Hugo viu um amigo morrer em uma imensa plantação de batatas-doces em 2023. O corpo sem vida ficou deitado sobre um pneu de caminhão, em uma das poucas áreas com sombra daquela escaldante fazenda na Carolina do Norte, nos Estados Unidos.
"Eles o forçaram a trabalhar", lembra Hugo. "Ele repetia para eles que estava se sentindo mal, que estava morrendo. E, uma hora depois, desmaiou."
Hugo (nome fictício) passou a maior parte do seu tempo nos Estados Unidos, trabalhando em fazendas como migrante. Nelas, os ganhos geralmente não ultrapassam o salário mínimo e as condições de trabalho podem ser mortais.
A BBC concordou em adotar um pseudônimo para Hugo, devido às suas preocupações com possíveis repercussões da divulgação do incidente.
Hugo saiu do México em 2019, com um visto de trabalho nos Estados Unidos. Ele deixou para trás a esposa e dois filhos, em busca do "sonho americano", sem saber quando – ou se – iria retornar para sua família.
Seu amigo que morreu na fazenda de batatas-doces se chamava José Arturo González Mendoza.
Aquela foi a primeira viagem de Mendoza para os Estados Unidos em busca de trabalho. Ele morreu nas suas primeiras semanas na fazenda, em setembro de 2023.
Mendoza tinha 29 anos e também havia deixado sua esposa e filhos no México.
"Nós viemos aqui por necessidade", diz Hugo. "É o que nos faz vir para trabalhar. E você deixa para trás o que mais desejava, uma família."
De agricultores e pecuaristas até ajudantes de cozinha e trabalhadores da construção civil, os migrantes costumam realizar trabalhos perigosos nos Estados Unidos. Nestes empregos, as mortes normalmente passam despercebidas pelo público.
Mas, no ano passado, a questão ganhou visibilidade, devido às várias mortes que foram noticiadas e à crise dos migrantes na fronteira, que potencializou a retórica anti-imigração.
O calor era intenso no dia da morte de Mendoza. As temperaturas variavam em torno de 32°C.
Não havia água potável em quantidade suficiente para os trabalhadores e a fazenda permitia apenas um intervalo de cinco minutos durante os turnos de longas horas.
O único lugar para escapar do calor era um ônibus sem ar condicionado, estacionado em um campo aberto.
Os detalhes se encontram em um relatório preparado pelo Departamento do Trabalho da Carolina do Norte. A fazenda, chamada Barnes Farming Corporation, foi multada este ano devido às suas condições "perigosas".
O relatório confirmou a morte ocorrida na fazenda e mencionou que a chefia "nunca" chamou a assistência médica, nem forneceu primeiros socorros.
Nas horas que antecederam sua morte, Mendoza "ficou confuso, demonstrou dificuldade para andar, falar e respirar, até perder a consciência", afirma o relatório.
Outro trabalhador da fazenda chegou a chamar os serviços de emergência, segundo o relatório, mas Mendoza teve uma parada cardíaca e morreu antes da chegada da assistência médica.
Em declaração encaminhada à BBC, representantes legais afirmaram que a fazenda leva "muito a sério" a saúde e a segurança dos seus trabalhadores. Eles contestam as conclusões das autoridades trabalhistas.
"Muitos dos membros da equipe retornam a Barnes há anos e voltaram novamente para esta estação de cultivo, devido ao compromisso da fazenda com a saúde e a segurança", afirmam eles.
Mas Hugo não retornou. Ele conta que, agora, trabalha para uma empresa de soldagem.
"Coisas ruins acontecem para muitos de nós", ele conta. "Sei que também poderia acontecer comigo."
O setor agrícola também tem o maior índice de mortes no ambiente de trabalho, segundo o Escritório de Estatísticas Trabalhistas dos Estados Unidos. Ele é seguido pelo transporte e pela construção civil.
E, no primeiro semestre do ano, diversas mortes seguidas vieram destacar alguns destes riscos.
No final de março, seis trabalhadores latino-americanos morreram em Baltimore, no Estado de Maryland, quando a ponte que eles estavam consertando durante a noite desabou.
Semanas depois, um ônibus que levava trabalhadores agrícolas mexicanos para o campo sofreu um acidente na Flórida e oito pessoas morreram.
Durante a convenção nacional do Partido Democrata, o governador de Maryland, Wes Moore, relembrou o incidente em Baltimore. Ele homenageou os trabalhadores que morreram "consertando buracos em uma ponte enquanto nós dormíamos".
Mendoza e Hugo tinham vistos H2A, que permitiam que eles trabalhassem temporariamente nos Estados Unidos, na produção agrícola.
O número de trabalhadores estrangeiros com este tipo de visto vem aumentando.
Entre 2017 e 2022, os portadores de visto H2A cresceram em 64,7% – o que representa cerca de 150 mil trabalhadores.
Ao todo, cerca de 70% dos trabalhadores da agricultura nos Estados Unidos são estrangeiros. Deles, mais de três a cada quatro trabalhadores são de origem hispânica, segundo o Centro Nacional da Saúde dos Trabalhadores da Agricultura.
"A imigração é a principal fonte de mão de obra para muitos empregos nos Estados Unidos", segundo a professora de economia Chloe East, da Universidade do Colorado em Denver, nos EUA. Ela é especializada em políticas de imigração.
"Sabemos com certeza que trabalhadores estrangeiros estão assumindo estes tipos de trabalhos perigosos que os norte-americanos não fazem", disse ela.
Uma investigação federal realizada nos Estados Unidos em 2020 entre os trabalhadores agrícolas com visto H2A nos Estados da Flórida, Texas e Geórgia descreveu as condições de trabalho como sendo análogas à "escravidão contemporânea".
A investigação fez com que 24 pessoas fossem acusadas de tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro e outros crimes.
"O sonho americano é uma atração poderosa para pessoas desesperadas e desfavorecidas em todo o mundo", afirmou na época o procurador americano David Estes, em um comunicado à imprensa.
"E, onde há necessidade, existe a ganância daqueles irão tentar explorá-las."
Especialistas afirmam que os migrantes que entram no país ilegalmente podem receber menos proteção quando são contratados para trabalhar. E quase a metade dos trabalhadores do setor agrícola não tem documentos, segundo o Centro de Estudos da Migração.
"Os trabalhadores imigrantes sem documentos estão concentrados nos empregos mais perigosos, arriscados e indesejados dos Estados Unidos", segundo um artigo publicado na Revista Internacional de Migração.
Um dos empregos mais perigosos do setor agropecuário são as fazendas de laticínios. Os riscos incluem a exposição excessiva a substâncias nocivas ou máquinas perigosas.
Os fossos de esterco trazem o risco dos gases tóxicos mortais e de submersão. Os próprios animais também podem causar ameaças.
Olga, que se mudou do México para os Estados Unidos quando era adolescente, não tem documentos de imigração e trabalha em uma fazenda de laticínios no Estado de Vermont.
Ela conta que viu sua irmã ser pisoteada por uma vaca quase até a morte.
"A vaca pisou forte sobre minha irmã e ela estava basicamente morrendo", lembra Olga. "Ela estava até com a língua para fora da boca."
Olga conta que sua irmã quebrou um braço e duas costelas no incidente. Mas o chefe da fazenda exigiu que ela voltasse ao trabalho quase imediatamente.
Ela precisou levar um atestado médico mostrando que sua irmã não poderia trabalhar para que "o patrão a deixasse sossegada", conta Olga.
Sua irmã não trabalha mais nas fazendas. Mas Olga continua. Ela tem 29 anos e conta que trabalha "12 horas por dia, todos os dias".
"Não há aumento de salário", afirma. "Não há descanso e eles nem pagam você em dia. Eles pagam você quando eles querem."
No início do verão do hemisfério norte, o Departamento de Trabalho dos Estados Unidos implementou novas regras destinadas a melhorar as condições de segurança dos trabalhadores temporários das fazendas.
Estas normas incluem a proteção dos trabalhadores que se organizam para defender seus direitos contra retaliações patronais e a proibição da retenção dos passaportes e documentos de imigração dos trabalhadores.
Mas, assim que as autoridades tentaram coibir os abusos aos imigrantes, a retórica anti-imigração, alimentada pelos debates políticos sobre os níveis recorde de imigrações ilegais na fronteira entre os Estados Unidos e o México, aumentou as dificuldades dos migrantes hispânicos.
Em diversas ocasiões, Donald Trump se referiu à imigração ilegal como uma "invasão", chamando as pessoas que cruzam a fronteira de "animais", "traficantes de drogas" e "estupradores".
"Isso me deixa triste", declarou Olga. "Estamos sendo sempre atacados por sermos migrantes. Eles deveriam ver o que fazemos para sobreviver neste país."
O aumento das restrições na fronteira, implementadas pelo presidente Joe Biden em junho, também pode agravar as condições de segurança, segundo East.
A professora destaca que as leis de imigração mais rigorosas podem fazer com que os trabalhadores tenham medo de reivindicar protocolos de segurança.
"A maioria das pessoas fica em silêncio porque se assusta com todas as leis que estão sendo aprovadas", afirma Hugo. "Você não pode se queixar."
Ele conta que, recentemente, vem observando mais discriminação.
Hugo lembra uma experiência recente, em que o dono de uma loja se recusou a vender água para ele, porque ele tinha dificuldade para falar inglês. "As pessoas nos tratam mal."
Fonte: correiobraziliense
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