A tempestade Boris causou recordes de chuva em Viena, na Áustria, no dia 15 de setembro passado.
Os impactos pareciam impressionantes: ruas inundadas, casas evacuadas e um fluxo de água suave que se transformou em uma torrente estrondosa.
No espaço de apenas cinco dias, caiu duas a cinco vezes mais chuva na capital e em outras regiões da Áustria do que toda a média mensal de setembro.
Ainda assim, considerando a ofensiva da água, "nós escapamos levemente", segundo um jornalista vienense. Ele se refere aos relatos de apenas 10 feridos leves e 15 casas evacuadas na cidade.
"Ao todo, o engenhoso sistema de gestão de enchentes [da cidade] resistiu ao volume de água", concluiu outro jornalista local.
De fato, as grandes cheias ocorridas anteriormente indicam que as diversas estratégias de proteção adotadas por Viena – e pela Áustria como um todo – demonstraram sua eficácia, oferecendo lições fundamentais para outros lugares que enfrentam cada vez mais as condições climáticas extremas.
"A Áustria realmente investiu na gestão das cheias ao longo das últimas décadas, em parte porque tivemos duas grandes enchentes, em 2002 e 2013", explica o hidrólogo Günter Blöschl, diretor do Centro de Sistemas de Recursos Aquáticos da Universidade de Tecnologia de Viena. Ele ajudou a desenvolver a estratégia de gestão de riscos de enchentes da Áustria.
Blöschl destaca que o sistema de defesa contra enchentes de Viena, desenvolvido décadas atrás, é fundamental para a proteção da cidade.
"O sistema de defesa contra enchentes de Viena é projetado para lidar com um volume de cheias de 14 mil metros cúbicos por segundo", ele conta. "É o equivalente a uma enchente que acontece a cada 5 mil anos."
A última vez em que ocorreu uma enchente deste tamanho foi em 1501, segundo ele.
Durante as cheias deste mês, cerca de 10 mil metros cúbicos por segundo fluíram pelos cursos d'água de Viena, "significativamente abaixo da capacidade de 14 mil metros cúbicos do sistema", explica Blöschl. "Sem este sistema, teria havido enchentes generalizadas."
Em apenas cinco dias, a tempestade Boris trouxe para algumas partes da Áustria cinco vezes mais chuva do que a média de todo o mês de setembro.
Dois dos alicerces deste sistema de defesa contra enchentes são uma ilha artificial, a ilha Danúbio, e um canal de controle de cheias chamado Novo Danúbio. Ambos foram construídos nos anos 1970, em resposta a uma enchente poderosa ocorrida em 1954, que superou as defesas existentes na época.
O Novo Danúbio é normalmente fechado por barragens, criando uma espécie de lago.
"As barragens são abertas antes da chegada da enchente e, por três ou quatro dias, o canal recebe o fluxo de água", liberando o principal rio de Viena, o Danúbio, explica Blöschl.
O sistema passou por um grave teste em 2013, quando a bacia superior do Danúbio sofreu uma das maiores cheias dos últimos dois séculos.
A descarga do fluxo do Danúbio em Viena atingiu cerca de 11 mil metros cúbicos por segundo, mas o sistema de defesa contra enchentes da cidade evitou danos importantes, segundo um relatório da prefeitura da capital.
"Não houve uma única residência ameaçada em Viena, em comparação com 400 mil casas em toda a Áustria", segundo o relatório.
Mas isso não significa que o sistema retenha totalmente as grandes cheias.
Durante a enchente de meados de setembro, o Wienfluss – um pequeno rio da cidade – transbordou, inundando os trilhos de uma linha de metrô. Com isso, foi preciso interromper o transporte público da capital.
A Áustria como um todo também ampliou suas defesas. O país investe cerca de 60 milhões de euros (cerca de R$ 370 milhões) por ano em medidas de proteção contra enchentes. O resultado foi uma redução das devastações causadas pela água, segundo as estimativas oficiais.
A estratégia de proteção inclui perfurações regulares para medidas de emergência como paredes móveis, construídas para reter grandes volumes de água, e um sistema mais preciso e sofisticado de previsão do tempo.
Segundo uma avaliação oficial, a grande enchente de 2002 causou prejuízos de 3 bilhões de euros (cerca de R$ 18,5 bilhões) em toda a Áustria.
Já a enchente de 2013, apesar das suas grandes proporções, causou danos muito menores. Os prejuízos foram estimados em cerca de 866 milhões de euros (cerca de R$ 5,3 bilhões), graças às medidas de proteção contra cheias.
Os dados também confirmam a precisão das previsões do tempo. Depois da enchente de meados de setembro, o serviço meteorológico da Áustria concluiu que o nível real de chuvas verificado estava de acordo com a quantidade esperada.
Observando as medições do impacto da enchente no último fim de semana, "verificamos que valeu a pena", segundo Blöschl. "Os danos evitados são muito mais altos que o investimento na proteção contra as cheias. É uma história de sucesso."
Gerenciar os imensos volumes de água durante uma enchente tão grande é especialmente difícil porque, agora, existem menos planícies de inundação, onde a água pode se espalhar com segurança, sem ameaçar seres humanos ou suas propriedades.
As planícies de inundação são definidas como as áreas ao lado dos rios que são naturalmente propensas a inundações. E, no lugar das planícies antes desabitadas, existem agora cidades e fazendas.
Em 1899, Viena sofreu uma enchente de dimensões similares à de 2013. Na época, "basicamente, não havia barragens", ele conta. "Mas havia quase 1 mil quilômetros quadrados de planícies de inundação [a montante de Viena]."
"Elas retiveram muita água, mas não existem mais. Por isso, com as mesmas chuvas, você consegue muito mais escoamento para o Danúbio em Viena."
Com mais água fluindo para a cidade, os rios sobem mais e têm mais probabilidade de transbordar, a menos que sejam contidos de alguma forma.
Paradoxalmente, embora as barragens, diques e outras barreiras ajudem a proteger as pessoas retendo a água durante as cheias, elas podem, na verdade, aumentar o risco geral de longo prazo, segundo indicam estudos.
Isso ocorre porque elas podem oferecer às pessoas uma falsa sensação de segurança e incentivá-las a se estabelecer perto dos cursos d'água, subestimando o risco de enchentes.
Este fenômeno é conhecido como efeito dique. E, no pior dos casos, ele pode deixar as pessoas despreparadas em caso de emergência.
Nos Estados Unidos, por exemplo, um estudo indicou que a construção de diques está relacionada a uma aceleração de 62% da expansão urbana nas planícies de inundação, em comparação com um aumento de 29% da área urbana como um todo.
Os autores do estudo alertam que isso destaca a "clara mudança da percepção de risco depois da construção dos diques". Mas eles também observam que as regulamentações podem reduzir a pressão sobre as planícies de inundação.
"Viena é um bom exemplo do efeito dique", explica Blöschl.
"Quando uma cidade é protegida pelos diques, por exemplo, as pessoas têm a sensação de segurança", prossegue ele. "Com a urbanização, o risco de enchentes aumenta, pois este risco é definido como a probabilidade de cheia, multiplicada pelo dano esperado. E, com mais pessoas se mudando para as planícies de inundação, este dano esperado é maior."
Mas Blöschl ressalta que é difícil evitar o estabelecimento das pessoas perto dos rios. As enchentes ocorrem raramente e as margens dos rios e planícies de inundação podem atrair os assentamentos.
De fato, pesquisas indicam que cerca de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo vivem em planícies de inundação.
As pesquisas também indicam que, quando o assunto é o risco de enchentes, as pessoas realmente têm memória curta. A consciência do público quanto aos riscos e como reagir às cheias dispara quando existe uma grande enchente, mas cai com relativa rapidez em seguida.
Na Áustria, previsões do tempo precisas e exercícios de simulação ajudaram a salvar vidas durante esta cheia mais recente – não só em Viena, mas também em outras partes da Áustria, segundo Blöschl.
"Tivemos exercícios de simulação em todos os níveis, para os bombeiros e para os militares", ele conta. "A menos que você prepare [as pessoas] com exercícios práticos, [o sistema] não irá funcionar durante as emergências."
"Minha mensagem é que os exercícios de simulação para a gestão de enchentes são um elemento muito importante."
Os socorristas de emergência praticaram como erguer paredes móveis para reter as cheias, por exemplo. "Se aquilo não funcionar como um relógio, você não irá erguê-las a tempo", antes que a água chegue, segundo Blöschl.
"Muita coisa pode sair errado. Pode haver partes faltando e, se houver um vão, mesmo que minúsculo, a água irá atravessar. Por isso, você precisa praticar e eles fizeram. E funcionou."
Blöschl acrescenta que as previsões meteorológicas precisas também ajudaram a decidir onde havia risco de rompimento das barragens e onde as pessoas precisavam ser evacuadas.
Estar preparado é particularmente importante, segundo indicam as pesquisas. Afinal, as mudanças climáticas estão gerando tempestades mais intensas e mais enchentes em algumas regiões da Europa.
Um dos motivos é que o ar mais quente retém mais umidade e energia, o que alimenta tempestades poderosas, como a tempestade Boris. O verão de 2024 foi o mais quente já registrado na Europa e no resto do mundo.
"Este evento foi intensificado pelas mudanças climáticas, particularmente pelo aquecimento do mar Mediterrâneo", explica Blöschl.
Ele se refere aos recordes de temperatura da superfície do mar Mediterrâneo, verificados no último verão do hemisfério norte. O verão quente e incomum do Mediterrâneo fez com que a tempestade Boris "conseguisse absorver mais água e energia", segundo ele.
Existem outras evidências de que este aquecimento está sobrecarregando as tempestades.
Um estudo concluiu que uma onda de calor recorde no mar e as mudanças climáticas causadas pela atividade humana contribuíram substancialmente para o desenvolvimento de uma tempestade extremamente poderosa sobre o mar Mediterrâneo, em agosto de 2022.
"Todos os estudos [baseados em simulações numéricas ou análises estatísticas] parecem confirmar que o aquecimento da superfície dos mares é especialmente responsável por produzir o aumento da intensidade dessas tempestades", afirma Mario Marcello Miglietta, diretor de pesquisa do Instituto de Ciências Atmosféricas e Climáticas (CNR-ISAC, na sigla em italiano) de Pádua, na Itália. Ele é também um dos autores do estudo.
"Nas condições climáticas de algumas décadas atrás, [estas tempestades] não teriam se formado", segundo ele.
Outro motivo do aumento das cheias no norte da Europa é a mudança generalizada das precipitações globais em direção ao norte. Blöschl explica que isso se deve às mudanças de pressão entre o Ártico e o Equador, que estão se aquecendo em velocidades diferentes.
O Ártico está se aquecendo com mais rapidez do que o Equador porque o gelo derretido faz com que a superfície seja menos refletora e absorva mais a luz solar, reforçando o efeito do aquecimento, explica ele.
"Todos os países ao norte dos Alpes – como a Áustria, Alemanha, França, as ilhas britânicas e a costa oeste da Escandinávia – observaram aumento das enchentes ao longo dos últimos 30 anos", afirma Blöschl.
Ele e seus colegas indicam, em sua pesquisa, que as últimas três décadas estão entre os períodos mais atingidos por enchentes na Europa nos últimos 500 anos.
Em 2021, imagens chocantes de torrentes de água atravessando cidades do oeste europeu, alimentadas por níveis recorde de chuvas, mostraram o impacto desses desastres e levantaram questões sobre como devemos nos preparar para eles.
Mais de 200 pessoas morreram naquelas enchentes, 184 delas na Alemanha. O evento desencadeou um questionamento: será que um país tão rico não poderia ter protegido melhor suas pessoas?
Em 2024, um relatório alemão sobre as lições do desastre recomendou o fornecimento de alertas mais claros com ações específicas a serem tomadas, incluindo mapas e gráficos para ajudar as pessoas a compreender exatamente o que fazer e distribuir os alertas de muitas formas diferentes, para atingir o máximo de pessoas possível.
Este relatório se seguiu a uma pesquisa entre os sobreviventes da zona de desastre na Alemanha, que revelou que um terço dos participantes não havia recebido nenhum aviso. E, dentre as pessoas que haviam sido alertadas, 85% não esperavam cheias muito graves e quase a metade não sabia o que fazer.
Viena pode ter resistido relativamente bem à última enchente, mas as chuvas causaram estragos em muitas partes da Europa central, gerando "uma catástrofe de proporções épicas", segundo as palavras do prefeito de uma cidade da Romênia.
Mais de 20 pessoas morreram e milhares foram evacuadas, incluindo toda a cidade de Nysa, na Polônia, com mais de 40 mil pessoas. Na Áustria, agricultores tiveram suas colheitas destruídas, com prejuízos na casa dos milhões de euros.
Pesquisas indicam que o compartilhamento de lições entre os países é fundamental para ajudar a Europa a se preparar para os extremos climáticos do futuro.
Em 2023, uma equipe de cientistas europeus que analisou megaenchentes históricas concluiu que 95,5% delas poderiam ter sido previstas, com base em eventos anteriores em outros lugares comparáveis da Europa.
Os cientistas destacaram que as megaenchentes podem ser raras em países específicos, mas elas são mais comuns quando se considera toda a região – e "surpresas locais não são surpreendentes em escala continental".
De fato, precipitações em níveis recorde e cheias disseminadas passaram a ocorrer regularmente na Europa. Estima-se que um em cada oito cidadãos europeus more em áreas potencialmente vulneráveis a cheias.
Modelos climáticos projetam chuvas maiores e mais fortes no norte da Europa, gerando mais enchentes, e "o prognóstico é que irá continuar desta forma", conclui Blöschl.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Earth.
Fonte: correiobraziliense
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