Se você, por acaso, olhasse para o céu por algumas noites no mês de maio de 2024, haveria boas possibilidades de presenciar um evento espetacular.
Para quem mora em latitudes relativamente baixas, havia a rara oportunidade de observar o brilho cintilante vermelho, rosa e verde da aurora do nosso planeta.
Uma poderosa tempestade solar lançou partículas carregadas que se dirigiram à Terra em velocidade estonteante. E, enquanto saltavam em volta da atmosfera do nosso planeta, elas geraram visões espetaculares da aurora boreal e austral.
Graças ao enorme poder da tempestade geomagnética, a mais forte das últimas duas décadas, as imagens deslumbrantes da aurora boreal foram visíveis muito mais ao sul do que o normal – e muito mais ao norte, no caso da aurora austral.
Algumas pessoas presenciaram apenas um brilho fraco e misterioso, mas outras puderam observar uma miríade de cores – até mesmo em locais distantes do Polo Norte, como Ohio, nos Estados Unidos, e também em Londres. E houve relatos de visões ao norte de São Francisco, na Califórnia (EUA).
Este pico da atividade solar pode ter deixado muitas pessoas na Terra encantadas com o espetáculo de luzes, mas também houve profundos efeitos em outros pontos do Sistema Solar.
Enquanto a maioria de nós se maravilhava com a dança das cores no céu noturno, astrônomos examinavam muito além da atmosfera terrestre. Eles tentavam observar os estranhos efeitos causados por esses intensos jatos de partículas nos planetas vizinhos e no espaço interplanetário.
"O Sol pode ejetar material em qualquer direção, como um pulverizador de jardim", afirma o professor de física espacial Jim Wild, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido. "Os efeitos são sentidos em todo o Sistema Solar."
No momento, o nosso Sol está se encaminhando para o seu nível máximo de atividade – o ponto em que ele está mais ativo no seu ciclo de 11 anos. Talvez ele já tenha até atingido esse pico.
Com isso, o Sol produz mais jatos de radiação e partículas provenientes de erupções solares, além de eventos conhecidos como ejeções de massa coronal (EMC). E, se elas forem lançadas na nossa direção, podem sobrecarregar o campo magnético da Terra – de um lado, causando magníficas auroras, mas, de outro, desencadeando problemas para os satélites e as redes de energia.
"Tudo parece estar se agravando agora", afirma o físico espacial Mathew Owens, da Universidade de Reading, no Reino Unido. "Acho que estamos perto do máximo solar, de forma que podemos ver mais deste tipo de tempestade nos próximos dois anos."
Diversas espaçonaves estão em torno do Sol, observando de perto toda esta atividade.
Uma delas, a Solar Orbiter, da Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês), vem estudando o Sol desde 2020, em uma órbita que a coloca na altura de Mercúrio.
Atualmente, a espaçonave está "no lado mais distante do Sol, para os observadores da Terra", explica o cientista de projetos Daniel Müller, da missão Solar Orbiter da ESA, na Holanda. "Por isso, podemos ver o que a Terra não vê."
A tempestade que atingiu o nosso planeta em maio se originou de uma região ativa de erupções e manchas solares, ejeções de plasma e campos magnéticos retorcidos na superfície do Sol, conhecida como fotosfera.
A Solar Orbiter conseguiu observar "diversas erupções dessa imensa região ativa que gira fora da visão da Terra", afirma Müller, além de raios de luz brilhantes e regiões escuras conhecidas como manchas solares, na superfície do Sol.
Um dos objetivos da Solar Orbiter é "relacionar o que está acontecendo no Sol ao que acontece na heliosfera", segundo Müller. A heliosfera é uma imensa bolha de plasma que engloba o Sol e os planetas do Sistema Solar, durante sua viagem através do espaço interestelar.
Müller e seus colegas esperam aprender mais sobre onde o vento solar – o fluxo constante de partículas que escapam do Sol e atravessam o nosso Sistema – "sopra para o meio interestelar", explica ele.
"Por isso, estamos particularmente interessados em qualquer elemento energético sobre o Sol que pudermos encontrar na turbulência do vento solar."
O ciclo atual é o n° 25. Ele parece ser "significativamente mais ativo do que o previsto", segundo Müller.
O número relativo de manchas solares é o índice usado para medir a atividade na superfície visível do Sol. E, atualmente, ele é muito maior do que o observado no pico do ciclo anterior.
A Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (Noaa, na sigla em inglês) havia previsto uma média mensal máxima de 124 manchas solares por dia em maio, mas o número real foi, em média, de 170 – e houve um dia com mais de 240 manchas, segundo Müller.
Mas a razão exata do ciclo solar de 11 anos e suas variações ainda é um mistério.
Os efeitos dessas mudanças da atividade solar se estendem, na verdade, por todo o sistema. Afinal, a Terra não é o único planeta atingido pelas tempestades solares à medida que elas se espalham pelo espaço interplanetário.
Mercúrio, o planeta mais próximo do Sol, tem um campo magnético muito mais fraco que o da Terra (cerca de 100 vezes menor) e sua atmosfera não é significativa. Mas a atividade solar pode fazer a superfície do planeta brilhar com raios X, quando cai o vento solar.
Vênus também não tem um campo magnético significativo. Ainda assim, o planeta observa auroras, quando o vento solar interage com a ionosfera venusiana.
Já em Marte, o efeito da atividade solar é mais claro. A espaçonave da Nasa chamada Maven (sigla em inglês para Atmosfera e Evoluções Voláteis em Marte) orbita o planeta e estuda sua atmosfera desde 2014.
"Estávamos na fase de redução da atividade do ciclo solar 24 [naquela época]", relembra a cientista planetária Shannon Curry, da Universidade do Colorado em Boulder, nos Estados Unidos. Ela é a líder da missão Maven.
"Estamos agora chegando ao pico do ciclo 25 e esta recente série de regiões ativas produziu a atividade mais forte já observada pela Maven", destaca ela.
Entre 14 e 20 de maio, a espaçonave detectou atividade solar excepcionalmente poderosa em Marte, incluindo uma erupção solar X8.7. As erupções solares costumam receber avaliações B, C, M ou X (da mais fraca para a mais forte).
Os resultados do evento ainda serão estudados, mas Curry observou que uma erupção X8.2 anterior havia resultado em "uma dúzia de estudos" publicados em revistas científicas.
Outra erupção no dia 20 de maio, que foi posteriormente estimada como ainda maior (X.12), lançou raios X e raios gama em direção a Marte. E uma ejeção de massa coronal subsequente emitiu uma grande quantidade de partículas carregadas na mesma direção.
As imagens transmitidas de Marte pelo robô Curiosity, da Nasa, revelaram a quantidade de energia que atingiu a superfície do planeta. Os traços e pontos causados pelas partículas carregadas que atingiram os sensores da câmera geraram imagens de "dança com neve", segundo um comunicado da Nasa à imprensa.
Já a Maven capturou uma aurora brilhante quando as partículas atingiam a atmosfera de Marte, engolfando todo o planeta em um brilho ultravioleta.
As erupções podem causar "aumentos dramáticos" da temperatura da atmosfera marciana, segundo Curry.
"[A temperatura] pode até dobrar na atmosfera superior. A própria atmosfera infla. Toda a atmosfera se expande por dezenas de quilômetros – o que é fascinante para os cientistas, mas prejudicial para a espaçonave, já que, quando a atmosfera se expande, aumenta o arrasto sobre ela."
A expansão da atmosfera também pode causar degradação dos painéis solares das espaçonaves em órbita de Marte, devido ao aumento da radiação. "As duas últimas erupções causaram mais degradação do que o normalmente esperado para um terço do ano", segundo Curry.
Embora tenha perdido a maior parte do seu campo magnético, Marte "ainda detém campos magnéticos remanescentes na crosta – pequenas bolhas sobre todo o hemisfério sul", afirma Curry. E, durante um evento solar, as partículas carregadas podem iluminar essas bolhas e despertar as partículas.
"Todo o lado onde é dia se ilumina no que chamamos de aurora difusa", explica Curry. "O céu inteiro brilha. Muito provavelmente, seria visível para os astronautas na superfície."
As tempestades solares tendem a se dissipar quando atingem o sistema solar externo, mas ainda causam impactos aos planetas no seu caminho.
É por isso que Júpiter, Saturno, Urano e Netuno têm auroras, causadas, em parte, pela interação entre as partículas carregadas do Sol e seus próprios campos magnéticos.
Mas os astrônomos estão ansiosos para estudar um dos principais efeitos da atividade solar sobre o espaço interplanetário. Trata-se do chamado "vento solar lento", um fluxo mais denso e moroso de plasma e partículas carregadas do Sol.
Segundo a astrônoma solar Steph Yardley, da Universidade da Nortúmbria, no Reino Unido, a velocidade do vento solar é "geralmente classificada em cerca de 500 km/s", mas o vento solar lento cai abaixo deste mínimo. Sua temperatura também é mais baixa e ele tende a ser mais volátil.
Estudos recentes de Yardley e seus colegas, usando dados da Solar Orbiter, indicam que a atmosfera do Sol, sua coroa, influencia a velocidade do vento solar.
Regiões com linhas de campo magnético, direção do campo e partículas carregadas "abertas" – que se espalham no espaço sem retornar – fornecem um caminho para que o vento solar atinja altas velocidades.
Já os circuitos fechados sobre algumas regiões ativas, onde as linhas do campo magnético não têm princípio nem fim, podem ocasionalmente se partir, produzindo o vento solar lento.
A variabilidade do vento solar lento parece ser determinada pelo fluxo imprevisível de plasma no interior do Sol, que torna o campo magnético particularmente caótico.
As erupções de classe X e as ejeções de massa coronal observadas em maio transformaram o meio interplanetário quando lançaram material pelo Sistema Solar. A Solar Orbiter detectou um enorme pico de íons se movendo a milhares de quilômetros por segundo, imediatamente após a erupção de 20 de maio.
O número de erros de memória aumentou drasticamente nos computadores a bordo de outras espaçonaves – a sonda BepiColombo, atualmente em uma viagem de sete anos até Mercúrio, e a Mars Express, em órbita de Marte. Este fenômeno foi causado pelas partículas solares com alta energia que atingiram as células de memória.
No dia seguinte após a ejeção de massa coronal, os magnetômetros a bordo da Solar Orbiter também observaram grandes flutuações do campo magnético em volta da aeronave, como uma enorme bolha de plasma composta de partículas carregadas, que foram lançadas pelo evento e passaram pela nave a 1.400 km/s.
O aumento da atividade solar é uma dádiva para os cientistas.
"Se você verificar a quantidade de estudos produzidos por físicos solares, poderá quase encontrar um ciclo de 11 anos", afirma Owens. "Todos nós somos cientificamente mais produtivos quando existe muita atividade para estudar."
À medida que o Sol caminha rumo à sua atividade máxima, o Sistema Solar observará cada vez mais atividade fluindo da superfície da estrela. Todos os planetas observam ao menos parte dessa atividade, mas a Terra é quem sofre as maiores consequências.
"A Terra é quase única, porque esse clima espacial pode trazer efeitos interessantes sobre a tecnologia humana", explica Wild. "Existe uma dimensão a mais aqui na Terra."
E, talvez, esses efeitos antropogênicos também possam ser sentidos em outros lugares, algum dia.
"Se você for viajar para Marte e tiver um voo de seis meses através do ambiente interplanetário, você poderá enfrentar muitos eventos do clima espacial", afirma Wild. "A forma de proteger os astronautas é uma questão interplanetária que precisamos começar a estudar."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês).
Fonte: correiobraziliense
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