A escravidão não é um problema do passado. Embora a Lei Áurea, sancionada em 1888, tenha teoricamente abolido o trabalho escravo no Brasil, a realidade é que condições análogas à escravidão ainda persistem. Apesar das esperanças depositadas nas leis e da veemente condenação expressa na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o país continua apresentando números absurdos. A dificuldade em erradicar o trabalho escravo se deve, em parte, à vasta extensão territorial do país e às tentativas de sobrevivência em um cenário de alto desemprego.
Luís Henrique, 30 anos, atualmente agente fiscal de direitos humanos, viveu um pesadelo em 2023, quando foi recrutado pela empresa terceirizada Fênix para trabalhar na safra da uva em vinícolas do Rio Grande do Sul. Natural da Bahia, Luís aceitou a proposta de imediato, buscando uma solução para a falta de oportunidades em sua cidade natal.
"Eu aceitei porque não tinha outra opção de trabalho", explica Luis, recordando as promessas feitas pela empresa. "Eles disseram que ganharíamos R$ 4 mil por 60 dias de trabalho. Mandaram fotos de um alojamento que parecia novo e bem equipado, mas a realidade era outra."
Ao chegar em Bento Gonçalves, município no Rio Grande do Sul, a verdade se revelou. "O lugar era terrível, cheio de infiltrações, quartos velhos e sujos. Parecia um presídio. Trabalhávamos das seis da manhã até às nove da noite, sem receber nada até o dia do resgate". Eles trabalharam por 45 dias.
As condições de trabalho eram tão precárias que muitos trabalhadores tentaram fugir. "Eu sabia que estava em uma situação de escravidão, mas fiquei na esperança de receber o dinheiro prometido", diz Luis, que testemunhou espancamentos e agressões sofridas por colegas. "Eu não falava sobre querer ir embora porque poderíamos sofrer agressões físicas. A maioria dos trabalhadores era espancada, sofriam agressões gravíssimas. Nos xingavam. Por mais que as nossas famílias soubessem o que estava acontecendo, pois mantemos contato por celular, eles não tinham condições de enviar dinheiro para nos ajudar a comprar uma passagem."
O resgate só aconteceu após uma denúncia feita por três trabalhadores, o que resultou em represálias violentas por parte dos encarregados. "Fomos resgatados e passamos quatro dias no ginásio da cidade recebendo apoio", conta Luis, que, posteriormente, recebeu as verbas rescisórias e parte da indenização.
Histórias como essa são mais frequentes do que se imagina. Em 2023, foram resgatados 3.191 trabalhadores em condições análogas à escravidão em diversos setores, incluindo a cafeicultura, vinícolas, pecuária, lavouras de cana-de-açúcar, construção e indústria têxtil no Brasil. Desses, 302 estavam em lavouras de café. Esse é o maior número de resgatados registrado nos últimos 10 anos, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
O coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) regional Pará, Francisco Alan, destaca a vulnerabilidade socioeconômica como um fator-chave. "A denúncia é a porta de entrada para que os mecanismos de repressão possam atuar na identificação. Em sua grande maioria, os trabalhadores resgatados são migrantes de idade entre 18 a 60 anos, com educação regular incompleta e com alguma dificuldade socioeconômica. Essa condição é uma das dificuldades que levam muitos deles a migrar de forma forçada e ficarem vulneráveis às redes de aliciamento para a escravidão."
Uma vez constatado o trabalho escravo, é realizado o resgate das vítimas pela Auditoria Fiscal do Trabalho, que consiste na rescisão do vínculo de emprego e no afastamento do trabalhador do local de violação de direitos. As vítimas resgatadas têm direito à assistência médica, psicológica, social e trabalhista.
Em abril, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) atualizou o Cadastro de Empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão, conhecido como a "Lista Suja". Essa atualização inclui 248 empregadores, o maior número de inclusões já registrado. Dentre esses, 43 empregadores foram listados por práticas de trabalho escravo no âmbito doméstico. O Correio entrou em contato com o MTE, que não se pronunciou até a última atualização desta reportagem.
* Estagiária sob supervisão de Carlos Alexandre de Souza
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