Antes da eleição venezuelana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse ter ficado assustado com declarações de seu antigo aliado, o presidente Nicolás Maduro, sobre um eventual banho de sangue no país caso não vencesse a disputa.
A resposta veio em seguida. Do alto de um palanque às vésperas do pleito, Maduro mandou um recado ríspido para Lula: "A quem se assustou, que tome chá de camomila".
Três semanas depois, outro antigo aliado na região, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, expulsou o embaixador brasileiro no país, em um movimento considerado drástico no mundo diplomático após meses em que o governo brasileiro manteve "congeladas" as relações com o país da América Central.
A proximidade dos dois eventos chamou atenção para um movimento identificado por especialistas em relações internacionais e diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado.
De forma cautelosa, Lula estaria se distanciando de alguns antigos parceiros na América Latina.
Além de Maduro e Ortega, também faria parte desse grupo o ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, com quem Lula sempre manteve proximidade.
Mas o que estaria levando Lula a adotar essa estratégia em seu terceiro mandato?
Analistas e diplomatas ouvidos pela reportagem avaliam que isso seria resultado de uma combinação de dois fatores principais.
De um lado, a dinâmica política brasileira teria obrigado o governo e o presidente a recalibrarem a proximidade com estes três países e seus líderes.
Venezuela e Nicarágua, por exemplo, vivem crises políticas prolongadas, e seus presidentes são acusados de agir como ditadores, não respeitar direitos humanos e perseguir opositores.
De outro lado, a polarização política no Brasil teria aumentado os custos políticos para que Lula mantenha um discurso público de alinhamento em relação ao trio formado por líderes de esquerda e contra os quais pairam, em maior ou menor grau, alegações de desrespeito a princípios democráticos.
Lula assumiu seu terceiro mandato com uma meta clara e pública em relação à Venezuela: restabelecer a normalidade das relações entre os dois países e ajudar o país caribenho a retomar o diálogo com o resto do mundo em meio a severas críticas de organismo internacionais e da oposição venezuelana sobre o caráter autoritário do regime de Maduro.
O petista mandou reabrir a embaixada brasileira em Caracas, desativada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), nomeou uma nova embaixadora e recebeu Maduro em Brasília com honras de chefe de Estado durante uma cúpula de líderes da América do Sul, em maio do ano passado.
Na ocasião, foi criticado por afirmar que as alegações de que o regime de Maduro é autoritário eram, na verdade, parte de uma "narrativa" que deveria ser combatida pelo líder venezuelano.
"Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo", disse Lula a jornalistas.
Apesar do tom amistoso entre os dois em público, nos bastidores o clima no governo brasileiro era de expectativa em relação àquele que era visto como o grande teste de Maduro: as eleições presidenciais neste ano.
Foi assim que, aos poucos, Lula e Maduro começaram a se distanciar, ao menos sob os holofotes.
Em dezembro do ano passado, o governo brasileiro enviou tropas à fronteira com a Venezuela depois que o presidente venezuelano realizou um plebiscito sobre a incorporação da região de Essequibo, hoje controlada pela Guiana, ao território venezuelano.
O movimento foi visto como uma espécie de alerta ante uma possível escalada de tensões então promovida por Maduro.
À época, um diplomata ouvido pela BBC News Brasil afirmou que o governo brasileiro via o assunto como um movimento eleitoreiro, voltado a aglutinar apoio às vésperas da disputa presidencial.
Na ocasião, Lula enviou seu assessor para assuntos internacionais, Celso Amorim, à Venezuela para mediar a crise.
Apesar de contrariado com a possibilidade de uma disputa territorial na região, o governo brasileiro não condenou diretamente a postura venezuelana.
A conduta brasileira, no entanto, começou a mudar mais visivelmente em março passado, depois que as autoridades eleitorais da Venezuela impediram a principal líder da oposição no país, Maria Corina Machado, e sua substituta, Corina Yoris, de disputarem a eleição.
Lula classificou o impedimento como "grave", e o Itamaraty emitiu uma nota afirmando que o país acompanhava o processo eleitoral com preocupação.
A nota e a declaração de Lula foram encaradas como um sinal público de uma mudança na forma como o governo petista vinha lidando com Maduro.
O governo venezuelano rebateu afirmando que a nota brasileira parecia ter sido escrita pelo "Departamento de Estado dos Estados Unidos".
Às vésperas da eleição, Lula voltou a se manifestar em tom crítico ao líder venezuelano por seu alerta sobre um possível "banho de sangue".
"Já falei com o Maduro duas vezes, falei por telefone com o Maduro, e o Maduro sabe que a única chance de a Venezuela voltar à normalidade é ter um processo eleitoral que seja respeitado por todo mundo", disse Lula.
Foi quando Maduro aconselhou o chá de camomila. Mesmo após Maduro levantar dúvidas sobre o sistema eleitoral brasileiro, Lula decidiu enviar Amorim à Venezuela para acompanhar a eleição de 28 de julho.
O resultado das urnas vem sendo contestado desde então. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), controlado pelo governo de Maduro, declarou a vitória do atual presidente.
A oposição, por outro lado, afirma que a vitória foi de Edmundo González, que assumiu a cabeça de chapa da oposição.
O governo dos Estados Unidos reconheceu a vitória da oposição. China e Rússia, por outro lado, reconheceram a vitória de Maduro.
O Brasil, no entanto, preferiu aguardar e pediu, juntamente com Colômbia e México, que as autoridades da Venezuela apresentassem as atas de votação para garantir a lisura do pleito. Até agora, no entanto, nada foi apresentado.
Para Carol Pedroso, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a mudança na postura de Lula em relação a Maduro pode ser explicada, em parte, pela polarização política interna no Brasil.
Segundo ela, à medida que a direita se organizou no Brasil e passou a focar na proximidade de Lula com líderes como Hugo Chávez ou Nicolás Maduro, o custo para manter as relações como eram ficou mais caro.
“A polarização política no Brasil é um dos elementos que complicam qualquer posicionamento em relação à Venezuela”, explica Pedroso.
"Nos dois primeiros mandatos de Lula, as alianças internacionais dele não eram alvo de críticas tão pesadas. Agora, o tema é instrumentalizado pela direita brasileira."
A pesquisadora Stephanie Braun, doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), concorda que "o aumento na polarização política no âmbito doméstico brasileiro, aliada a um incremento na voz da opinião pública sobre temáticas internacionais, acaba pressionando o governo e faz com que as atitudes sejam muito bem pensadas e elaboradas antes de serem colocadas em prática".
"A polarização torna maiores os custos de manter alianças em alguns tabuleiros regionais", diz Braun.
Pedroso afirma que as declarações amistosas de Lula em relação a Maduro no início do terceiro mandato deram a impressão de que o petista não teria se dado conta, àquela altura, das reações negativas que isso causaria agora em contraste com o que aconteceu em seus dois primeiros governos, quando a polarização política seria a seu ver menos intensa.
"Parece que Lula não dava, no início do seu mandato, tanto valor a esse fato (a polarização) e, muitas vezes, falava de improviso e isso gerava muito ruído", afirma Pedroso.
"Algumas declarações de Lula sobre Venezuela impactaram em sua popularidade. Agora, ele parece estar mais atento a isso."
Um exemplo de como a polarização em torno da Venezuela pode ter consequências práticas aconteceu na semana passada.
A Comissão Relações Exteriores do Senado aprovou o convite para que o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e Celso Amorim sejam ouvidos sobre a posição do Brasil em relação ao regime de Maduro.
A comissão tem maioria governista, mas também é composta por alguns dos principais opositores do governo Lula, como a ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina (PP-MS) e o ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS).
Apesar do caráter público das falas de Lula e Maduro, a tensão nas relações entre os dois países não parece ter chegado ao nível do que aconteceu nas últimas semanas entre o Brasil e a Nicarágua.
No início de agosto, a governo de Daniel Ortega expulsou o embaixador brasileiro no país, Breno Dias da Costa.
Um diplomata brasileiro diz à BBC News Brasil em caráter reservado que o motivo oficial da expulsão teria sido o fato de Costa não ter participado da festa de celebração dos 45 anos da Revolução Sandinista.
Este diplomata, no entanto, afirma que o não comparecimento de Costa foi determinado pelo Itamaraty e faz parte da política de distanciamento que o governo brasileiro já vinha adotando em relação à Nicarágua desde 2023.
A ordem, segundo ele, era manter as relações em níveis mínimos, evitando situações que possam demonstrar o apoio do Brasil ao governo da Nicarágua. Dessa forma, o embaixador era orientado a não participar de eventos públicos de caráter político.
Um dos motivos para essa posição foi o recrudescimento do regime contra a oposição e membros da Igreja Católica que se posicionam de forma crítica ao governo de Ortega.
Em junho de 2023, ao se encontrar com o papa Francisco, Lula disse que conversaria com Ortega para interceder pelo bispo de Matagalpa, Rolando José Alvarez, preso pelo governo da Nicarágua.
"Vou tentar ajudar, se puder ajudar. Nem todo mundo é grande para pedir desculpas; a palavra é simples, mas exige grandeza", disse Lula a jornalistas na ocasião.
O bispo Álvarez foi condenado por um tribunal nicaraguense por "desestabilizar o país" e se encontra em prisão domiciliar. Ortega, por sua vez, chamou a Igreja Católica de "ditadura perfeita".
O bispo foi solto em julho de 2023, após a fala de Lula, mas voltou a ser preso dois dias depois.
Ortega também é criticado internacionalmente por se manter no poder desde 2007 por meio de eleições consecutivas, algumas delas contestadas pela oposição, governos estrangeiros, como o dos Estados Unidos, e por entidades internacionais como a União Europeia.
Uma das principais razões para as contestações são as alegações de que o regime de Ortega estaria perseguindo seus principais opositores, reduzindo as chances de uma alternância de poder.
O líder nicaraguense, no entanto, se defende e afirma ser alvo de perseguição política de países como os Estados Unidos.
A resposta brasileira à expulsão do seu embaixador foi na mesma moeda. Em 8 de agosto, o governo Lula anunciou a expulsão da embaixadora da Nicarágua no país. Apesar da expulsão, o Itamaraty informou que o Brasil não rompeu relações diplomáticas com o país.
Esse distanciamento contrasta com a proximidade que Lula e Ortega cultivaram entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, quando eram vistos como dois dos principais líderes de esquerda da América Latina.
Enquanto Lula liderou greves durante os últimos anos da ditadura militar no Brasil e participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, Ortega foi um dos principais comandantes da guerrilha que derrubou a ditadura da família Somoza na Nicarágua antes de ser eleito presidente.
No poder, Lula foi o primeiro presidente brasileiro a visitar a Nicarágua, em 2007, quando Ortega já estava na Presidência.
Em 2010, foi a vez de Ortega ser recebido por Lula, em Brasília. Na ocasião, Lula chamou o presidente nicaraguense de "companheiro" e "amigo".
Para Pedroso, a situação política na Nicarágua tornou qualquer tipo de apoio público a Ortega insustentável.
“O regime de Daniel Ortega já não é mais revolucionário há muito tempo”, afirma Pedroso.
“Hoje, ele persegue os mesmos que fizeram a revolução com ele nos anos 1980. Essa mudança é tão evidente que até parte da esquerda brasileira não quer mais ter vínculo com o que acontece na Nicarágua.”
Para a pesquisadora Stephanie Braun, o Brasil buscava atuar como um mediador entre Ortega e lideranças religiosas a pedido do Vaticano.
Na sua avaliação, o prejuízo da troca de expulsões de diplomatas deverá ser maior para a Nicarágua.
"Nesse caso, prejudicar as relações bilaterais é mais impactante para a Nicarágua do que para o Brasil, dado que o país possui menor presença e impacto econômico no sistema internacional e tal ato reforça seu isolamento internacional."
Lula e o ex-presidente da Bolívia Evo Morales se chamam de amigos e participaram de diversas iniciativas em conjunto durante a primeira década dos anos 2000, quando os dois presidiam seus respectivos países.
Morales chegou, inclusive, a ir à cerimônia de posse de Lula, em 2023, junto com o atual presidente e, agora ex-aliado político, Luis Arce.
É justamente a rusga entre Morales e Arce que vem dando mostras de um certo distanciamento entre Lula e o ex-presidente.
Arce foi ministro da economia de Morales e contou com o apoio do ex-presidente para sucedê-lo, em 2020.
Em 2019, Morales renunciou ao seu quarto mandato após semanas de protestos contra sua reeleição.
Mas voltou a pleitear um novo mandato apesar de a Justiça boliviana já ter se manifestado pela impossibilidade de mais de dois mandatos presidenciais no país.
Os planos de Morales esbarram no desejo de Arce de tentar a reeleição.
Um dos ápices do desentendimento entre os dois aconteceu em junho deste ano quando militares tentaram invadir a sede do governo boliviano no que Arce classificou como uma tentativa de golpe de Estado.
Morales, por sua vez, chamou o movimento de "autogolpe" supostamente orquestrado por Arce para melhorar sua popularidade.
O ex-presidente não apresentou nenhuma evidência para corroborar sua acusação.
A postura de Morales em relação ao evento contrasta com a demonstração de apoio a Arce dada por Lula após a tentativa de invasão pelos militares.
Logo depois do evento, tanto Lula quanto o Itamaraty se manifestaram em apoio à democracia no país.
Dias depois, em julho deste ano, Lula visitou a Bolívia, onde se encontrou com Arce e reiterou seu apoio ao governo boliviano, ignorando a posição de Morales sobre o assunto.
"Não podemos tolerar devaneios autoritários e golpismos", disse Lula durante declaração à imprensa em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia.
"Temos a enorme responsabilidade de defender a democracia contra as tentativas de retrocesso. Em todo o mundo, a desunião das forças democráticas só tem servido à extrema direita."
Lula voltou da Bolívia sem se encontrar com Morales, embora não tenha descartado conversar com o líder boliviano no futuro.
Para Braun, a posição de Lula sobre Morales e Arce é delicada: “O Brasil tem buscado atuar como mediador nas disputas internas entre Evo e Arce”.
Essa postura, segundo ela, visa manter boas relações com ambos os lados, independentemente do desfecho político das próximas eleições na Bolívia em 2025?.
Braun avalia que, apesar do distanciamento entre Lula e esses três antigos aliados, dois deles ainda no poder, o papel de liderança regional do Brasil na América Latina não estaria em xeque.
"O Brasil ainda se mantém como o principal líder regional na atualidade", diz a pesquisadora.
"Dependendo do desfecho de tais casos, a atuação do Brasil como mediador em tais imbróglios regionais fortalecerá ainda mais o papel de liderança regional brasileira."
O diplomata brasileiro ouvido pela BBC News Brasil em caráter reservado tem uma interpretação semelhante.
Ele faz referência à carta assinada por 30 ex-presidentes latino-americanos em que eles pedem que Lula "reafirme" seu compromisso com a democracia na Venezuela.
Segundo ele, o fato de a carta ter sido enviada a Lula mostraria que o Brasil é visto como uma liderança regional capaz de mediar a crise na Venezuela.
Fonte: correiobraziliense
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