Um vazamento de conversas privadas entre assessores do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Alexandre de Moraes levantou questionamentos sobre a legalidade e a imparcialidade de sua atuação em inquéritos criminais envolvendo políticos e aliados do campo bolsonarista.
As mensagens mostram que o ministro teria determinado a produção de relatórios pelo TSE contra os investigados, fora dos ritos processuais, e orientado o conteúdo dos mesmos.
Após as reportagens, Moraes disse, por meio de nota, que a solicitação de informações a outros órgãos, inclusive o TSE, é normal, e que a Corte eleitoral tem “poder de polícia” e "competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas".
O caso, revelado pelo jornal Folha de S.Paulo na terça-feira (14/8), provocou comparações com o episódio da Vaza Jato, em que a divulgação de mensagens privadas trocadas entre o então juiz Sergio Moro (hoje senador pelo União Brasil) e o então procurador e chefe da força tarefa da operação Lava Jato Deltan Dallagnol mostrou uma suposta comunicação ilegal entre magistrado e Ministério Público.
Essas conversas, reveladas pelo portal The Intercept Brasil em 2019, contribuíram para minar a legitimidade da Lava Jato e anular processos da operação, inclusive as condenações contra o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após o STF considerar Moro parcial para julgá-lo.
Teria o novo vazamento o potencial de criar reviravolta semelhante nos rumorosos inquéritos que tramitam, ao menos desde 2019, no gabinete de Moraes?
Acadêmicos do direito ouvidos pela BBC News Brasil têm diferentes visões sobre as condutas reveladas até o momento – e as possíveis consequências desses atos.
Enquanto alguns não veem ilegalidades na atuação de Moares e pontuam que as mensagens não revelam conluio com o Ministério Público, como na Vaza Jato, outros avaliam que ambos os juízes agiram fora dos limites legais e pareciam atuar de forma parcial, buscando um resultado previamente definido. Entenda melhor essas visões ao longo da reportagem.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, mensagens de WhatsApp entre assessores de Moraes em seu gabinete no STF e em um órgão do TSE, na época presidido por ele, indicam que o ministro solicitou informalmente relatórios sobre investigados nos inquéritos das fake news e das milícias digitais.
A maior parte das mensagens foi trocada por Airton Vieira, juiz instrutor dos inquéritos no STF, e Eduardo Tagliaferro, então chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE (AEED). Tagliaferro foi exonerado em maio de 2023 após ser preso e acusado por violência doméstica contra a esposa.
As conversas teriam ocorrido entre agosto de 2022 e maio de 2023 — ou seja, durante e depois da campanha eleitoral que levou à vitória de Lula e à derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
O jornal diz ter em mãos 6 gigabytes de mensagens e arquivos trocados por meio do WhatsApp e garante que não obteve o material por meio de hackers ou interceptação ilegal.
Algumas mensagens reveladas mostram, por exemplo, que Moraes e assessores pediram a produção de um relatório sobre o economista Rodrigo Constantino, apoiador de Bolsonaro, a partir de publicações dele nas redes sociais.
Em novembro de 2022, Airton Vieira encaminhou para Eduardo Tagliaferro uma captura de tela de conversa com Moraes na qual o ministro pediria: "Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse [Constantino] para vermos se dá para bloquear e prever multa".
Vieira pede para Tagliaferro “caprichar” no relatório.
Segundo o jornal, em nenhum dos casos havia a formalização de que os relatórios do TSE teriam sido produzidos a pedido de Moraes ou do STF.
No caso de Constantino, uma decisão do início de janeiro de 2023 ordenou a quebra de sigilo bancário do investigado, bem como o cancelamento de seus passaportes, bloqueio de suas redes sociais e intimações para que fosse ouvido pela Polícia Federal.
Essa decisão mencionava "ofício encaminhado pela Assessoria Especial de Desinformação Núcleo de Inteligência do Tribunal Superior Eleitoral", sem esclarecer que o pedido partira do gabinete do ministro no STF.
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil pontuam uma diferença clara entre a Vaza Jato e o vazamento envolvendo Moraes. No primeiro caso, foi revelada uma suposta relação ilegal entre juiz e Ministério Público, órgãos que devem atuar de forma independente, segundo as leis brasileiras.
As conversas sugeriam que Moro dava orientações à força-tarefa da Lava Jato, buscando produzir provas contra os investigados que ele depois julgaria — algo que ambos sempre negaram.
Já no caso de Moraes a comunicação ocorreu entre órgãos de duas Cortes judiciais. Os especialistas, porém, divergem sobre se essa conduta também seria ilegal.
Para Fernando Neisser, professor da FGV e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), não há qualquer ilegalidade na atuação de Moraes porque ele teria solicitado a produção de relatórios a partir de conteúdos públicos, divulgados nas redes sociais.
"Quando se fala que provas foram produzidas e encaminhadas [pelo TSE] ao STF, isso é uma meia verdade, para não falar em inverdade. Prova é um elemento de informação que passa pelo crivo do contraditório e é analisado por um Tribunal. O que foi feito foram relatórios analisando as páginas, quantos seguidores tinham, os compartilhamentos", afirma.
"Não foi uma operação de busca e apreensão na casa de alguém, usando poder de polícia eleitoral, que aprendeu um computador e mandou para o Supremo de forma irregular", reforça.
Além disso, Neisser não vê problema numa comunicação informal entre os assessores por WhatsApp se houve, previamente, um ofício formal do STF pedindo a colaboração do órgão do TSE nas investigações, como indica a nota divulgada por Moraes após as reportagens.
"Não há qualquer paralelo com a Vaza Jato. Ali, a crítica era de uma relação entre magistratura e Ministério Público, órgãos que, pela Constituição, não podem estar aliados. Aqui, formalmente a AEED [órgão do TSE] está prestando um serviço de colaboração. É um órgão do judiciário colaborando com o judiciário", argumenta.
O professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua tem uma visão diferente.
Na sua leitura, a atuação revelada nas conversas seria ilegal por dois motivos: por ter ocorrido informalmente, fora do rito processual; e, também, devido ao conteúdo dos pedidos.
De acordo com as mensagens vazadas, ressalta ele, Moraes teria dado orientações expressas sobre os como os relatórios deveriam ser produzidos, inclusive pedindo alterações.
"Segundo o jornal, teve caso em que o juiz auxiliar disse que o ministro pediu que o órgão do TSE encontrasse alguma postagem, sobre golpe ou [contestações falsas do resultado da] eleição, porque o ministro queria derrubar um canal. Então, o ministro parece estar não só pedindo análises de informações, mas conteúdos específicos e conclusões pré-concebidas", ressalta.
"Teria que retirar esses relatórios do inquérito das fake news, pois são provas ilícitas, além de possivelmente gerar suspeição do ministro Alexandre de Moraes", acredita.
Na visão de Pádua, a "principal semelhança" entre a Vaza Jato e os vazamentos envolvendo os assessores de Moares é que, nos dois casos, as mensagens indicam que os juízes "pareciam estar muito interessados no resultado dos processos".
"[Os dois] pareciam ter um resultado preferido que, de alguma maneira, tentavam fomentar", reforça.
Na sua visão, o fato de as conversas entre os assessores de Moraes não envolverem o Ministério Público — como na Lava Jato — pode gerar diferentes leituras.
"Por um lado, suaviza um pouco a gravidade da ilegalidade porque não mostra um acerto entre duas instituições que têm que atuar separadas", analisa.
"Por outro lado, isso mostra o quanto as funções estavam todas concentradas no ministro Alexandre de Moraes, que ele nem precisava mobilizar a acusação e a polícia. Ele mesmo pedia relatórios para embasar decisões que ele já queria tomar", afirma.
Para Pádua, é natural que os advogados dos investigados no inquérito questionem a legalidade das provas e a imparcialidade de Moraes, a partir do vazamento das mensagens. Se isso ocorrer, caberá ao plenário do STF julgar esses recursos.
Até o momento, a maioria da Corte tem apoiado a conduta de Moraes nos inquéritos e referendado suas decisões. Nesta quarta-feira (14/8), o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, e os ministros Gilmar Mendes e Flávio Dino deram declarações públicas defendendo o ministro.
"Todas as informações que foram solicitadas pelo ministro Alexandre de Moraes referiam-se a pessoas que já estavam sendo investigadas. Informações voltadas a obtenção de dados referentes a condutas de reiteração de ataques à democracia e de ataques de ódio", afirmou Barroso, ao iniciar a sessão de julgamento do Supremo.
"Não houve aqui nenhum tipo de investigação de natureza policial ou investigação que dependesse sequer de reserva judicial. Era acompanhamento de dados, informações, notícias em redes sociais para investigar se ali havia alguma conduta criminosa ou que estava sendo investigada no âmbito de inquéritos no STF", continuou o presidente do STF.
Moraes também se manifestou durante a sessão do STF e disse que "nenhuma das matérias preocupa".
Ele afirmou também que todos os relatórios produzidos pelo TSE foram formalmente incorporados aos inquéritos, com a ciência da Procuradoria-Geral da República e dos investigados.
Moraes defendeu, ainda, que tinha poder legal de solicitar investigações ao TSE quando era presidente da Corte eleitoral.
"Seria esquizofrênico, como presidente do TSE, me auto-oficiar. Como presidente, tenho poder de polícia e posso, pela lei, determinar a feitura dos relatórios", argumentou o ministro.
O ministro disse ainda que não acionou a Polícia Federal porque a instituição não estaria colaborando com as investigações.
"Obviamente, o caminho mais eficiente da investigação naquele momento era solicitação ao TSE, uma vez que a Polícia Federal, lamentavelmente, num determinado momento, pouco colaborava com as investigações", disse.
O uso do poder de polícia mencionado por Moraes também gera controvérsia.
Esse poder, previsto no artigo 41 da Lei Eleitoral, permite que juízes eleitorais atuem de ofício (sem serem provocados por uma das partes) para cessar ilegalidades no âmbito do processo eleitoral.
No entanto, para o advogado Horácio Neiva, professor do Instituto de Ensino Superior (iCEV), esse poder de polícia está restrito a ilegalidades envolvendo propaganda eleitoral — conceito que, na jurisprudência da Justiça Eleitoral, foi alargado para incluir a disseminação de desinformação no contexto eleitoral.
"O TSE não é um órgão de investigação. A omissão da PF não pode ser suprida por um órgão do Tribunal. Tanto é que, em casos de crimes eleitorais, o inquérito é conduzido pela PF, e não pela própria Justiça Eleitoral", disse à BBC News Brasil.
"Entendo que o Moraes, como presidente do TSE, poderia de ofício mandar apagar um conteúdo de propaganda ilegal, mas não bloquear uma conta", acrescentou.
Embora Neiva questione as condutas reveladas nas mensagens obtidas pela Folha de S.Paulo, o professor não vê, até o momento, fatos novos que levem Moraes a ser considerado suspeito.
"O STF já vinha ratificando decisões do Moraes, autorizando a atuação de ofício dele em muitos casos, diante da omissão do Procurador-Geral da República", ressalta.
Por outro lado, Neiva acredita que o desgaste causado pelo vazamento das conversas pode contribuir para que os inquéritos que tramitam há anos com Moraes tenham algum tipo de desfecho.
Na sua avaliação, é justamente o escopo muito amplo dessas investigações que levou a um choque de atribuições entre a atuação de Moraes no STF e no TSE.
Para o professor, é preciso que o Supremo remeta para a primeira instância as investigações contra pessoas sem foro por prerrogativa de função. E, nos demais casos, a PGR deveria concluir os inquéritos e decidir os que devem gerar denúncias criminais e os que devem ser arquivados, defende.
"O que não dá para acontecer é que esses inquéritos sejam mantidos, com objeto de investigação tão amplo, indefinidamente", critica.
Neiva lembra que, assim como ocorre com Moraes, a concentração controversa de muitas investigações na vara do ex-juiz Moro foi um dos fatores que gerou desgaste à Lava Jato.
No caso daquela operação, o questionamento sobre a competência de Moro para julgar processos criminais de diferentes partes do país foi o primeiro argumento que levou à retirada de casos de sua vara e à anulação de decisões.
Fonte: correiobraziliense
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