22 de Novembro de 2024

O que recuo do X no Brasil significa na guerra entre governos e big techs no mundo


Demonstração de força do Estado ante as chamadas big techs; precedente internacional e ponto de preocupação com suposto autoritarismo do Judiciário brasileiro.

Foi assim que analistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliaram o desfecho (pelo menos temporário) da crise instalada entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e Elon Musk, dono do X, após o fim da suspensão da plataforma no Brasil.

"Big techs" é o termo normalmente usado para se referir a grandes empresas de tecnologia como Google, Meta, X e Microsoft.

O fim da suspensão foi determinado na terça-feira (8/10) após a empresa cumprir uma série de determinações impostas pelo ministro Alexandre de Moraes. Até o início da noite de ontem, o acesso à plataforma ainda não havia sido restabelecido, o que deverá acontecer gradativamente nas próximas horas.

A suspensão da plataforma no Brasil, segunda maior democracia do continente americano e um dos países mais populosos do mundo, vinha sendo vista internacionalmente como um dos episódios mais concretos do constante embate entre grandes corporações do segmento da tecnologia e o poder dos Estados nacionais.

No fim de agosto, quando Moraes determinou a suspensão do X em todo o território nacional, o jornal The New York Times classificou o caso como o “maior teste até agora para os esforços do bilionário [Musk] em transformar o local [o X] em uma praça digital onde quase tudo é possível”.

Na avaliação de especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o resultado do teste foi claro: Musk se viu obrigado a se curvar às decisões do Estado brasileiro.

Eles avaliam, contudo, que a “vitória” do Estado brasileiro neste episódio não significa que novos embates entre países e corporações como o X não surgirão e que, no futuro, o resultado pode vir a ser diferente.

“É uma luta constante”, disse à BBC News Brasil o professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP Pablo Ortellado.

Na avaliação da coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) Renata Mielli, o principal recado enviado pela forma como o STF autorizou o retorno do X no Brasil é a de que as empresas não podem estar acima dos Estados.

“Isso demonstra que nenhuma empresa está acima das instituições de um Estado. Cada país tem suas leis e as empresas precisam respeitar o marco regulatório. Os Estados não podem se intimidar diante de chantagens ou ameaças vindas de empresas”, afirmou Mielli à BBC News Brasil.

O CGI.br é um comitê criado em 2003 com o objetivo de estabelecer diretrizes sobre o uso e desenvolvimento da internet no Brasil e que conta com a participação de integrantes do governo, do setor privado e de organizações não-governamentais.

Mielli disse acreditar que a forma como o caso foi conduzido no Brasil deverá ter impacto internacional na medida em que o embate vivido no país também ocorre em outros locais.

“A mensagem do que aconteceu aqui repercute internacionalmente porque a postura de parte dessas empresas de tecnologia ou redes sociais é a de levar a situação até o limite na tentativa de não se submeter às regras locais. Vimos muitos países indicarem que adotariam a postura que o Brasil adotou caso empresas decidissem não cumprir as regras locais”, disse Mielli.

Atualmente, o X também enfrenta questionamentos na União Europeia e já foi alvo de decisões judiciais ou governamentais em países como a Índia, e na Turquia, onde o X também acabou cedendo.

Na União Europeia, por exemplo, o X foi acusado potencialmente de “enganar” seus usuários ao conceder um selo de verificação de contas mediante pagamento.

O regulador de tecnologia do bloco europeu afirmou que os usuários poderiam ser levados a pensar que a identidade daqueles com o selo azul foi verificada, quando, na verdade, qualquer pessoa pode pagar por ele.

O regulador disse ter encontrado evidências da ação de "agentes maliciosos" abusando do sistema. Musk respondeu dizendo que as regras impostas pela União Europeia resultavam em “censura”.

João C. Magalhães, professor de Mídia, Política e Democracia na Universidade Groningen, na Holanda, disse à BBC News Brasil que o resultado da crise entre o STF e o X reforçou a tese de que em embates como esse, a tendência é de que os Estados nacionais vençam.

“No final das contas é isso que acontece. O Estado sempre ganha. Os Estados nacionais é que têm o poder de fato. Sempre que se imagina que as big techs são mais poderosas que o Estado é preciso lembrar que elas só têm o poder que detêm porque o Estado, de alguma forma, permitiu”, disse o professor.

Magalhães afirmou que a situação envolvendo o X colocou tanto o STF quanto a rede social de Musk em uma posição em que não havia outra decisão a tomar.

“Seria extremamente surpreendente que o STF fosse aceitar que uma empresa descumprisse uma ordem [...] e para o X, a única opção era ficar de fora do Brasil ou deixar que seus usuários utilizassem a rede apenas com uma VPN {programa auxiliar que simula que o dispositivo esteja localizado geograficamente fora do território nacional}”, disse.

"Apesar de parecerem poderosas, essas empresas não têm exércitos. Não podem obrigar as pessoas a consumir seus produtos. O monopólio da força é do Estado", afirmou.

O professor Pablo Ortellado avalia que o caso brasileiro cria um precendente internacional.

“O Brasil mostrou que, com uma postura muito dura, foi possível fazer uma big tech se submeter às leis. Esse é um aspecto que acho positivo”, afirmou.

Na avaliação de Ortellado, fazer com que Elon Musk se “curvasse” às leis brasileiras aconteceu por conta de uma conjunção de fatores.

“O primeiro fator é que a comunidade de especialistas no tema no Brasil estava de acordo com a decisão de suspender a plataforma. Apesar de haver alguma divergência, havia um amplo apoio à essa decisão”, afirmou.

O segundo fator, segundo ele, foi a concordância de parte da imprensa.

“Não me lembro de ver nenhum editorial de algum grande jornal ou empresa de comunicação se posicionando contra essa medida”, disse.

Segundo ele, essa anuência teria dado respaldo à decisão junto à maior parte da opinião pública.

O outro fator elencado por ele foi de ordem econômica.

“Ele (Musk) teve que entender que corria o risco de ter uma perda de receita de um ator importante, uma vez que o Brasil tem em torno de 15% do mercado global do Twitter. Além disso, Moraes começou a onerar a Starlink (empresa de satélites de Musk) para fazê-la pagar as multas do Twitter. Isso começou a estrangular financeiramente a empresa. O X viu que sairia mais barato cumprir as regras”, disse Ortellado.

Para o professor João C. Magalhães, um fator preponderante para que o STF não recuasse da suspensão foi a politização em torno do assunto.

“Existia uma percepção de que Elon Musk não era só um empresário, mas um ator político que entra no contexto brasileiro como aliado ao bolsonarismo e o bolsonarismo é visto como antidemocrático pela maioria no STF. A politização do caso é fundamental pra entender porque o STF decidiu fazer o óbvio, que era cumprir a lei em vez de buscar uma negociação”, disse.

Elon Musk é visto como uma pessoa próxima do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Os dois se encontraram pessoalmente no Brasil em 2022 durante uma visita do empresário ao país.

Em seus perfis, Musk se posicionou a favor de Bolsonaro e chegou a acusar o ministro Alexandre de Moraes de ter interferido no resultado das eleições presidenciais de 2022. Após a suspensão do X no Brasil, diversos políticos de direita e do campo bolsonarista saíram em defesa do empresário e criticaram o STF.

Para Pablo Ortellado, um outro recado enviado pela maneira como o X volta a funcionar no Brasil é o de que teria prevalecido a suposta “linha dura” de Alexandre de Moraes na condução de investigações relacionadas à tentativa de golpe ocorrida no dia 8 de janeiro de 2023.

Parte da decisão que levou à suspensão do X foi uma reação de Moraes ao fato de o X não atender determinações suas para suspender contas de pessoas investigadas no caso de janeiro de 2023.

“O ponto negativo desse caso é que prevaleceu a posição de Moraes e ele vem pesando a mão (em suas decisões). Não ignoro o fato de que Musk tem uma agenda política, mas as alegações do X sobre o banimento de contas tinham, sim, cabimento. O banimento de contas da forma como vinha sendo feito não estava respaldado na tradição brasileira”, afirmou.

Ortellado disse que, até o dia 8 de janeiro de 2023, o entendimento no Brasil é de que não havia censura prévia. Caso alguma postagem ilícita fosse detectada, ela deveria ser deletada. Por conta do episódio, Moraes passou a determinar o banimento de contas que supostamente estavam ligadas à publicação de mensagens de ódio ou contrárias à democracia.

“Pressupor que uma conta vá cometer um ilícito e tirá-la do ar é censura prévia”, disse.

Ortellado avaliou que, considerando o contexto brasileiro, a manutenção da suspensão do X até que a rede cumprisse as determinações do Judiciário brasileiro envia um sinal de força. Essa força, porém, pode ter consequências em direções diferentes.

“O caso brasileiro abre um precedente importante para outros países do mundo. Isso pode ser usado de uma forma boa ou ruim. O recado é que se você for duro o suficiente, as empresas se curvam. Isso pode valer para países com regras razoáveis como na Europa. E podem valer para estados autoritário”, afirmou.

Renata Mielli disse não saber se novos embates como o que foi travado entre o X e o STF irão acontecer no Brasil, mas defendeu que a única forma de evitar crises como esta seria aprovação de uma regulamentação para as redes sociais, cujo projeto está parado no Congresso Nacional.

Ela mencionou que em 2023, diversas empresas deste setor pagaram anúncios e fizeram uma campanha midiática para influenciar parlamentares a não votar um projeto de lei que visava regulamentar o funcionamento das redes sociais.

O projeto encontrou resistência de parte de parlamentares da direita que argumentaram que as regras poderiam penalizar militantes e políticos desta corrente política que usam redes sociais para se manifestarem.

“Só existe vacina contra esse tipo de situação se tivermos uma legislação para regular as plataformas digitais. O Congresso Nacional, motivado por interesses próprios e pelo forte lobby das big techs, não apreciou o projeto e fez com que uma decisão sobre o caso do X recaísse sobre o STF”, disse.

Para Mielli, enquanto a regulamentação não vem, as empresas do setor deverão adotar uma postura mais cautelosa em relação a cumprir ou não ordens da Justiça brasileira.

“Qualquer empresa que presta serviço no Brasil vai pensar duas vezes antes de medir forças com o Estado Brasileiro de novo. Disso eu não tenho dúvida”, afirmou.

Fonte: correiobraziliense

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