22 de Novembro de 2024

Pouco conhecida, Lei do Superendividamento é aliada para sair do aperto


A catarinense Caroline Souza viu o seu mundo ruir em 2021 quando, separada do marido, com quem acabara de comprar um apartamento pelo Minha Casa, Minha Vida, teve que encarar sozinha uma dívida mensal superior a R$ 5 mil, e um salário que alcançava quase a metade desse valor. Antes, a renda dos dois era suficiente para cobrir o financiamento do imóvel, os gastos do dia a dia e, até, programas como compras, lazer e restaurante.

A depressão foi inevitável. Caroline não conseguia nem raciocinar em busca de uma solução para a dívida, que só aumentava. Até as contas de serviços, como energia e água, tiveram que ser sacrificadas. "Sempre andei corretamente, pagava minhas contas em dia. De repente, comecei a receber cartas com cobranças, telefonemas e notificações extrajudiciais. Isso é muito ruim. Como passei a morar com a minha mãe, acabei contagiando-a também, com o meu sofrimento. Ela se preocupava com a minha situação, sem poder me ajudar. É muito humilhante", descreve.

Desesperada, ela teve que lançar mão da assessoria de uma advogada, que mediou a renegociação das parcelas do apartamento com a construtora. Em 2023, mudou-se para São Paulo em busca de um emprego melhor e alugou o apartamento de Florianópolis. Com a renda do aluguel e prestação de serviços freelancers, ela consegue sobreviver. Mas o restante das dívidas — cartão de crédito e empréstimos bancários, por exemplo —, que crescem como bola de neve, permanece. "Tentei renegociar com os bancos, no ano passado, pelo Desenrola, mas não consegui descontos suficientes para que eu pudesse quitar a dívida e arcar com as despesas mensais", conta.

Caroline é mais uma brasileira enquadrada no perfil do superendividado passivo, alguém que contraiu dívida por circunstâncias da vida. Caiu no buraco e não consegue se erguer. Ela está protegida pela Lei do Superendividamento, sancionada em 2021, mas ainda pouco conhecida. Há também o superendividado ativo, aquele que, deliberadamente, gasta mais do que ganha e, por isso, acaba acumulando dívidas. A legislação divide esse perfil em duas modalidades: o ativo inconsciente, que foi imprudente, mas sem a intenção de ficar devendo, e o consciente, que agiu de má-fé, com a intenção de não honrar as dívidas. Para cada um desses perfis, é dado um tratamento específico.

Economia endividamento
Economia endividamento (foto: Valdo Virgo)
Especialistas atribuem à subjetividade desses conceitos a razão pela qual pouca gente recorre à Lei do Superendividamento para sair do sufoco. "Mesmo com todo o progresso que a lei trouxe, o melhor caminho é dar o primeiro passo negociando diretamente com as instituições credoras", observa o advogado Romeu Vaz Pinto Neto, sócio cível do MTA Advogados. Ele explica que a própria legislação direciona os bancos a serem flexíveis no processo de negociação. "A lei traz um novo cenário jurídico, com conceitos importantes, como o mínimo existencial. Mas, antes de tomar uma medida judicial, o recomendado é tentar quitar diretamente com o credor, por meio do desconto, por exemplo."

Neto adverte que, como a situação econômica no Brasil é muito instável, ou seja, a situação em que você se encontra hoje pode piorar em cinco anos e os processos costumam alongar os prazos da dívida, é melhor não arriscar nessa alternativa. "Caso a pessoa não consiga honrar as parcelas no prazo de cinco anos, que é o máximo que prevê a lei, ela terá que renegociar a dívida em termos mais desvantajosos."

A Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, não existe para dar o perdão da dívida, o que seria considerado um incentivo ao calote, mas para garantir ao devedor o chamado "mínimo existencial". Ela obriga o banco a rever os contratos desse tipo de cliente e pode punir o devedor ativo consciente. A norma considera mínimo existencial o valor suficiente para a pessoa levar uma "vida digna", podendo pagar compromissos essenciais, como aluguel, alimentação e serviços públicos. O processo consiste em reunir as dívidas do consumidor e determinar que, juntas, elas precisam respeitar o mínimo existencial, ou seja, que sobre algum valor para o cidadão sobreviver.

O Decreto Presidencial nº 11.150/2022, que regulamentou o texto, considera que o mínimo existencial corresponde a 25% do salário-mínimo. Com a política de valorização do salário-mínimo iniciada no ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um novo decreto, nº 11.567/2023, limitando o valor a R$ 600.

Esse decreto foi contestado pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), no Supremo Tribunal Federal (STF). A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1097 argumenta que "o valor é incompatível com a dignidade humana, pois impede a fruição de uma vida digna e dos direitos sociais, que devem abarcar as despesas com alimentos, moradia, vestuário, água, energia e gás". A Anadep caracteriza o decreto como "retrocesso social" contrário ao objetivo anunciado por Lula de erradicação da pobreza de redução das desigualdades sociais e regionais. Sob a relatoria do ministro André Mendonça, a ADPF ainda está em julgamento.

O advogado Leonardo Pinheiro, especialista em direito empresarial, explica que, semelhante ao que ocorre com a recuperação judicial das empresas, a Lei do Superendividado funciona como uma UTI da saúde financeira das pessoas físicas, em que, pela via jurídica, busca-se o remédio para sair daquela situação. "Como na UTI, às vezes, o remédio surte bom efeito. Às vezes, a situação é tão ruim que, não tem jeito, a pessoa vai ter a morte financeira", diz, lembrando que isso ocorre com os devedores ativos conscientes, os caloteiros.

Para aqueles de boa-fé, a UTI funciona. Por via judicial, o consumidor endividado apresenta a todos os seus credores, de uma só vez, a ação judicial de repactuação, na qual consta uma proposta para pagamento das dívidas, que podem ser quitadas ou parceladas no prazo de até cinco anos. O próprio consumidor pode elaborar um plano de pagamento. Na audiência com o juízo ou um conciliador designado por ele, os credores poderão se manifestar a favor ou contra o plano apresentado.

A partir daí, o plano será homologado e as restrições inscritas nos birôs de consumidor, como Serasa e SPC, são suspensas. Os credores podem contestar, como ocorre em qualquer processo.

Os dados do Mapa da Inadimplência e Renegociação de Dívidas da Serasa mostram que, embora tenha havido esforço, no ano passado, pela desnegativação dos brasileiros endividados, com programas como o Desenrola e os feirões promovidos pela Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon), os indicadores não se alteraram. O fato é explicado, por um lado, pela situação econômica de muitos brasileiros, que não conseguem ficar no azul nem com os descontos oferecidos; por outro, pela falta de letramento financeiro, associado à cultura do consumo, característica do brasileiro.

As estimativas são de que 15 milhões de pessoas permaneçam superendividadas no país, conforme cita o advogado Romeu Vaz Pinto Neto, a partir de estudo sobre endividamento de alto risco, divulgado pelo Banco Central, em novembro de 2023. Não há números mais recentes.

O Mapa da Inadimplência da Serasa, divulgado na última sexta-feira, aponta um contingente de 72,6 milhões de consumidores que estão com suas dívidas em atraso, não sendo, necessariamente, superendividados. O volume total da dívida soma R$ 397,5 bilhões, sendo a maior parte (29,07%) referente a bancos e cartões de crédito e 17,54%, a financeiras.

O mapa mostra que, mesmo com todas as políticas de incentivo ao pagamento, as estatísticas não se alteraram e, ao contrário, em alguns meses deste ano, alcançaram recorde. "Este ano, temos observado uma alta na inadimplência, inclusive com dois recordes desde toda a série histórica. Em março (72,89 milhões) e abril (73,42 milhões). Em junho, o número caiu e, agora, voltou a subir em julho", comenta Thiago Ramos, coordenador da Serasa. Ele destaca ainda que a média nacional da população adulta inadimplente está em 44% e ultrapassa a metade da população em algumas unidades da Federação, como é o caso do Distrito Federal (52,87%), do Rio de Janeiro (54,38%) e de Mato Grosso (52,36%).

Ramos afirma que a permanência dos altos níveis de inadimplência se justifica por fatores conjunturais e estruturais que impedem o brasileiro de vencer o endividamento. "Houve, por exemplo, o aumento de preços de alguns itens da cesta básica. Existe o desemprego, que ainda preocupa, e outros fatores que acabam impactando, como a falta de educação financeira na cultura do brasileiro", aponta.

 

Fonte: correiobraziliense

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