O discurso mais importante da vida de Kamala Harris focou-se em sua biografia, no convite à reconciliação nacional e em um alerta sombrio sobre os EUA no comando, mais uma vez, do republicano Donald Trump. No último dia da Convenção Nacional Democrata, na arena United Center, em Chicago, a vice de Joe Biden aceitou oficialmente a indicação do partido como candidata à Presidência e avisou que governará para os 341 milhões de norte-americanos. "Eu serei Kamala Harris para o povo", anunciou, às 21h45 desta quinta-feira (23h45 em Brasília), 15 minutos depois de subir ao palco. "Eu aceito a nomeação", declarou. A Convenção Democrata conseguiu energizar a base eleitoral de Kamala e pavimentar o caminho da ex-senadora até o Salão Oval da Casa Branca. A avaliação é de cientistas políticos consultados pelo Correio.
Kamala afirmou que, em 76 dias, os EUA terão uma "oportunidade preciosa e fugaz de deixar para trás a amargura, o cinismo e batalhas divisivas do passado". "Eu sei que há pessoas de várias visões políticas nos assistindo. Quero que vocês saibam: eu prometo ser a presidente de todos os americanos", insistiu. "Uma presidente que nos une em torno de nossas mais altas aspirações. Uma presidente que lidera — e escuta. Que é realista, prática, tem senso comum e sempre luta pelo povo." A democrata declarou que se levantará pelas crianças e mulheres contra predadores e abusadores sexuais. E projetou uma nação mais justa. "Acredito que cada um tem direito à segurança, à justiça e à dignidade."
"Quero ser clara: em minha carreira inteira, eu tive somente um cliente: o povo", assegurou, ao reafirmar o desejo de trabalhar pelo bem comum. Kamala disse ver as eleições de 5 de novembro como uma chance para os Estados Unidos forjarem um novo caminho adiante. "Não como membros de um partido ou facção, mas como americanos", explicou. "Vocês sempre podem acreditar em mim para colocar o país acima do partido e acima de mim mesma."
Não faltaram críticas a Trump. "De muitas formas, Donald Trump é um homem pouco sério. Mas as consequências de devolvê-lo à Casa Branca são extremamente sérias. Considerem o poder que ele terá, especialmente depois de a Suprema Corte dos EUA decidir por sua imunidade nas acusações criminais." Kamala acusou Trump de propagar o extremismo e de perseguir jornalistas. "Ele tentou jogar fora os seus votos. Quando fracassou, uma multidão enviou armada para o Capitólio, onde atacou policiais. Quando políticos de seu próprio partido imploraram a ele que mandasse a multidão se afastar, Trump fez o contrário e intensificou as chamas", disse, ao citar o ataque ao Congresso, em 6 de janeiro de 2021. A proteção à aposentadoria e ao plano de saúde Medicare e o fortalecimento da classe média também foram destacadas como planos de governo.
A ex-senadora da Califórnia e ex-promotora rendeu um tributo à mãe, a indiana Shyamala Harris. Contou que Shyamala mudou-se para os EUA, aos 19 anos, com o "sonho inabalável" de ser a cientista que curaria o câncer de mama. Descreveu como a mãe sustentou a família. Também revelou que decidiu tornar-se promotora depois de saber que a melhor amiga tinha sido abusada pelo padrasto.
Em um dos temas mais aguardados do discurso — o direito ao aborto, um de seus motes de campanha —, Kamala acusou Trump de escolher membros da Suprema Corte que acabaram com a liberdade reprodutiva. "Por que, exatamente, eles não acreditam nas mulheres? Bem, nós confiamos. E quando o Congresso aprovar uma lei para restaurar a liberdade reprodutiva, como presidente dos Estados Unidos, eu a sancionarei com orgulho. Nessas eleições, muitas liberdades fundamentais estão em jogo."
No âmbito da política externa, Kamala garantiu que os EUA vão fortalecer sua liderança global. "Trump ameaçou abandonar a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Ele encorajou Putin a invadir nossos aliados. Disse que a Rússia poderia fazer o que quisesse. Cinco dias antes, a Rússia havia atacado a Ucrânia", lembrou. A vice de Biden também sublinhou que sempre apoiará o direito de Israel à autodefesa, mas considerou que os 10 meses de guerra na Faixa de Gaza foram devastadores. "Tantas vidas inocentes perdidas. Desespero, pessoas famintas fugindo. A escala do sofrimento é comovente. O presidente Biden e eu estamos trabalhando para pôr fim à essa guerra."
Às 22h20 (hora de Brasília), professores e familiares de estudantes mortos em tiroteios em massa nos EUA deram seus testemunhos, em um dos momentos mais comoventes. Uma mensagem sobre a necessidade de restringir o acesso às armas.
Durante quatro dias de Convenção Nacional Democrata, as lideranças cerraram fileiras em uma disputa moldada como uma batalha entre futuro e passado, esperança e caos, união e segregação. Barack Obama assegurou que os EUA estão prontos para "um novo capítulo" e adaptou o próprio slogan ao citar Kamala — "Sim, ela pode!". Bill Clinton declarou que a escolha é simples: "Kamala, o povo" contra "Eu, eu mesmo e eu". Além dos ex-presidentes, o vice na chapa democrata, Tim Walz, destacou a liberdade como ponto central da eleição.
Para David Samuels, professor de ciência política da Universidade de Minnesota, a Convenção Democrata foi um "sucesso retumbante". "Ela exibiu um Partido Democrata diverso, mas unido, e uma base animada pela candidatura de Kamala. A maioria dos candidatos historicamente desfrutou de um impulso de alguns pontos depois da convenção, simplesmente pelo maior reconhecimento do nome."
John C. Coffee, professor de direito da Universidade Columbia (em Nova York), entende que Kamala Haris gerou entusiasmo, enquanto Trump ainda não encontrou uma maneira de lidar com a adversária. "Kamala conseguiu reunificar os democratas, que ficaram desmoralizados durante a candidatura de Joe Biden. A questão é que ela ainda não articulou um programa de governo muito específico, e não está claro se ela o tem." Segundo ele, os temas mais fortes de Kamala são o aborto, o meio ambiente e a proteção da democracia. "Para grande parte do eleitorado, Trump parece cada vez mais com Napoleão Bonaparte sobre um carrinho de golfe."
Timothy Hagle, professor da Universidade de Iowa, concorda com David Samuels sobre a perspectiva de a Convenção dar um impulso à campanha de Kamala. No entanto, ele lembra que o estímulo costuma durar pouco. "A chave será como Kamala e Trump se sairão nos debates. Uma questão aqui é se a democrata fará uma entrevista aprofundada para debater temas cruciais. Os eleitores gostariam de saber mais sobre as posições políticas de Kamala", observou.
"Convenções não preveem o resultado das eleições. Os democratas estão felizes. Eles evitaram os conflitos que assolaram o partido e, também, estabeleceram os temas que definiram a campanha: o direito ao aborto, a proteção da democracia e a dualidade decência versus imoralidade", afirmou Allan Lichtman, historiador político da American University (em Washington).
"Kamala Harris está fazendo o que tem que fazer: destacar sua atitude positiva, em comparação ao mantra constante de Donald Trump de 'melancolia e desgraça'. Um dos momentos mais surpreendentes da Convenção foi o discurso de Michelle Obama, com algumas de suas tiradas sobre Trump. Ela e Barack permanecem muito populares no país."
David Samuels, professor de ciência política da Universidade de Minnesota
"Kamala traz esperança, energia e relativa juventude, e isso pode derrotar o ódio, o caos e a amargura que Trump gera. Parte do país votará na percepção de que piorou, economicamente, desde a saída de Trump do poder, em 2020. Isso pode não ser verdade e a inflação parece estar diminuindo, mas as eleições são vencidas mais pela percepção do que pela realidade."
John C. Coffee, professor de direito da Universidade Columbia (em Nova York)
"Os democratas tiveram discursos empolgantes, como os de Michelle Obama, Barack Obama, Oprah Winfrey e Tim Walz. Também criaram momentos comoventes, com depoimentos de mulheres vítimas de leis restritivas ao aborto e dos pais de um jovem mantido refém pelo Hamas. Eles mostraram a diversidade de seu partido por gênero, raça, religião e etnia."
Allan Lichtman, historiador político da American University, em Washington
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