22 de Novembro de 2024

'Mãe, me perdoe, mas não quero me parecer com você': a história íntima de mulher que cresceu com mãe com esquizofrenia


Amanda tinha apenas quatro anos quando sua mãe saiu de casa e seu pai se encarregou de cuidar dela.

A menina morava em São Paulo. Ela não sabia o que estava acontecendo, mas conseguia deduzir algumas coisas.

Somente anos mais tarde, ela ficaria sabendo que sua mãe, Cecília, sofria de esquizofrenia. E foi justamente um de tantos surtos psicóticos que fez com que ela saísse de casa.

Cecília voltou para casa depois de passar por tratamento, quando Amanda já tinha oito anos de idade. Ela não só recebeu a mãe, como também precisou assumir a responsabilidade de ajudá-la nos momentos mais críticos, durante seu processo de crescimento.

Amanda Marton Ramaciotti hoje é jornalista e editora da revista Anfibia, no Chile, onde mora atualmente. Ela decidiu contar sua história familiar no livro No Quería Parecerme a Ti ("Eu não queria ser parecida com você", em tradução livre), um relato íntimo que conta sua relação com Cecília, além dos preconceitos, mitos e estereótipos existentes em relação à doença.

A obra também inclui informações científicas, entrevistas com especialistas e testemunhos de outras pessoas que também foram afetadas pela esquizofrenia.

Em entrevista à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC), a jornalista chileno-brasileira repassa alguns episódios da sua obra recentemente publicada, aprofunda seus próprios temores e alerta sobre o enorme desconhecimento existente sobre a esquizofrenia no mundo.

BBC News Mundo: Por que você decidiu contar a sua história?

Amanda Marton: O ponto de partida foi aos 20 anos, quando descobri que, por ser filha da minha mãe, havia 13% de probabilidade que eu também tivesse esquizofrenia.

E, segundo todos os estudos, se não se manifestasse nenhum surto psicótico até que eu completasse 30 anos, a possibilidade de que isso ocorresse posteriormente seria muito baixa, de 1%, quase no mesmo nível do restante da população.

Foi ali que, sem querer, fiquei obcecada pelo tema. Comecei a ler muito sobre saúde mental, de diferentes pontos de vista – científico, literário e artístico.

Quando estava perto de completar 30 anos, comecei a me sentir hipócrita. Por ser jornalista, eu acredito no poder das histórias e observo o impacto positivo que gera sua publicação. E me sentia hipócrita quando contava histórias de vida de outras pessoas, mas não a minha própria.

Ali comecei a me motivar a escrever. Durante o processo, percebi que eu estava errada em muitas coisas, que queria derrubar certos tabus, mas eu mesma tinha vários tabus.

BBC: No livro, você diz: "Quero fazer e dizer todo o necessário antes dos 30, para se, por acaso, minha mente falhar, se acontecer algo." Como você viveu esses anos de incerteza?

Marton: Entrei em um frenesi muito grande antes dos 30 porque, se eu sofresse um surto psicótico, seria muito difícil ser uma jornalista confiável.

Trabalhei em diversos lugares ao mesmo tempo, queria fazer de tudo, lia compulsivamente. Eu diria que agi até de forma perturbada, no afã de não ter, entre aspas, a "loucura".

BBC: Agora, você tem 31 anos, ou seja, já passou do limite de idade dos estudos...

Marton: Devo confessar que, quando completei 30 anos, inicialmente tive uma sensação de vazio.

É como acontece quando alguém passa por um conflito muito significativo e esse conflito deixa de existir. É claro que existe um alívio, mas também uma sensação de vazio, de perguntar "e agora?".

Mas aquilo me permite viver mais leve, já que a esquizofrenia sempre será um elemento central na minha vida, mas não quero que seja o principal da minha vida.

Quando penso na minha mãe, não quero pensar sempre nela como uma mulher com esquizofrenia. Minha mãe é muito mais do que isso.

BBC: Vamos à história da sua mãe. Como tudo começou?

Marton: Eu realmente acreditava que o primeiro surto psicótico da minha mãe havia ocorrido quando eu tinha quatro anos e que, por isso, ela havia saído de casa.

Como era criança, eu percebia que algo ia mal porque recebia cartas da minha mãe perguntando pelas minhas irmãs, mas eu não tenho outras irmãs... Eu me lembro disso como a primeira quebra da ingenuidade na minha infância.

Depois, conduzindo a pesquisa familiar para o meu livro, percebi que os surtos haviam começado muito antes. Mais do que isso: o primeiro surto aconteceu quando ela estava grávida de mim.

Saber disso foi muito difícil porque achei que, talvez, tudo pudesse ter começado no processo da gravidez e, então, a culpada teria sido eu... não sei... é um mistério.

Também foi muito doloroso perceber os tabus que existiam na minha família e a pouca informação que eles tinham... não sabiam como agir. Isso reforça novamente a ideia de escrever esta história, pois é a única forma de aprender e derrubar mitos.

BBC: Em qual momento vocês souberam que Cecília tinha esquizofrenia?

Marton: Primeiramente, os médicos disseram que poderia ser um caso de depressão, depois que poderia ser um surto psicótico qualquer, relacionado à bipolaridade.

Meu pai comentou que ela chegou a ser tratada com lítio, mas o lítio não é usado para esquizofrenia.

Minha mãe só teve seu primeiro diagnóstico quando eu tinha quatro anos e a internaram. Isso trouxe consequências em nível interno e familiar.

BBC: Você tinha quatro anos quando sua mãe saiu de casa. Que lembranças você tem daquele momento?

Marton: Antes que ela saísse, houve momentos em que eu me afastava dela. Eu não permitia, por exemplo, que ela se aconchegasse comigo na cama. Acho que eu percebia que algo não estava bem.

Lembro que havia uma espécie de cheiro de doença, uma mistura de cigarro, seu perfume, o creme que ela sempre usou e também um cheiro de poucos cuidados. Quando uma pessoa está em um surto psicótico, ela tende a não cuidar de si própria.

E sinto que este é o odor que tenho fresco na memória.

Eu me lembro muito bem do dia em que ela foi embora. Ela se aproximou de mim, se abaixou até a minha altura e disse: "Vou ver sua vovozinha."

Eu pedi que ela me esperasse, corri até o meu quarto, peguei alguns lápis e um lenço e entreguei para ela. Ela então saiu e não voltou mais.

Vários anos depois, antes que voltasse para casa, ela me devolveu esse lenço pintado.

BBC: No livro, você diz: "Às vezes, acho que nem eu, nem meu pai, existimos plenamente entre 1997 e 2001", que foram os anos em que a sua mãe não estava em casa. Por quê?

Marton: Nem eu, nem meu pai nos lembramos de que eu tenha perguntado por ela durante esse período. Acho que, em algum nível, eu tinha consciência de que não precisava perguntar porque algo estava acontecendo.

Nós prosseguíamos, claro, mas sempre estava a presença ausente da minha mãe.

Lembro que, no colégio, eles me mandavam preparar presentes para o Dia das Mães. Era imensamente doloroso. Isso certamente acontece com milhões de crianças, em situações muito diferentes...

Realmente, sinto que não existimos plenamente, porque vivemos sempre com essa sombra da ausência da minha mãe. Também não há fotos desses anos. É um borrão na nossa história.

BBC: Durante esse período, você podia vê-la?

Marton: Às vezes, minha mãe aparecia, mas meu pai havia trocado a chave de casa. Isso gerava discussões.

Ela não estava bem naquele momento, mas sempre encontrava formas de se comunicar. Ela me mandava cartas em latas de cerveja ou guaraná e me atirava pela janela.

Eu sabia que não precisava mostrar aquilo para ninguém. Então, eu as guardava e lia quando meu pai não estivesse em casa.

Aquilo chegou a tal ponto que meus avós foram à justiça, dizendo que minha mãe precisava me ver. Eles então fizeram um acordo nos tribunais para que eu pudesse ir vê-la na casa dos meus avós de tempos em tempos.

BBC: No livro, você menciona alguns psiquiatras e psicólogos, que comentam como a ausência da mãe afeta as crianças. E muitos dizem que aquilo causa um efeito devastador sobre a personalidade. Como você foi afetada?

Marton: Até hoje, não consigo decifrar tudo. É uma dúvida que tenho pendente.

Uma estudante de psicologia me disse que tem a sensação de que eu queria ser a filha perfeita, que nunca queria estar errada, porque já havia muitas coisas acontecendo na minha família.

Para mim, faz sentido. De fato, eu era muito aplicada nos estudos e sempre tive bolsa porque me saía muito bem. Havia uma busca do perfeccionismo para diminuir todo o caos que havia ao meu redor.

BBC: Como foi o momento em que a sua mãe voltou? Foi muito difícil esse retorno?

Marton: Existe uma data que ficou gravada na minha memória para toda a vida: 31 de julho de 2001.

Foi o dia em que a minha mãe voltou para casa. Eu fiquei com aquilo na mente.

Descobri que mencionei aquele dia nos meus diários de criança e minhas amigas de infância me dizem que eu não parava de repetir que minha mãe ia chegar.

Também me lembro de ter essa sensação de criança, de me sentir um pouco culpada por ela ter saído e de não querer que ela fosse embora outra vez.

Para meu pai, também foi difícil. Voltar a encarar uma vida, uma esposa, depois de quatro anos. Ele tinha muito medo.

Minha mãe, por exemplo, não podia assar para mim um bolo de chocolate que só ela sabia fazer porque meu pai não confiava, não sabia se ela estava bem.

Houve então um processo de reacomodação familiar, de recuperar a confiança. E também de aprender a nos conhecermos.

Porque uma filha de quatro anos é diferente de uma filha de oito. Eu precisei apresentar minha mãe a grande parte dos meus amigos que não a conheciam.

BBC: Você comenta no livro que precisou lidar com um surto psicótico da sua mãe pela primeira vez, sozinha, em 2013, quando tinha 20 anos. Foi muito difícil para você controlar aquela situação?

Marton: A crise de 2013 foi muito, muito dolorosa.

Foi um momento de inflexão. Minha mãe havia estado bem, mas, quando cheguei ao Brasil para vê-la nas férias de verão, percebi que algo andava mal.

Até que, na noite de Natal, ela perguntou pelas minhas irmãs e me lembrei do grande trauma da minha infância – porque, quando eu tinha quatro anos, percebi que algo não ia bem com a minha mãe, justamente porque ela me perguntava por irmãs que não existiam.

Decidi levá-la ao hospital, embora ela estivesse muito desconfortável com a situação.

Aquela foi a primeira vez em que ouvi uma pessoa dizer que minha mãe tinha esquizofrenia. Até então, nunca haviam me dito a palavra diretamente.

E lembro que a médica me disse que precisaria interná-la e eu não quis. Preferi me encarregar dela.

BBC: Frente à possibilidade de que você desenvolvesse esquizofrenia como sua mãe, você conta no livro que não tinha medo dos efeitos mentais da esquizofrenia, nem das terapias de choque. O que, então, assustava você?

Marton: Os preconceitos, andar pela vida sentindo que existem preconceitos contra a sua pessoa.

Minha mãe perdeu amizades por ter surtos psicóticos, porque elas não a entendiam. Ser tratada com condescendência é algo que me irrita.

E não é necessariamente porque eu me importe demais com o que as pessoas pensam, é porque isso traz consequências diretas ao nosso dia a dia, não ter trabalho, amizades ou não poder se desenvolver em diferentes setores.

Neste sentido, acredito que minha mãe é muito valente, muito forte, muito resiliente. Não sei se eu conseguiria.

E também me dava medo ser um peso para o meu marido e para os meus pais. Fazê-los sofrer por isto.

E, por fim, a maternidade. Eu não teria filhos – e esta é uma decisão totalmente pessoal – se tivesse desenvolvido esquizofrenia. Era uma decisão que, para mim, estava definida porque não queria que um filho meu passasse por algo parecido com o que eu precisei viver.

BBC: Você acredita que exista desconhecimento do mundo sobre esta doença?

Marton: Sim, muito. E é outra razão por que tomei a decisão de escrever o livro.

Fico desesperada quando as pessoas usam o termo "esquizofrênico" para caracterizar uma pessoa ou uma situação. Porque potencializa demais os estereótipos.

Acredita-se, por exemplo, que as pessoas com esquizofrenia podem ser violentas. Não é verdade. Nem todas as pessoas são.

Todos os estudos científicos demonstram que, mais do que serem violentas, elas sofrem muita violência devido à sua condição.

Eu adoraria se chegássemos ao ponto em que as pessoas com esquizofrenia pudessem dizer isso sem serem julgadas, abandonadas ou rejeitadas pela sociedade, mas ainda vejo que isso está longe.

Dizia-se antigamente que 1% da população mundial sofria de esquizofrenia. Agora, a Organização Mundial da Saúde (OMS) atualizou o número e diz que uma em cada 300 pessoas sofre de esquizofrenia em todo o mundo.

São quase 25 milhões de pessoas, o que é muita gente. Se temos um número como este, por que não falamos mais sobre a esquizofrenia?

Sinto que existem muitos preconceitos que ainda precisam ser derrubados.

BBC: Na última frase do livro, você diz que não tem mais medo de se parecer com a sua mãe...

Marton: Eu não queria ser parecida com a minha mãe em muitas coisas. Mas, no processo de pesquisa e ao conhecer a sua história, percebi que existem muitos pontos em que somos parecidas.

Eu adoraria me parecer mais com ela em muitas outras coisas. Ela é uma mulher mais paciente, de menos confrontos.

Eu gostaria de ter a sua doçura.

Fonte: correiobraziliense

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