Quase todos nós já passamos por isso. Não faltam casos de passageiros que ficaram presos por horas dentro de um trem enguiçado ou confinados em um aeroporto por causa de um "apagão" tecnológico.
Pense, então, na situação dos astronautas Sunita Williams e Butch Wilmore da Nasa, a agência espacial americana, que embarcaram para uma missão de oito dias, e estão agora há mais de dois meses "presos" na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). Acredita-se que a espaçonave que os levou até lá — a Starliner, da Boeing — pode não ser capaz de trazê-los de volta à Terra em segurança.
Em entrevista coletiva na semana passada (7/8), funcionários da Nasa detalharam os problemas que afetaram os componentes de vários propulsores da Starliner.
Houve vazamentos em seu sistema de propulsão, e alguns propulsores desligaram.
Apesar de exaustivos testes em solo, os engenheiros ainda precisam entender a física por trás do problema.
Enquanto isso, os testes em órbita mostram que, no espaço, os propulsores agora estão funcionando bem, aumentando ainda mais a incerteza.
Até que os engenheiros tenham confiança no sistema de propulsão, voltar para casa a bordo da Starliner parece cada vez mais improvável. Embora nenhuma decisão final tenha sido tomada, um cenário possível é enviar a espaçonave de volta à Terra, autonomamente, sem os astronautas.
"Nossas chances de trazer de volta a Starliner sem tripulação aumentaram um pouco com base na forma como as coisas se desenrolaram na última, ou nas duas últimas, semanas", admitiu Ken Bowersox, diretor de operações espaciais da Nasa.
"Sabemos que em algum momento precisamos trazer Butch e Suni para casa."
Mas isso pode não acontecer tão cedo. Se a Starliner voltar vazia, a Nasa planeja enviar uma espaçonave Crew Dragon, da SpaceX , de quatro lugares com apenas dois astronautas a bordo. Williams e Wilmore permaneceriam na estação até fevereiro de 2025, e retornariam com eles.
Como os outros quatro astronautas da Nasa na ISS devem retornar à Terra em setembro, restaria a quantidade padrão de quatro astronautas e três cosmonautas russos (um total de sete) na estação espacial.
"Enquanto eles estão lá em cima, temos ajuda extra, eles podem trabalhar muito mais, mas também estão usando mais materiais de consumo, mais suprimentos", explicou Bowersox.
"Em algum momento, precisamos voltar ao tamanho normal de tripulação."
Há, no entanto, lugares piores para ficar preso. "A estação espacial tem agora, na verdade, sete quartos e três banheiros", contou o astronauta da Nasa Victor Glover, que passou seis meses na ISS em 2020-2021, ao podcast Space Boffins, pouco antes do lançamento da Starliner em junho.
A água é abundante, e uma missão de reabastecimento recente significa que também há comida mais do que suficiente. E, embora possa estar um pouco cheio lá dentro, a vista das janelas para a Terra é realmente hipnotizante.
A astronauta Nicole Stott me disse uma vez que sempre que olhava para o nosso planeta, precisava colocar um despertador para se lembrar de voltar ao trabalho.
"Os astronautas estão felizes lá em cima", afirmou Ken Kremer, fundador e editor do site de notícias espaciais SpaceUpClose, que cobre lançamentos de sua base na Flórida.
"Muitas pessoas acham que eles estão 'presos', mas não estão."
"Não quero minimizar os problemas, mas esta nunca deveria ter sido uma missão de oito dias", observou Kremer.
"Ambos já fizeram missões de seis meses antes, deveriam ter sido designados para uma missão mais longa."
A maioria de nós pode ficar irritado ou frustrado com um trem cancelado ou um voo atrasado no aeroporto, mas os astronautas são altamente capacitados — e estão preparados para quase todas as contingências.
"Somos profissionais que correm riscos", diz Glover.
"Fazemos o melhor para mitigar esses riscos, mas ir ao espaço não é livre de riscos."
Williams e Wilmore são dois dos astronautas mais experientes da Nasa, e os organizadores da missão têm trabalhado para tirar o melhor proveito da situação, integrando-os à programação diária e usando a experiência deles para realizar testes na Starliner.
Os astronautas também ajudam a fazer manutenção da estação, consertar trajes espaciais e realizar experimentos científicos. Eles chegaram, inclusive, a celebrar os Jogos de Paris 2024, praticando esportes no espaço.
"Eles são grandes membros da tripulação, grandes astronautas, grandes pilotos da Starliner", disse Dana Weigel, gerente do programa da Estação Espacial Internacional, no início deste mês.
"Sempre temos um plano B.. eles foram totalmente treinados [para os experimentos científicos da ISS], e estão preparados para qualquer caminho que a gente decida seguir."
Além de conduzir experimentos científicos, os astronautas foram rapidamente encarregados de tarefas domésticas — como organizar cargas, separar suprimentos de alimentos e limpar a fundo as prateleiras de equipamentos — devido à familiaridade prévia com a estação espacial e seu funcionamento interno. Suas habilidades avançadas de encanador em microgravidade também foram requisitadas.
Normalmente, o suor e a urina dos astronautas são reciclados em água potável na estação espacial, mas uma falha recente fez com que a tripulação tivesse que armazenar urina, o que não é o ideal em um ambiente já apertado com dois tripulantes extras.
Com peças de reposição que foram levadas com eles — e equipamentos adicionais que chegaram na recente missão de suprimentos —, Williams e Wilmore têm se esforçado para consertar o sistema.
Isso diz muito sobre o sucesso da estação espacial e o profissionalismo de todos que trabalham nas missões, já que dramas como esse são raros.
É fácil esquecer que, desde novembro de 2000, sempre houve pessoas vivendo e trabalhando no espaço. Mas a situação não é sem precedentes — e poderia ser muito pior.
Quando o cosmonauta soviético Sergei Krikalev viajou para a estação espacial Mir em maio de 1991, ele estava prevendo passar alguns meses em órbita.
As primeiras semanas da missão correram conforme o planejado — e incluíram o voo da primeira astronauta britânica, Helen Sharman. Enquanto isso, em solo, o país ao qual Krikalev pertencia estava começando a entrar em colapso.
Em agosto, tanques ocupavam as ruas de Moscou, enquanto comunistas da ala mais radical tentavam dar um golpe contra o líder soviético Mikhail Gorbachev.
"Minha esposa trabalhava no controle da missão, e eles estavam preocupados com a gente, e nós estávamos preocupados com eles — uma espécie de preocupação mútua", Krikalev me disse, quando o conheci em Moscou em 2019.
"Ouvimos falar sobre toda essa turbulência em solo, toda essa instabilidade — e, claro, estávamos preocupados com nossos amigos, nossos parentes, nossos pais."
Quatro meses depois, a União Soviética entrou em colapso completamente e, embora as espaçonaves de suprimentos continuassem sendo lançadas, havia uma certa dúvida sobre quando Krikalev e seu colega, Aleksandr Volkov, poderiam retornar à Terra.
A base soviética de pouso e lançamento estava agora no Cazaquistão, país recém-independente, o que significava que o governo russo tinha que negociar um acordo para manter seu programa espacial.
"Ouvi todas as histórias de que havíamos sido esquecidos na estação", Krikalev me disse.
"Claro que não era verdade, porque todos os dias tínhamos comunicação com o solo, tínhamos um voo programado para entregar tudo, experimentos e dados necessários, comida e água. Tudo estava chegando até nós basicamente dentro do cronograma."
Após deixar a União Soviética, e passar quase um ano em órbita, o cosmonauta finalmente voltou ao seu (novo) país natal, a Rússia. Ele se tornaria o primeiro russo a voar no Ônibus Espacial, e estava entre os primeiros tripulantes a viver na ISS.
O que está claro em relação à situação mais recente é que ninguém está em pânico, enquanto as evidências sobre a situação da Starliner estão sendo coletadas.
A decisão final da Nasa sobre trazer de volta a espaçonave com ou sem tripulação ainda deve demorar algumas semanas.
Mas mesmo que Williams e Wilmore consigam retornar em setembro, é quase certo que situações semelhantes vão acontecer no futuro — principalmente à medida que as espaçonaves se tornam mais sofisticadas, e as missões vão para a Lua e além.
No ano que vem, Victor Glover vai pilotar a Artemis 2, a primeira missão a deixar a órbita da Terra desde 1972.
"Estaríamos fazendo um desserviço à nossa profissão e ao público se fizéssemos parecer que o que fazemos é rotina", observou Glover.
"Quando embarcarmos na décima missão Starliner, será igualmente complicado e complexo."
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
Fonte: correiobraziliense
Utilizamos cookies próprios e de terceiros para o correto funcionamento e visualização do site pelo utilizador, bem como para a recolha de estatísticas sobre a sua utilização.