22 de Novembro de 2024

O passado brasileiro do pai de Kamala Harris


O economista Donald Jasper Harris já tinha uma carreira internacional respeitada quando chegou ao Brasil em 1990.

Nascido na Jamaica e naturalizado americano, Harris era professor da renomada Universidade Stanford, na Califórnia, e tinha entre suas publicações o livro Capital Accumulation and Income Distribution (“Acumulação de Capital e Distribuição de Renda”, em tradução livre), de 1978.

A viagem ao Brasil fazia parte de uma bolsa do programa Fulbright e incluía a participação em seminários e conferências em universidades brasileiras. Ao longo daquela década, ele passaria várias temporadas no país, e ainda é lembrado por alunos e colegas com quem conviveu.

“Ele sempre passou a impressão de ser pessoa muito receptiva com os alunos”, diz à BBC News Brasil um dos ex-estudantes, Jorge Thompson Araujo, que era mestrando em Economia quando fez um curso ministrado por Harris em 1990, na Universidade de Brasília (UnB).

O então estudante conviveu com Harris na sala de aula e em alguns eventos sociais em Brasília, dos quais contemporâneos lembram que ele frequentava bares e restaurantes perto do campus, na Asa Norte, e participava de churrascos com os colegas.

“Ele era introvertido, mas simpático”, diz Araujo, que hoje é consultor do Banco Mundial, em Washington, e pesquisador colaborador sênior da UnB.

Neste mês, a trajetória profissional do economista ganhou atenção nos Estados Unidos, depois que seu nome foi mencionado no debate presidencial. Ele é pai da vice-presidente americana, Kamala Harris, candidata democrata à Casa Branca.

Ao responder uma pergunta no debate de 10 de setembro, o ex-presidente Donald Trump, candidato republicano, citou o economista.

"Todo mundo sabe que ela é marxista. Seu pai é um professor marxista de economia. E ele a ensinou bem”, disse o republicano.

Kamala Harris, que sempre deixou claro que apoia o capitalismo, não respondeu à provocação, nem citou o pai durante o debate. Mas o episódio renovou a curiosidade sobre o trabalho de Donald Harris.

O interesse do economista pelo Brasil vem de desde, pelo menos, a década de 1960.

Em 1966, ele assinou uma resenha sobre o livro Diagnosis of the Brazilian Crisis, título da edição em inglês de Dialética do Desenvolvimento, do economista brasileiro Celso Furtado.

“É uma contribuição refrescante à literatura sobre subdesenvolvimento”, avaliou Harris, afirmando que representava “uma tentativa séria de um economista latino-americano de lidar com os problemas da região por meio do desenvolvimento crítico e aplicação de estruturas analíticas existentes.”

Em 1974, ele publicou o artigo Um Post Mortem à Parábola Neoclássica na revista Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Araujo lembra que seu orientador de mestrado, Joanílio Teixeira, foi quem organizou a ida de Harris a Brasília.

Em 2021, em entrevista ao site da UnB, Teixeira, que atualmente é professor emérito da universidade, contou que chegou a hospedar Harris em sua casa por alguns meses.

A rotina acadêmica de Harris no Distrito Federal incluía pesquisas, trabalho com professores da UnB e um curso baseado em seu livro Capital Accumulation and Income Distribution, do qual Araujo participou em 1990.

“Ele condensou o material [do livro e de suas pesquisas] e fez uma série de seminários”, recorda o ex-aluno.

“O trabalho dele é extremamente sério, rigoroso. As aulas eram muito bem dadas, muito claras, mas difíceis. Dava trabalho entender e absorver aquele material, não era nada fácil.”

As aulas eram ministradas em inglês.

“Havia um pouco de barreira linguística. Na época, não era tão comum [os alunos] serem fluentes em inglês”, lembra Araujo. “Acho que às vezes afetava um pouco a interação dos alunos com ele.”

Harris era reconhecido por suas críticas à teoria econômica neoclássica, escola dominante em Stanford e outras universidades renomadas. Em Brasília, encontrou um ambiente com mais diversidade de linhas de pensamento.

“Ele sempre foi bem heterodoxo em economia. Crítico às teorias econômicas mainstream [dominante]”, ressalta Araujo.

“E Stanford era — e ainda é — um departamento bem mainstream, com presença de economistas heterodoxos muito reduzida.”

Segundo Araujo, economistas de diferentes correntes conviviam na UnB.

“Obviamente, sempre tinha algum tipo de discordância, mas aquilo não gerava mal-estar. Acho que esse ambiente deixou Harris mais à vontade, acho que ele se sentia bem lá.”

Nas confraternizações, Araujo diz que Harris “parecia um gentleman”, sempre sorridente e acessível, deixando os interlocutores à vontade. Mesmo assim, sua presença intimidava o então estudante.

“Eu ficava um pouco sem jeito de falar com ele. Primeiro, pela importância que ele tinha na área. E segundo, porque na época eu não dominava o inglês tão bem”, lembra.

Aos 86 anos de idade, Donald Harris mantém o título de professor emérito da Universidade Stanford, de onde se aposentou em 1998. Ao longo de sua carreira, ele ganhou projeção internacional e se destacou como crítico da economia ortodoxa.

Doutor em Economia pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, começou a lecionar em Stanford em 1972, após ter sido professor na Universidade de Wisconsin, em Madison, na Universidade de Illinois e na Universidade Northwestern (também em Illinois).

Harris era um professor popular em Stanford. Em reportagem de 1976, o The Stanford Daily, jornal publicado pelos estudantes da universidade, o descreveu como “um estudioso marxista”.

Segundo o jornal, ele teria sofrido resistência inicial a receber "tenure" (a estabilidade no emprego concedida a alguns professores universitários nos Estados Unidos) porque era "carismático demais, um flautista mágico que desviava os estudantes da economia neoclássica”.

Os alunos pressionavam por maior diversidade racial e intelectual no corpo docente. Donald Harris acabou se tornando o primeiro professor negro a receber “tenure” no Departamento de Economia de Stanford.

“Ele foi líder no desenvolvimento do novo programa em ‘Abordagens Alternativas à Análise Econômica’ como campo de estudo de pós-graduação”, diz sua biografia no site da universidade.

“Durante anos, ministrou o popular curso de graduação ‘Teoria do Desenvolvimento Capitalista’.”

Segundo a universidade, Harris explorava “a concepção analítica do processo de acumulação de capital e suas implicações para uma teoria de crescimento da economia” e buscava explicar “o caráter intrínseco do crescimento como um processo de desenvolvimento desigual”.

Enquanto lecionava em Stanford, Harris percorreu dezenas de países, fazendo pesquisas, consultorias, seminários e palestras como convidado.

Ele prestou consultoria a diversas agências e organizações internacionais, como a ONU e o Banco Mundial, a governos e fundações privadas.

Na Jamaica, seu país natal, ele atuou diversas vezes como consultor de política econômica para o governo e teve papel importante na elaboração de uma estratégia de crescimento.

Em 2021, foi agraciado com a Ordem do Mérito por sua contribuição ao desenvolvimento nacional.

Segundo sua página no site da universidade, Harris se aposentou para “se dedicar de forma mais ativa” ao seu “antigo interesse” no desenvolvimento de políticas públicas para promover o crescimento econômico e a equidade social.

Quando começou a viajar ao Brasil, o economista já estava separado havia décadas da mãe de Kamala Harris, Shyamala Gopalan, uma cientista nascida na Índia, autora de pesquisas influentes sobre o papel dos hormônios no câncer de mama e que morreu em 2009.

A vice-presidente costuma dizer que foi criada pela mãe, e raramente menciona o pai. Uma exceção foi seu discurso na Convenção Nacional Democrata, em agosto, quando aceitou oficialmente a nomeação para concorrer à Presidência.

“No parque, minha mãe dizia: ‘Fique por perto’. Mas meu pai dizia, sorrindo: ‘Corra, Kamala, corra. Não tenha medo. Não deixe que nada a impeça’”, lembrou.

“Desde muito cedo, ele me ensinou a não ter medo.”

A plateia aplaudiu, mas Donald Harris não estava entre os presentes. A democrata repetiu, como já havia contado anteriormente, que seus pais se conheceram quando participavam do movimento pelos Direitos Civis nos anos 1960.

Donald e Shyamala faziam pós-graduação na Universidade da Califórnia, em Berkeley, na época um centro de ativismo estudantil. Eles integravam um grupo de estudos formado por alunos negros, onde se discutia história africana e a experiência afro-americana.

Apesar de não ser negra, Shyamala, sendo indiana, era considerada nos Estados Unidos uma pessoa de cor, e logo se integrou ao grupo. Donald e Shyamala casaram em 1963, um ano depois de se conhecerem.

Kamala nasceu em 1964, e sua irmã, Maya, em 1967. A vice-presidente lembra de acompanhar os pais em eventos do movimento por direitos civis quando era criança.

Entretanto, quando ela tinha cinco anos de idade, o casamento chegou ao fim.

“Eu sabia que eles se amavam muito, mas parecia que tinham se tornado como água e azeite”, escreveu a democrata em seu livro The Truths We Hold (“As Verdades que defendemos”), de 2019.

Alguns anos depois da separação, em 1972, Shyamala entrou com pedido de divórcio. Em seu livro, Kamala Harris disse que o pai continou sendo parte de sua vida, e que ela e a irmã passavam fins de semana e férias de verão com ele.

“Mas foi minha mãe quem assumiu a responsabilidade pela nossa criação. Ela foi a maior responsável por nos moldar como as mulheres que nos tornaríamos”, disse.

Em um texto publicado em 2019 no site Jamaica Global Online, Donald Harris disse que a interação com as filhas “chegou a um fim abrupto em 1972”, após uma batalha pela custódia.

O relacionamento teria sido “colocado dentro de limites arbitrários” impostos pelo tribunal.

“Mesmo assim, persisti, nunca desistindo do meu amor pelas minhas filhas ou abandonando minhas responsabilidades como pai”, escreveu o economista, que dedicou seu livro de 1978 a Kamala e Maya.

Ele lembrou de visitas à Jamaica com as filhas ainda pequenas. Além de mostrar o lugar onde cresceu, ele queria que, quando fossem mais velhas, entendessem “as contradições econômicas e sociais num país ‘pobre’, como a impressionante justaposição de pobreza e riqueza extremas”.

Também escreveu que queria ensinar às filhas “que o céu é o limite para o que se pode alcançar com esforço e determinação” e que é importante “não perder de vista os que ficam para trás devido à negligência ou abuso social e falta de acesso a recursos ou ‘privilégios’”.

Donald Harris não costuma comentar a trajetória política da filha nem dar entrevistas, e não respondeu aos pedidos da BBC News Brasil de participação nesta reportagem.

Uma das últimas vezes em que se pronunciou publicamente sobre Kamala foi em 2019.

Na época, ao responder em uma entrevista se já havia fumado maconha, a então senadora disse: “Metade da minha família é da Jamaica, você está brincando comigo?”

Seu pai não gostou da brincadeira e publicou uma declaração em um site da Jamaica, afirmando que ele e sua “família jamaicana” gostariam de se “distanciar categoricamente” dos comentários.

Disse ainda que seus antepassados deveriam estar “se revirando no túmulo ao ver o nome de sua família, sua reputação e sua orgulhosa identidade jamaicana sendo conectados, brincando ou não, com esse estereótipo”.

Araujo acompanha a corrida presidencial americana desde Washington e lamenta ter perdido contato com o ex-professor. Ele conta que, poucos anos depois do encontro em Brasília, quando já estava na Inglaterra fazendo doutorado, usou material de Harris em sua pesquisa.

“Mandamos o trabalho para ele, e ele foi muito positivo, disse que gostou”, conta Araujo. “Ele respondeu com uma carta, que guardo até hoje.”

Araujo considera a participação de Harris na vida acadêmica em Brasília uma grande contribuição ao Departamento de Economia da universidade, mas também acha que as temporadas no Brasil tiveram impacto positivo em Harris.

“Embora não possa comprovar, penso que a passagem dele pelo Brasil o ajudou a ver a perspectiva do desenvolvimento econômico num país grande. E acho que isso ajudou a enriquecer sua visão sobre o desenvolvimento.”

“Foi uma via de mão dupla”, diz Araujo.

“Não só a UnB se beneficiou da presença dele, mas ele também se beneficiou de trabalhar com economistas brasileiros, estar no Brasil e se expor às questões socioeconômicas do Brasil.”

Fonte: correiobraziliense

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