06 de Outubro de 2024

Saiba como ter mais prazer no trabalho


Hirayama, um homem solitário de meia-idade, desperta pela manhã com o som da vizinha varrendo a calçada. Ele recolhe o futon e a coberta do tatame, escova os dentes, faz a barba, rega as plantas e segue para mais um dia como limpador de banheiros públicos em Tóquio. Para alguns, sua ocupação pode ser vista como desgastante e até inferior. Mas o funcionário parece satisfeito.

Entre uma limpeza e outra, ele deixa escapar um sorriso, especialmente quando observa o jogo de luz e sombra produzido pelo balanço das árvores ao vento. Traduzido pelo termo japonês komorebi, a coreografia encenada pelas folhas sob o sol é única, já que não se repete exatamente da mesma maneira.

No próprio exercício de limpar, Hirayama está atento e presente, diferentemente de seu colega, mais jovem, que rola o feed das redes sociais com uma das mãos enquanto usa a outra para esfregar a privada. Um dos segredos da felicidade que dele emana no trabalho parece ser justamente esse: sua presença no aqui e agora.

Por meio do seu protagonista, o filme Dias Perfeitos (2023), de Wim Wenders, nos convida a revisitar a nossa rotina laboral, como também nossa postura e escolhas frente a ela. “É o mais próximo que já cheguei de fazer uma declaração sobre a paz”, resumiu o diretor alemão, em entrevista à Slant Magazine.

O ideal é que possamos dar o nosso melhor no campo profissional sem negligenciar outras áreas da vida, como família, saúde, lazer e práticas altruístas, orienta a filósofa Lúcia Helena Galvão, palestrante e voluntária na Organização Internacional Nova Acrópole.

“Concentrar de forma excessiva as nossas energias em algum desses setores vai gerar desequilíbrio, que é sinônimo de doença, quer no plano físico ou psíquico”, diz. Mesmo assim, somos tentados a nos exceder. “Aceitamos pressões abusivas por conta de querermos destaque, promoção, reconhecimento, e pagamos por essas coisas um preço nada razoável”, ela alerta.

Uma pesquisa feita com 20 mil profissionais mostrou que o nível de bem-estar dos brasileiros no trabalho está abaixo do considerado mínimo. O Brasil ocupa o segundo lugar em número de casos diagnosticados de burnout, doença ocupacional reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2022. Além disso, o país é líder mundial em prevalência de transtornos de ansiedade e campeão em depressão na América Latina.

Diante desse cenário desastroso, será possível resgatar o bem-estar em nossos ofícios e o prazer em exercê-los? Podemos, como Wenders, fincar uma bandeira branca e fazer frente a esses tempos em que nos confrontamos com a ditadura de prazos e as cobranças por rendimento que nos exigem para além das nossas forças? A professora Lúcia Helena ilumina a questão ao conectá-la com a busca por propósito e autodesenvolvimento: “o gosto de fazer o que fazemos é um desdobramento do gosto por sermos o que somos e o que estamos trabalhando para chegar a ser”.

No entender da filósofa, a saída é encontrarmos a motivação correta. “Isso cria um espírito constante de aperfeiçoamento em tudo o que fazemos. Assim não somos apenas motivados por uma corrida competitiva em busca de maior destaque, o que acaba se tornando esgotante e desmotivante, como se vivêssemos numa guerra permanente por uma causa não muito justa ou valiosa.”

Nosso histórico de autoritarismo, herança colonial e escravocrata estabelece um modelo de liderança agressivo e vertical, aponta o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, autor de A Exaustão no Topo da Montanha: Uma jornada de reconexão com outros ritmos da vida e com o que é essencial (Paidós), entre outros títulos. Ao assumir cargos altos, a tendência é que os profissionais reproduzam esse padrão, causando sofrimento a eles mesmos e aos outros. Resultado: o prazer se torna cada vez mais distante.

Precisamos fazer o esforço individual de nos reconhecer como vítimas disso e entender como a vida poderia ter sido melhor com educação e liderança mais amorosas. A partir daí, é preciso acionar nosso protagonismo para incentivar uma revolução na cultura das organizações.

Desenvolver um ambiente de trabalho colaborativo, generoso e onde o poder tenha uma distribuição mais equânime são algumas das recomendações dos especialistas. Esse espaço em transformação também precisa reconhecer a importância da diversidade e da felicidade para a inovação e o lucro.

“Temos, em 2024, uma discussão sobre se a Inteligência Artificial vai roubar empregos, mas não podemos discutir trabalho remoto e semana de quatro dias. Essa conta não fecha e os recordes de burnout e depressão são prova disso”, diz Maíra Blasi, empreendedora e especialista em futuro do trabalho. “Essas conversas difíceis precisam acontecer entre governantes, empresas e sociedade civil organizada para que mais pessoas possam descansar e gostar daquilo que elas fazem.”

“O adoecimento não está chegando só ao chão da fábrica, mas a todas as esferas de uma empresa”, lembra Alexandre, que orienta: organize-se com as pessoas do seu setor, levante pontos para um trabalho mais humano e os leve à chefia, especialmente às mais sensíveis e que já tenham tido episódios que afetaram sua saúde mental.

São vários os sinais de resistência ao sofrimento no trabalho. A recusa das novas gerações a postos de chefia é um deles. “Isso obrigará, a médio prazo, uma revisão do que se exige de um trabalhador nesses cargos”, aposta Lúcia Helena Galvão. Outro caso é o quiet quitting, ou demissão silenciosa, quando as pessoas fazem estritamente as funções para as quais foram contratadas, sem maiores ambições de crescimento.

“Ver o trabalho como uma forma de sustento, de uma maneira bem pragmática, também é um jeito de ser generoso e benevolente com a gente”, observa Maíra Blasi. Para ela, “o sentido da nossa vida pode estar em outros lugares.”

Na equação por dignidade laboral, o esforço individual é importante, mas não basta. Em um contexto profundamente desigual, o prazer no ambiente profissional, no Brasil, muitas vezes tem raça, classe, gênero, origem geográfica e orientação sexual definidos. As organizações privadas e estruturas públicas de poder têm um papel crucial para mudar essa história, especialmente no que se refere a alterações nas estruturas sociais.

As empresas podem, por exemplo, adotar metas mais sustentáveis, reduzir a jornada de trabalho, reconhecer o trabalho de cuidado e ampliar a licença à paternidade, orientam os especialistas. “É essencial que as companhias invistam em programas de qualidade de vida, ofereçam suporte psicológico e promovam um ambiente de trabalho positivo”, afirma a médica Simone Nascimento Souza, especialista em saúde mental e bem-estar nas organizações.

Investir no bem-estar de quem trabalha, por sinal, está diretamente relacionado a resultados financeiros positivos, apontam estudos. Funcionários felizes são até 12% mais produtivos, descobriu a Universidade de Warwick, no Reino Unido. Eles também sofrem 50% menos acidentes de trabalho e são mais inovadores e leais, aumentando o lucro das empresas. Já a falta de engajamento de equipes custa 9% do crescimento econômico mundial.

Para se reconectar com o prazer no trabalho, Alexandre Coimbra nos convida a identificar as atividades que executamos com mais fluidez. Aquelas que fazemos sem ver o tempo passar, sabe? É o chamado estado de flow. “Assim as pessoas não apenas realizam suas tarefas de maneira mais eficiente, mas também encontram maior satisfação e significado no que estão fazendo. A atividade em si se torna intrinsecamente prazerosa, a despeito do resultado”, esclarece Simone.

Podemos direcionar nossa carreira a essas tarefas ou, pelo menos, aumentar a frequência com que as executamos. Aliás, mudanças dentro de uma mesma área, bem como buscar novas habilidades e conhecimentos, também são formas de renovar o interesse pelo trabalho, acrescenta Márcia Miyamoto, coach e professora na The School of Life.

Providências simples também são valiosas, como se lembrar de respirar fundo e olhar para o céu. Isso pode desanuviar o peito em meio a atividades áridas e chamar a felicidade mais para perto. Técnicas de respiração, meditação e pausas conscientes ao longo do dia são recomendadas para gerenciar o estresse e lidar com a pressão.

“Para ter gosto pelo trabalho, faz-se necessário um ambiente com relações interpessoais saudáveis e possibilidades de o sujeito que trabalha poder colocar a sua marca, a sua identidade no fazer cotidiano”, agrega Lêda Gonçalves de Freitas, doutora em psicologia organizacional e do trabalho.

Além de exercer a criatividade, ser reconhecido e ter liberdade para cumprir tarefas são fontes de satisfação. “Quando essas dimensões de prazer se apresentam, o enfrentamento das dificuldades acontece de forma mais tranquila”, completa Lêda.

Na cultura judaico cristã, o sacrifício é a estrada indicada para a evolução enquanto o prazer se veste de pecado. Coautora da Declaração dos Direitos Descansistas, Maíra Blasi ressalta que, na sociedade brasileira, a ideia de “sacro-ofício” é intensificada. Palco de uma lei contra a vadiagem, em 1941, o país tende a ver com maus olhos descanso e diversão.

“Mas só existe trabalho se existe descanso. O descanso está na legislação, é um direito básico universal”, lembra, apoiada em diversas pesquisas que relacionam a pausa ao bem-estar, à felicidade e ao aumento da produtividade.

Apesar das evidências científicas e das legislações, continua sendo necessário lutar pelo direito de descansar em meio à pregação incessante por sermos produtivos. É preciso reservar espaço na agenda para isso, saber delegar tarefas, além de estabelecer e comunicar limites, dizendo não quando necessário e desistindo da ideia de agradar e atender a todos.

Também faz parte celebrar as pequenas conquistas e milagres cotidianos, valorizando nossa rede de apoio. “A gente também descansa um no outro. Se eu não posso confiar em ninguém, estou sempre tensa e insegura”, aponta Maíra. “Com uma rede, consigo relaxar na confiança de que, se me cansar, vou ter alguém do meu lado para me apoiar.”

Outro ponto importante, mas subestimado, é o brincar. Em sua pesquisa “Trabalhe como quem festeja”, Maíra investiga o que podemos aprender com quem vive de festejar, como os trabalhadores do Carnaval, das festas de São João e de Parintins.

“O adulto para de brincar como se a vida virasse uma coisa muito séria”, observa. Resgatar a brincadeira garante mais alegria no trabalho, proporcionando saúde e força para lutar por dias melhores. “Pessoas cansadas e tristes não têm energia para fazer a revolução de que a gente precisa.”

Ao encontrar um papel com um “jogo da velha” deixado atrás de um vaso sanitário em um dos banheiros de que cuida, Hirayama aceita o convite para a brincadeira. Ele rabisca a sua jogada e volta a esconder o papel, à espera do lance do outro jogador, de quem recebe um “muito obrigado” escrito quando a partida chega ao fim.

Felizmente, assim como a diversão, a beleza coexiste com os conflitos e dilemas da vida de todos nós. Inclusive, ela alimenta Hirayama no mais banal do seu cotidiano. Colecionador de fitas cassete, ele se inspira com música norte-americana dos anos 60 e 70 a caminho do serviço. Também gosta de ler antes de dormir. Aos finais de semana, pedala e relaxa em uma casa de banho.

“A beleza é o tipo de suspiro que a nossa alma precisa cada vez mais ter nesse mundo acelerado e inclinado ao colapso”, defende Alexandre. “Tudo que te for belo, que te fizer suspirar, fizer a sua alma cantar, fizer você sorrir, ainda que por minutos, é uma experiência de beleza”, ele atesta.

Ufa! Sentiu o peito se alargar? Então, vamos reaprender juntos a sonhar e a criar outros modos de viver e de trabalhar, como o protagonista de Dias Perfeitos em sua silenciosa revolução diária.

Por Martina Medina – revista Vida Simples

Jornalista. De volta ao presencial, se emociona vendo a poesia saltar das conversas com os colegas, dos textos e dos dias.

Fonte: correiobraziliense

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