assim como o Poder Eleitoral não é independente, o TSJ também não é. Portanto, não é necessário colocar nas mãos do TSJ uma decisão derivada de um crime eleitoral cometido pelo árbitro".
O governo venezuelano sempre negou a alegação de falta de independência dos poderes e rejeitou as acusações de que todos os poderes do Estado são apêndices do Executivo.
Fonte: correiobraziliense
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