A brasileira Jussara Kdouh, de 34 anos, voltou ao Líbano para reconectar seus dois filhos com as raízes culturais do país em que cresceu.
No entanto, o que era para ser um retorno às suas origens se transformou em uma fuga desesperada por sobrevivência, com bombas caindo cada vez mais perto de sua casa e um sentimento crescente de abandono.
Jussara nasceu no Brasil, mas com um ano, sua família a levou para o Líbano, onde passou toda a infância e adolescência. Aos 22 anos, voltou ao Brasil para viver com seu marido, que, assim como ela, possui nacionalidade brasileira e libanesa.
Durante mais de uma década, ela viveu em São Paulo, mas decidiu voltar ao Líbano em junho para que seus dois filhos conhecessem de perto a cultura, a língua e a religião que fizeram parte de sua própria formação.
"Eu queria que meus filhos vivessem o que vivi. Conhecessem a cultura libanesa, aprendessem árabe e se conectassem às nossas origens", conta Jussara.
No entanto, seus planos mudaram radicalmente com o aumento dos confrontos entre o grupo libanês Hezbollah e Israel desde a última segunda-feira (23/9).
Naquele dia, seu marido retornou ao Brasil, antes do início dos bombardeios mais intensos, enquanto Jussara permaneceu no Líbano com os filhos pequenos, uma menina de nove anos e um menino de dez anos, e a mãe idosa.
Assim que os ataques aéreos israelenses se intensificaram, a vida de Jussara se transformou em uma rotina de medo e incerteza.
Ela conta que as bombas passaram a cair muito próximas à sua casa, na cidade de Nabatia, no sul do Líbano, e cada novo ataque trazia o desespero de estar no meio do conflito.
"Eu via as explosões pelas janelas. O medo tomava conta, e eu sabia que precisava fazer algo para proteger meus filhos e minha mãe", relata.
A decisão de fugir se tornou inevitável quando, certa noite, o perigo estava mais próximo do que nunca. Jussara arrumou as malas às pressas e tentou sair da cidade em direção à capital, Beirute.
"As ruas estavam tomadas por pessoas tentando escapar. Ficamos presos no trânsito enquanto as bombas explodiam. Vi uma criança de 11 anos morrer dentro de uma ambulância porque não conseguiram chegar ao hospital", recorda com a voz embargada.
"O choro da mãe daquela criança é algo que nunca vou esquecer."
Após uma longa e arriscada jornada que durou 13 horas em vez dos habituais 60 minutos, Jussara e sua família chegaram a Beirute, onde encontraram a cidade lotada e dominada pelo medo.
"Muitas pessoas estavam dormindo nas ruas porque não havia mais lugar. Eu consegui um quarto de hotel, mas o medo não nos deixava", explica.
Em meio ao caos, ela tentou buscar ajuda do governo brasileiro, sem sucesso.
"Meus filhos são brasileiros, e mesmo assim não tivemos apoio para uma evacuação segura. Me senti completamente abandonada pelo meu próprio país. Cada bomba que cai faz você se perguntar se vai ver o próximo dia", desabafa.
Na segunda-feira, o Ministério das Relações Exteriores informou que um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) será enviado para resgatar brasileiros que estão no Líbano nos próximos dias. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou a repatriação dos cidadãos.
A operação, que está sendo coordenada pelo Itamaraty e pelo Ministério da Defesa, anunciará a data do voo em breve, após avaliar as condições de segurança. O planejamento inicial da FAB prevê que o avião decole do aeroporto de Beirute, que está aberto.
"A Embaixada no Líbano está tomando as providências necessárias para viabilizar a operação, em contato permanente com a comunidade brasileira e em estreita coordenação com as autoridades locais", diz a nota do Itamaraty.
A maior comunidade de brasileiros no Oriente Médio atualmente está no Líbano. Ao todo, 21 mil brasileiros vivem no país.
Jussara diz que, apesar das circunstâncias, não considera o Hezbollah ("Partido de Deus", em árabe), sediado no sul do Líbano e recebe financiamento do Irã, como uma organização terrorista, apesar de essa ser a classificação frequentemente atribuída por governos ocidentais.
Atualmente, muitos países, incluindo Israel, Estados árabes do Golfo e grandes potências como os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Europeia, classificam o Hezbollah, que prega a destruição do Estado de Israel, como organização terrorista. O Brasil não segue essa classificação.
O Hezbollah é acusado por diversos atentados, incluindo ataques suicidas, contra alvos israelenses, americanos e de outros países ocidentais especialmente no próprio Líbano e em Israel.
O grupo é acusado também de participação em ações no exterior, como os ataques a bomba contra a embaixada de Israel em Buenos Aires, que deixou 29 mortos, em 1992, e contra uma organização comunitária judaica também em Buenos Aires, em 1994, que matou 85 pessoas.
Para Jussara, o Hezbollah é um grupo de resistência que sempre apoiou a população libanesa, principalmente as comunidades mais pobres e marginalizadas.
"Eu cresci no Líbano vendo o Hezbollah ajudar as pessoas, construindo escolas, hospitais e cuidando da nossa segurança. Eles não são terroristas, eles protegem a nossa terra. Sem eles, estaríamos completamente vulneráveis", afirma.
Ela reconhece que o conflito é extremamente complexo e doloroso, mas insiste que o Hezbollah faz parte da defesa do Líbano contra ameaças externas.
"As pessoas que vivem fora não entendem a importância deles aqui. Muitos acham que são apenas milicianos, mas a verdade é que eles estão aqui para proteger o país, especialmente do que consideramos ser agressões israelenses", diz.
"É fácil julgar de fora, mas para quem vive aqui, o Hezbollah faz parte da vida cotidiana. Eles oferecem suporte e proteção que muitas vezes o próprio governo libanês não consegue oferecer."
Com muito esforço, Jussara conseguiu passagens para sair do Líbano no próximo dia 22 de outubro em um voo para a Turquia. No entanto, ela ainda não sabe se conseguirá partir de lá rumo ao Brasil.
Até lá, ela permanece em Beirute, na esperança de que sua família consiga deixar o país antes que a situação piore ainda mais.
Após o anúncio do governo brasileiro sobre a operação de resgate, a reportagem da BBC News Brasil voltou a contatar Jussara. Ela expressou sua esperança de que "tudo dê certo".
"Eu tive que abandonar tudo: a casa, os investimentos, os sonhos. Tudo o que construímos no Líbano se foi com essa guerra. Só queremos viver em paz."
Embora profundamente marcada pela violência e pelas perdas, Jussara também carrega um forte sentimento de fé.
"O povo libanês é cheio de fé, mesmo em meio ao sofrimento. Eu amo essa terra, mas hoje, como mãe, a segurança dos meus filhos está acima de tudo. Vou embora levando comigo as memórias da infância e a esperança de um futuro mais seguro no Brasil."
Enquanto aguarda ansiosamente a oportunidade de deixar o Líbano, Jussara reflete sobre o impacto da guerra não apenas em sua vida, mas na de todas as famílias que lutam diariamente para sobreviver.
"O Líbano é um país de pessoas fortes, mas não há como lutar contra as bombas. É doloroso deixar tudo para trás, mas quando se trata da vida dos nossos filhos, não há outra escolha."
Ela ainda sonha em retornar ao Líbano quando a situação estiver mais tranquila.
"Eu amo o Brasil e também o Líbano. Nunca enfrentei discriminação no Brasil por ser muçulmana. O povo brasileiro tem um grande respeito pelas religiões dos outros", afirma.
"Mas não sei como explicar, há algo na terra do Líbano que nos chama", acrescenta.
Israel e Hezbollah parecem estar se aproximando de uma guerra total, após uma semana de escalada no conflito.
Israel começou bombardeios em Beirute e no sul do Líbano, e anunciou na segunda-feira (30/9) o início de "incursões terrestres limitadas" contra o Hezbollah.
Na semana passada, um ataque aéreo em Beirute resultou na morte do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah.
Israel alega que busca garantir o retorno seguro dos moradores deslocados nas áreas de fronteira, após quase um ano de hostilidades relacionadas à guerra em Gaza.
Embora o Hezbollah tenha sido enfraquecido, o grupo continua lançando foguetes em direção ao norte de Israel e ainda possui um arsenal significativo de mísseis de longo alcance.
O ministério da Saúde do Líbano informou no sábado que os ataques israelenses mataram mais de 1.000 pessoas nas duas semanas anteriores, incluindo 87 crianças e 56 mulheres.
No domingo, os bombardeios israelenses continuaram, resultando em mais 100 mortes, enquanto o primeiro-ministro Najib Mikati alertou que até 1 milhão de pessoas — um quinto da população — podem ter abandonado suas casas.
As autoridades enfrentam dificuldades para oferecer assistência a todos, com abrigos e hospitais sob pressão.
Israel afirma que está atingindo locais do Hezbollah, incluindo depósitos de armas e munições, e acusou o grupo de usar civis como escudos humanos.
Em um discurso na segunda-feira, o vice-líder do Hezbollah, Naim Qassam, descreveu os ataques atuais de foguetes, drones e mísseis contra Israel como "o mínimo necessário" e afirmou que o grupo "sairá vitorioso" após uma ofensiva terrestre israelense.
O Hezbollah ainda conta com milhares de combatentes, muitos deles veteranos da guerra civil na Síria, além de um arsenal substancial de mísseis, incluindo muitos de longo alcance e guiados com precisão, capazes de atingir Tel Aviv e outras cidades.
Hezbollah é um partido político xiita e um grupo armado com forte influência no Líbano, tanto no parlamento quanto no governo.
Controla a mais poderosa força militar do país. O grupo surgiu na década de 1980, em reação à ocupação israelense do sul do Líbano durante a guerra civil (1975-1990).
Com apoio militar e financeiro do Irã e alianças com a Síria de Bashar al-Assad, o Hezbollah já realizou ataques letais contra forças israelenses e americanas.
Após a retirada das tropas israelenses do Líbano em 2000, o Hezbollah assumiu o crédito pela vitória.
A guerra de 2006 entre Hezbollah e Israel, desencadeada por um ataque do grupo, resultou na morte de cerca de mil civis, mas o Hezbollah saiu fortalecido, expandindo suas capacidades militares.
Fonte: correiobraziliense
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