22 de Novembro de 2024

Eleições 2024: como direita e esquerda levaram aborto para a política municipal


"Quem vota no candidato que quer legalizar o aborto é cúmplice do aborto", diz a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), em vídeo compartilhado em sua conta no Instagram no início de setembro, a poucas semanas da eleição de 6 de outubro, em que brasileiros vão escolher novos prefeitos e vereadores em todo o país.

"Adianta vocês orarem para que o Brasil não tenha aborto e vocês estarem apoiando alguém que é a favor do aborto?"

Na postagem, que busca alertar contra o voto em supostos candidatos comunistas que estariam nas igrejas, a ex-ministra de Jair Bolsonaro (PL) conta que a gravação foi feita originalmente em outra eleição municipal, de 2016, e reforça: "É exatamente o que eu continuo pensando ainda hoje".

Há oito anos, Alves era apenas assessora de outro parlamentar, o senador Magno Malta (PL-ES). Em 2019, foi alçada à chefe da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro.

Ao fim do governo, foi eleita para o Senado e, hoje, como uma das principais vozes do campo conservador, tenta colocar o aborto no centro do debate eleitoral das eleições municipais deste ano junto com a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, atual presidente do PL Mulher.

As duas lançaram em agosto a campanha "Mulheres Pela Vida", que defende "a vida desde a concepção".

A campanha estimula legisladores conservadores, em especial mulheres, a apresentarem projetos de lei contrários ao aborto — mesmo nos casos autorizados em lei, como a gravidez fruto de estupro — nas câmaras municipais e assembleias estaduais, disponibilizando modelos prontos dessas propostas.

Uma dessas propostas busca instituir em 8 de outubro no calendário municipal ou estadual o Dia do Nascituro, termo jurídico dado ao feto, acompanhado da Semana de Defesa e Promoção da Vida, com ações dentro dessa temática.

Outras duas tentam alterar a Lei Orgânica e o Plano Plurianual de municípios e Estados para estabelecer como seus objetivos "valorizar a vida e adotar políticas públicas de saúde, de assistência e de educação preventivas ao aborto voluntário".

Atualmente, o aborto é permitido no país em três situações: quando a gravidez decorre de estupro; quando há risco de vida da mãe; ou quando o feto é anencéfalo (o que impede a vida após o parto).

Apenas o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal têm poderes para mudar essas regras, seja para restringir ou ampliar o direito ao aborto no país.

No primeiro semestre, deputados federais conservadores tentaram criminalizar a interrupção da gravidez após 22 semanas de gestação, mesmo em casos decorrentes de estupro, mas a discussão acabou suspensa no Congresso após forte reação de parte da sociedade.

Pesquisas de opinião, como levantamento do instituto Datafolha de junho deste ano, mostram que não há maioria no país a favor de mudar as regras atuais — seja para restringir ou liberar mais.

No entanto, tentativas tanto de limitar quanto de promover o acesso ao aborto legal têm posto essa questão também em destaque na política local de cidades país afora.

Em março deste ano, por exemplo, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro rejeitou por ampla maioria um projeto de lei que criava o "Programa de atenção humanizada ao aborto legal e juridicamente autorizado", com objetivo de melhorar o atendimento em casos autorizados de interrupção da gravidez.

A proposta foi elaborada em 2017 pela então vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada no ano seguinte.

Já em Belo Horizonte, a Câmara de Vereadores aprovou em abril uma lei que ficou conhecida como "censo do aborto", obrigando a divulgação de estatísticas de aborto no site da prefeitura e no Diário Oficial do Município.

A nova legislação, porém, está suspensa por decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que avaliou que a nova regra fere o direito à privacidade das mulheres, ao obrigar a Prefeitura "a publicar/expor dados pessoais sensíveis, incluindo menores de idade".

Opositores da lei viram uma tentativa de constranger médicos e mulheres que realizassem aborto legal, argumentando que o DataSUS, do Ministério da Saúde, já reúne dados sobre aborto legal.

Os apoiadores, por sua vez, disseram que o levantamento municipal traria mais dados para políticas de prevenção.

"O objetivo é ter transparência. Eu sou uma vereadora pró-vida, e quero fazer políticas públicas para chegar antes da violência, antes do estupro, para a gente proteger verdadeiramente essas mulheres e meninas", afirmou a autora do projeto de lei, a vereadora Flávia Borja (Democracia Cristã), segundo reportagem de julho do jornal Folha de S.Paulo.

Já em Santa Maria, no interior gaúcho, a Câmara Municipal aprovou, no final de 2023, dois projetos de lei do chamado "pacote pró-vida", que acabaram vetados pelo prefeito, Jorge Pozzobom (PSDB).

Um determinava que os médicos deveriam oferecer a mulheres com direito ao aborto legal a realização de uma ultrassonografia para escuta dos batimentos cardíacos do embrião ou feto, antes do procedimento.

O outro determinava a fixação de cartazes sobre supostos danos físicos e psicológicos relacionados ao aborto em hospitais e consultórios médicos.

Projetos de lei com teor semelhante, apresentados pela vereadora candidata à reeleição Comandante Nádia (PL), aguardam votação na Câmara de Porto Alegre.

Após críticas, porém, a proposta sofreu alteração para retirar a previsão de que fosse oferecido o ultrassom às grávidas antes do aborto legal.

À BBC News Brasil, a vereadora diz que esse trecho foi incluído equivocadamente, ao usar como base para sua proposta um modelo de projeto de lei que já estava pronto.

Ela afirma que o principal objetivo do seu "pacote pró-vida" é ampliar a informação disponível para mulheres que pretendem abortar sobre como é realizado o procedimento.

"Essa mulher [que pretende abortar] tem o direito de saber que ela vai ser anestesiada de uma forma geral, vai ficar de perna aberta em uma mesa ginecológica, como é feita a retirada do bebê, que é por sucção, que as partes vão ser se extirpadas dali, para onde esses restos vão ser levados", argumenta a vereadora, relatando de forma imprecisa o procedimento, que, a depender da idade gestacional, pode ser realizado em casa, apenas com medicamentos.

"[São informações para] que ela entenda que o aborto não é a retirada de um dente siso. É algo muito mais grave e que pode ter sequelas psicológicas nessa mulher, pode ter sequelas físicas."

A dedicação de câmaras municipais ao tema é alvo de críticas.

A advogada Ana Clara de Carvalho Polkowski, cofundadora do Instituto Planejamento Familiar (IPFAM), considera que as iniciativas para aprovar leis sobre aborto em Estados e municípios são inconstitucionais, porque apenas o Congresso Nacional pode restringir ou ampliar esse direito.

"Embora esse tema esteja quente na campanha municipal, não é de competência das câmaras de vereadores ou dos Estados. Nosso regime jurídico é diferente do dos Estados Unidos, onde Estados podem legislar sobre o tema", ressalta.

Na sua visão, o fato de o direito ao aborto ter se tornado um tema central na eleição presidencial americana, em curso no momento, está aumentando o apelo do assunto na eleição municipal brasileira.

Lá, o aborto era amplamente liberado desde os anos 70, mas a Suprema Corte americana derrubou essa decisão em 2022 e autorizou os estados a adotarem restrições.

O candidato republicano, o ex-presidente Donald Trump, apoia a mudança, enquanto sua adversária, a candidata democrata Kamala Harris, atual vice-presidente, quer a volta do direito amplo à interrupção da gravidez.

Para Polkowski, os municípios brasileiros deveriam estar mais focados em melhorar seus serviços de planejamento familiar e de prevenção da gravidez indesejada, com mais oferta de métodos contraceptivos e serviços de saúde para adolescentes.

Já nas escolas, defende a advogada, as prefeituras deveriam capacitar suas equipes a identificar casos de abuso sexual.

"Estão debatendo [nas câmaras municipais] um assunto que não têm competência legal para debater, para não jogar luz no que os municípios têm dever de cumprir, como garantir método contraceptivo e cumprir a lei do planejamento familiar", reforça.

Para a vereadora de Porto Alegre Comandante Nádia (PL), os temas não se excluem.

"A vida acontece no município. Então, é função do município se envolver em pautas que são nacionais, mas que vão ter repercussão muito grande nos municípios", defende.

A BBC News Brasil solicitou entrevista a Damares Alves e Michelle Bolsonaro, mas elas não quiseram se manifestar.

Em São Paulo, maior cidade do país, o resultado da eleição pode ter impacto direto no acesso à interrupção da gravidez em casos previstos em lei.

O tema ganhou destaque no município com a decisão do governo de Ricardo Nunes (MDB), prefeito candidato à reeleição, de interromper o serviço do aborto legal no hospital maternidade Vila Nova Cachoeirinha.

A unidade era referência neste tipo de atendimento e, segundo movimentos de mulheres na cidade, a única do município a interromper gestações em estágio avançado.

A justificativa da Prefeitura foi liberar a equipe do hospital para outros procedimentos, como cirurgia de endometriose.

Questionado sobre o assunto ao longo da campanha, Nunes tem dito que foi uma decisão técnica e que o aborto legal é oferecido em outras unidades municipais.

Hoje, as pesquisas eleitorais mostram que o prefeito disputa uma vaga no segundo turno da eleição em São Paulo com os candidatos Guilherme Boulos (PSOL) e Pablo Marçal (PRTB).

O primeiro integra um partido que defende abertamente o direito ao aborto, mas tem evitado colocar o tema como algo central em sua campanha.

Já o segundo se coloca fortemente contra a interrupção da gravidez e já disse que "não vai haver facilitação para isso [acesso ao aborto]" em um eventual governo seu.

A vereadora paulistana Silvia Ferraro (PSOL), candidata à reeleição, diz que Boulos está comprometido com a ampliação do serviço na cidade.

"A gente espera que o Boulos ganhe e que uma das primeiras medidas seja reabrir o serviço de aborto legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha", diz Ferraro à BBC News Brasil.

"Nossa batalha continua sendo para que o aborto legal exista de fato na cidade de São Paulo, e não só em gestações avançadas, mas em mais hospitais, inclusive com acolhimento decente [para as gestantes]", reforçou a vereadora, que integra a Bancada Feminista, um mandato coletivo com outras mulheres.

Seu mandato destinou recursos de emendas parlamentares para o serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha, antes de ele ser interrompido.

Foi também responsável por uma emenda ao projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2025 que tentava reabrir o atendimento, mas a proposta foi rejeitada pela maioria da Câmara Municipal.

Apesar da esperada volta do serviço em uma eventual gestão Boulos, o candidato não colocou a proposta oficialmente em seu plano de governo.

Questionado sobre o tema durante a corrida eleitoral, ele tem dito que é a favor do aborto legal, sem fazer disso uma bandeira de campanha.

Para a cientista política Nara Salles, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a decisão de Boulos de não dar destaque a um tema caro ao seu partido tem a ver com seu bom posicionamento nas pesquisas, com chances reais de chegar ao segundo turno.

"Quando o candidato está menos competitivo, tem mais liberdade para estar mais próximo do seu eleitorado mais cativo", analisa Salles.

"Quando está mais competitivo, há essa necessidade de ampliar a sua base. Então, o candidato evita tocar em pontos que possam ser delicados para grande parte do eleitorado."

Salles é uma das coordenadoras do projeto Vota Aí, banco de dados que reúne os planos de governo de candidatos a prefeito em todo o país, desde a eleição de 2012.

Um levantamento feito a pedido da BBC News Brasil nas últimas disputas municipais, identificou que a temática da interrupção da gravidez ainda é rara nesses documentos, mas mais comum entre concorrentes da esquerda.

O termo apareceu em 40 planos de governo em 2012, depois em 48 em 2016, chegando a 105 em 2020.

Já neste ano, há 61 menções ao tema num universo de cerca de 15 mil planos analisados, com destaque para candidatos do PSTU (16), PSOL (15) e PT (13).

Os números surpreenderam Salles, que esperava uma incidência maior do tema nas campanhas pelas prefeituras.

"Como o aborto é um tema muito importante no debate ideológico que a gente tem vivido no Brasil nos últimos anos, eu achava que, como marcador de posição, iria ser mais mencionado [nos planos de governo]", diz a pesquisadora.

"Mas os números mostram que acabam prevalecendo [propostas para] resolver questões que são mais concretas [na vida das cidades], em vez de se posicionar num tema delicado, em que o candidato pode perder voto."

Fonte: correiobraziliense

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