12 de Novembro de 2024

Coluna Prestes, 100 anos: o que foi o movimento militar que queria 'corrigir' a política brasileira


O clima de descontentamento com suas próprias condições de trabalho e com os rumos políticos do Brasil dominava os quartéis naquele início de anos 1920.

Eventos causados por essa revolta se somavam, dentro daquilo que ficou conhecido como movimento tenentista: o Levante do Forte de Copacabana, em 1922, e a Revolta Paulista de 1924 haviam sido os principais.

Em 28 de outubro de 1924, um grupo de militares se organizou para nova mobilização. Na Região das Missões, noroeste do Rio Grande do Sul, o capitão Luís Carlos Prestes (1898-1990), que comandava o 1º Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, mobilizou batalhões e cavalarias para uma marcha até o oeste paranaense, com o objetivo de encontrarem-se com os remanescentes do recente conflito paulista.

Germinava ali a Coluna Prestes, também chamada de Coluna Miguel Costa-Prestes, oficialmente batizada como 1ª Divisão Revolucionária.

“A Coluna Prestes se constituiu como uma parte importante, com certeza a maior expressão, do descontentamento e aversão em relação ao organismo político vigente da República Velha”, define o historiador Rafael Policeno de Souza, pesquisador na Universidade Federal do Paraná, em artigo publicado na Revista Historiador.

Os integrantes do movimento tinham entre suas bandeiras a insatisfação com o governo federal de Artur Bernardes (1875-1955) e com o modelo que ficou conhecido como “café com leite”, em que o comando da nação era revezado ora por um oligarca paulista, ora por um mineiro.

Eles também pediam a instituição do voto secreto e defendiam o ensino público para todos.

Também aglutinavam pautas difusas, como o clamor pelo fim da miséria e da injustiça social no Brasil.

“Queriam corrigir a política brasileira”, define à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Corrigir a partir da ordem e da disciplina férrea, do pensamento positivista e da doutrina militar, ambas de um autoritarismo sem igual.”

“Esperavam assentar a política em valores republicanos que seus líderes e adeptos consideravam esquecidos, rejeitados e abandonados, ao longo de trinta anos do regime instalado em 1889 e definido na Constituição de 1891”, acrescenta ele.

O sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), acrescenta à reportagem que o movimento tinha, em suas raízes, uma “grande crítica às péssimas condições de vida dos militares”.

“Com o tempo, o movimento foi adquirindo outras proporções, com a exigência do ensino básico obrigatório, a solução da fome, o voto secreto, e até mesmo a ideia de que era preciso moralizar a política brasileira, vista como excessivamente corrupta”, diz Ramirez.

“A insatisfação nos quartéis e a autoproclamação dos militares como redentores e regeneradores da República no Brasil foram as notas dominantes. Quiseram encarnar, falar e agir em nome de toda a ‘nação brasileira’”, enfatiza o professor Martinez.

Ele acrescenta que “a este imaginário político místico e mítico de uma sociedade em perigo e ameaçada” acabou se somando o “fantasma do comunismo”.

“Foram abertos caminhos para discursos e a ressureição de símbolos, personagens e atitudes de novos messias, ‘salvadores da pátria’, quase sempre fardados. Estes fantasmas rondam a política brasileira ainda no século 21”, compara.

Pesquisador na Unesp e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato ressalta à BBC News Brasil que as bandeiras carregadas pelos revoltosos “eram diferentes entre si”, mas “no caso dos tenentistas, evidentemente que havia a intenção de uma modernização radical do Estado, no que diz respeito à educação e à formação política”.

Ao longo de dois anos, a coluna percorreu cerca de 25 mil quilômetros pelo país.

Chegou a reunir 1,5 mil militantes — dentre eles, cerca de 50 mulheres.

Embora não tenham conseguido derrubar o governo de Bernardes, pesquisadores apontam que o papel dos revoltosos foi crucial para o enfraquecimento da política do café com leite, abrindo caminho para a Revolução de 1930 — o golpe de Estado que permitiu a ascensão do gaúcho Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder.

Além de Prestes, o outro principal líder do movimento foi o também militar Miguel Costa (1885-1959). Este trazia na bagagem a experiência de ter participado da Revolta Paulista ocorrida em julho de 1924.

Policeno de Souza contextualiza essa junção entre os movimentos paulista e gaúcho, lembrando que “desde o levante” ocorrido em São Paulo “os quartéis conspiravam”.

“Em 28 de outubro de 1924, na região missioneira do Rio Grande do Sul se levantou, com objetivo de abrir outro foco de luta, em consideração aos revoltosos paulistas, mais um levante. Este liderado por Prestes, até então não reconhecido como grande comandante”, escreve o historiador.

“Com o desenrolar da luta e a necessária ‘guerra de movimento’, Prestes liderou os revolucionários até o oeste parananese, objetivando encontrar os remanescentes das lutas do sudeste.”

Esse encontro ocorreu em Foz do Iguaçu. Segundo Souza, a partir daí “se passou a dar voz ao maior ícone desta empreitada”: Prestes.

Isto porque naquele momento parte dos militantes defendia o exílio para a Argentina. O líder, contudo, advogava pela continuidade da luta. “Prestes ganhou o debate e conseguiu […] motivar os rebeldes a marchar para o interior inóspito do território brasileiro, levando consigo toda a inconformidade e crença na derrubada de Artur Bernardes, o grande objetivo inicial da coluna”, narra o historiador.

Souza conta que a marcha pelos confins brasileiros não estava no plano inicial dos revoltosos. Isto ocorreu meio por acaso. Por conta dessa interiorização da marcha, no entanto, “os revolucionários passaram a se organizar para, a partir dos contatos com as populações rurais, passarem a estabelecer simpatia e adesões de novos combatentes”.

Ele relata que há registros de ações dos militantes em favor dos mais pobres, como destruição e queimada de “processos que os coronéis moviam contra os pequenos agricultores”, soltura de presos e doações de “medicamentos aos mais necessitados”.

Tais gestos eram vistos não só como solidariedade diante das mazelas encontradas pelos militares, mas também como uma tentativa de diluir a propaganda governista, que buscava retratá-los como inimigos. “Fazia-se um ‘filme de horrores’ da coluna”, diz o pesquisador.

O movimento chegou ao fim pelo desgaste de seus integrantes.

“A coluna percorreu muitos dos Estados brasileiros até encontrar sua derrocada. Eles queriam a deposição, em um primeiro momento, do governo de Artur Bernardes. Já em final de mandato [encerrado em novembro de 1926], não fazia mais sentido a manutenção da coluna”, avalia Ramirez.

Em seu artigo, Souza diz que “é preciso reconhecer que não havia na coluna um projeto de agitação para que o povo aderisse”. “Estavam todos ainda imaturos em termos de organização de uma política pragmática”, analisa ele.

“[Eles] não conseguiram”, crava o historiador Martinez. “O êxito político foi terem colocado em evidência as fragilidades e a instrumentalização dos meios jurídicos e políticos, das instituições públicas e do eleitorado, no favorecimento dos interesses do grande capital agrário, mercantil, financeiro e industrial, nacional e estrangeiro.”

Os integrantes acabaram quase todos exilados na Bolívia e na Argentina.

Se não houve a derrubada do governo conforme planejada por eles, é fato que houve um enfraquecimento do status quo político nacional que acabaria abrindo caminho para a chegada de Vargas ao poder, sacramentando o fim da chamada República Velha.

“O fim da coluna não significou o fim do movimento tenentista. Tanto que ele acabou influenciando de alguma forma a ascensão do Vargas com o golpe de Estado contra o que foi chamado por ele mesmo de República Velha”, explica Ramirez.

“De alguma forma, essa ideia de uma organização mais forte, militar, dentro do Estado, isso remete à coluna e talvez seja uma das grandes influências”, complementa o sociólogo, lembrando que o próprio Vargas depois acabou neutralizando o tenentismo e “centralizando o poder em suas mãos”.

O historiador Martinez comenta ainda que o movimento acabou influenciando a República “na tutela política da sociedade”.

“De um lado, esta tutela segue hospedada, até os nossos dias, na ação do Estado e de sua suprema direção: a presidência da República. De outro lado, esta tutela é voltada diretamente para a reprodução e a concentração da renda, da terra, da cultura e do poder político nas mãos de famílias e grupos econômicos”, explica.

“Estes são abastecidos, ininterruptamente, com recursos, investimentos, cargos, informações e decisões estatais em benefício próprio. A tutela política da sociedade alimenta carreiras de clãs e dinastias políticas, consagradas em sobrenomes, que se repetem no âmbito dos três Poderes, das Forças Armadas e nas diferentes escalas da vida nacional, de vereadores a presidentes”, completa ele.

Os principais nomes do movimento tiveram destinos distintos.

Prestes se revelou ativista de esquerda e filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi perseguido e preso pela ditadura do Estado Novo implementada por Vargas.

Sua companheira, a militante comunista Olga Benário (1908-1942), foi entregue pelo governo brasileiro aos nazistas e acabaria executada em câmara de gás.

Até o fim da vida, Prestes defendeu a revolução comunista. Em 1942, ganhou uma biografia romanceada escrita por Jorge Amado (1912-2001), chamada de O Cavaleiro da Esperança — que consolidaria aí seu epíteto.

Foi eleito senador, ocupando o cargo de 1946 a 1948. Durante a ditadura cívico-militar instituída com o golpe de 1964, teve seus direitos políticos cassados e exilou-se na União Soviética. Dirigiu o PCB de 1943 a 1980.

Em artigo publicado em 1993 no periódico Lua Nova: Revista de Cultura e Política, o professor universitário e escritor Ottaviano de Fiori di Cropano (1931-2016) afirma que “houve dois partidos comunistas bem diversos no Brasil”. “Um antes de Prestes, outro depois dele”, diz.

“O primeiro, fundado em 1922 por anarquistas, rebeldes e intelectuais, não teve importância. Era pequeno demais e não tinha raízes na sociedade”, afirma. “O segundo, que começa em 1935 com a entrada dos jacobinos prestistas, que seguem seu comandante para fora do tenentismo e para dentro do comunismo, é o Partido Comunista que conhecemos”, prossegue o texto.

“O partido que, enfrentando sozinho getulistas, liberais, coronéis e meios de comunicação, usando apenas o prestígio da dobradinha Prestes-URSS, obteve 10% dos votos nacionais nas eleições de 1946 e tornou-se uma força viva na história brasileira.”

Miguel Costa combateu na Revolução de 1930 e atuou no movimento que daria origem à Revolução de 1932, em São Paulo — não participou ativamente porque foi preso antes do início das batalhas.

“Miguel Costa continuou na cena política, desempenhando, na década de 1930, certo protagonismo, sobretudo, em São Paulo. A construção do mito do ‘cavaleiro da esperança’, em torno de Prestes, na década de 1940, a vida atribulada que teve e os nove anos na prisão, até o fim do Estado Novo, engoliu a figura de Miguel Costa”, diz Martinez.

“Embora este mantivesse posições críticas e insubmissas, até socialistas, não havia espaço para outros heróis-míticos no imaginário da política brasileira após 1945. Prestes e o próprio Vargas ocuparam este espaço com presença, estruturas políticas, propaganda e apoio massivos.”

Para Fiore di Cropani, “neste novo mundo”, Prestes, Olga, Vargas e outros “adquirem a tez fantasmagórica das velhas fotografias”, posto que “tornaram-se história”. “Mas as paixões que os moveram, o objetivo profundamente moderno de mudar o mundo e o eterno desejo de justiça e poder, não morrerão”, escreve ele.

Outros integrantes do primeiro escalão da coluna se tornaram extremistas de direita. “Rapidamente, muitos deles foram cooptados e engajaram-se, por conta e interesse próprios, em outras sedições e composições políticas de inspiração fascista e mesmo nazista”, diz Martinez.

Ele cita o caso de Filinto Müller (1900-1973). “Foi um dos integrantes da coluna, [depois] tornou-se chefe de Polícia do Estado Novo, exercendo o sadismo de visitar Prestes na cadeia e afrontar-lhe a derrota política e ideológica, além de tripudiar o destino pessoal deste”, comenta o historiador.

Quando morreu, nos anos 1970, Müller era senador pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido que dava sustentação à ditadura — “que ele apoiava entusiasticamente”, ressalta Martinez.

O historiador lembra ainda de outros “que abraçaram ideias e práticas ditatoriais” como o militar Juarez Távora (1898-1975), que chefiou dois ministérios na Era Vargas e, durante a ditadura pós-1964, foi ministro de Viação e Obras Públicas no governo de Humberto Castello Branco (1897-1967).

O quarto presidente da ditadura brasileira, Ernesto Geisel (1907-1996), estudava na Escola Militar de Realengo na época da coluna Prestes e era um admirador do movimento.

Fonte: correiobraziliense

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